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MUÑOZ, Maria Tereza. A casa sobre a natureza. A Vila Malaparte e a Casa da Cascata. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 004.04, Vitruvius, set. 2000 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.004/983>.

Estas duas casas, projetadas e construídas nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial estão entre as habitações individuais mais espetaculares produzidas pela arquitetura no século XX, e apesar de suas muitas disparidades - sua distância geográfica, a personalidade de seus arquitetos e clientes, seus pressupostos arquitetônicos - constituem momentos igualmente singulares da arquitetura doméstica que, por causa das especiais circunstâncias em que elas são construídas - do que é prova disso suas efêmeras vidas como residências e suas quase imediatas transformações em museus de arquitetura -, se aventuram fora dos habituais usos, para tomar como suporte algo tão renegado do pensamento moderno, a natureza. A arquitetura moderna não tinha demonstrado um interesse especial pelos valores da natureza, como indica Adorno, "[a grande arte] fecha a porta a tudo o que a velha estética atribuía à natureza e abandona a reflexão sobre tudo aquilo que acontece fora ou além de sua imanência estética" (2). Portanto, a natureza como protagonista nesta obras, nascidas da mesma artificialidade do moderno e com suas vontades de se porem contra o mundo do não construído, do natural, proporciona neste momento de extensão das fronteiras da modernidade a oportunidade para dar passagem à uma idéia de casa livre dos ícones formais da arquitetura moderna, mas sem o lastro dos desgastados modelos tradicionais. No entanto, vai ser a força do natural que permitirá relocar a rígida funcionalidade do espaço interior da sua condição de valor supremo de qualquer casa.

Em 1938, o escritor e jornalista Curzio Malaparte (1898–1957) pede a Adalberto Libera que realize alguns croquis preliminares para sua casa em Ponta Massullo, Capri. A casa, a qual o escritor chamou de uma casa como eu, foi construída seguindo o projeto original de Libera, desenvolvido posteriormente por Amintrano, um construtor de Capri, e pelo próprio Malaparte. Apenas utilizada como tal, a casa foi doada à República Popular da China por Cuzio Malaparte, passando depois a ser sede de uma fundação que a destinou a abrigar exposições. Este Projeto foi realizado quando Libera tinha 35 anos e coincidindo com o Palácio de Congressos de Roma, um edifício o qual também dispõem de um teatro ao ar livre na cobertura.

Qualquer consideração da Vila Malaparte parte necessariamente da importância de sua implantação; excepcionalmente na arquitetura de Libera, fora da cidade. No mais alto de um penhasco sobre o Mar Mediterrâneo, a casa se ergue olhando para o sol, transmitindo um especial sentimento de distância e orientação, enquanto que acentua com sua presença a inacessibilidade desse lugar excepcional. O lugar escolhido por Malaparte não é simplesmente um lugar onde a natureza possa ser contemplada, mas também sentida em toda sua plenitude. O sol e o mar se transformam em mundos envoltórios da arquitetura, mergulhando neles, enquanto que esta estende seus domínios pelo território muito além de seus limites, deixando pegadas em forma de escadas talhadas diretamente sobre a rocha. A natureza, como um drama no tempo, em constante movimento e absolutamente paralisada, aparece aqui como condição essencial de uma arquitetura que está sobre a natureza, participa e também se opõem a ela. Mas a natureza é, na Vila Malaparte antes de tudo mítica, literária. Da parceria Libera / Malaparte surge uma construção inquietante, marcada por sua profunda ambigüidade que penetra na arquitetura em virtude desse caráter mítico da natureza. Adorno generaliza esta conexão entre o mítico e o natural quando diz: "A beleza natural é o mito transposto à imaginação... todo o mundo acha belo o canto dos pássaros e, entretanto, existe algo de terrível nos cantos dos pássaros, símbolo de desgraça... A ambigüidade da beleza natural tem sua origem na ambigüidade dos mitos" (3).

Como resposta a este singular marco natural, cuja beleza deriva da grandiosidade com que se produz o encontro entre a terra, o céu e o mar, Libera projeta um edifício que parece seguir as mesmas leis formativas da natureza; a casa aparece como um reflexo geometrizado do perfil da rocha sobre a qual se assenta, quase como uma formação cristalizada surgida do próprio penhasco como conseqüência de um cataclismo. A pureza de sua geometria, a obliqüidade de seu perfil, sua cor branca destacando-a sobre o cinza da rocha, assim o confirmam. Mas ao mesmo tempo, a Vila Malaparte responde fielmente ao conceito de forma monumental, neste caso dando vida a um programa doméstico, tal como é entendido por Adalberto Libera. Como indica Vieri Quilici em sua monografia sobre o arquiteto, "a confrontação entre o princípio tectônico (tipo estrutural-arquitetônico) e a conformação volumétrico-objetual (imagem plástica) constituem no fundamento do método compositivo de Libera, que se resume no princípio de integridade do programa construtivo-figurativo, um princípio essencialmente sintático através do qual a arquitetura se afirma como monumental". Tal princípio, enfatiza Quilici, "é contrário ao mimetismo que tende a reproduzir sobre o sítio operações análogas a aquelas que existem ao seu redor, já a estrutura formal da obra procura mostrar a essência individual do tipo, transformando-se ao mesmo tempo em uma condição que não pode ser repetida do lugar em que se assenta" (4). Assim, na Vila Malaparte, por trás desta aparente submissão às forças do lugar, Libera tentará também fazer convergir a geometria e a emotividade, fazer corresponder a complexidade ao rigor da forma e à temporalidade da natureza metafísica do objeto arquitetônico, e conseguir, como conclui Quilici, "o mito idealista da integração".

A Vila Malaparte faz destacar na paisagem sua potente unidade, tanto tipológica como simbólica, apresentando-se como uma caixa fechada que se projeta desde a obliqüidade da grande escada-arquibancada em direção ao abismo. O edifício, geometricamente complexo, se identifica com a sua cobertura – teatro ao ar livre, plataforma de decolagem para o sol, palco de cerimônias rituais, orientada para o mar e para a terra – como identifica-se também com o traçado preciso de seu perfil, como uma forma sem volume. Ele lhe confere sua imagem heróica, de acesso para o triunfo, deixando de lado tudo o que for demasiadamente humano – daí a ausência de base – para reencontrar sua essência atemporal. O tempo parece parado, tanto na casa como na natureza ao redor. Apesar de sua posição no alto do penhasco, produz no seu interior a sensação de uma caverna, a idéia mais primitiva de habitação, de lugar subterrâneo e quase submergido, como indica Hejduk quando, além de destacar sua conecção com o mundo de sacrifícios e rituais primitivos, se refere a ela como labirinto, como tumba (5).

Sim, como dizíamos, os mitos são os que constituem a base da relação da Vila Malaparte com a natureza circundante, são também os mitos os que vão determinar sua configuração como arquitetura, e neste caso como o sentido de símbolos arquetípicos cuja organização, como afirma o crítico Northrop Frye, "toma a forma de dois mundos contrapostos identificados como o desejável e o não desejável, o bom e o mal, o apocalíptico e o demoníaco" (6). No interior da casa aparecem duas portas – a antítese mítica entre o bem e o mal – desde a grande sala, através destas duas portas somos conduzidos em um movimento sem retorno através das aberturas, irregularmente repartidas e de diferentes tamanhos, que abrem o interior para um mundo de formas naturais brumosas e inalcançáveis, para um verdadeiro abismo.

Detenhamo-nos agora sobre as características dos elementos que definem a arquitetura da casa – a base, a cobertura, a entrada, as aberturas – que respondem sem exceção a essa vontade de afirmação de uma forma íntegra, monumental, sobre o espetáculo de uma natureza mítica, teatralizada. O edifício carece de base, surge diretamente da irregularidade da rocha, desprendendo-se do mais humano – "os pés são o mais humano" (7), disse Barthes – e fazendo-se eco com seu perfil ascendente da forma do penhasco do qual indica seu ponto mais alto. Mas, mesmo quando este perfil geometrizado se torna uma prova de sua vontade heróica e de sua aspiração ao atemporal e ao arquetípico, permanece esse outro componente – a base – associado ao crescimento natural, cataclismático, da rocha que dá origem à forma geométrica mais pura. A cobertura não coroa a casa, se identifica com ela, acessível e duplamente orientada, é um simples fundo para o livre jogo das forças da natureza e do movimento do sol. A entrada se encontra em um lugar incerto, disfarçada entre as demais aberturas, no entanto, vários caminhos escalonados confluem à ela. As aberturas, variadas em sua posição e em seu tamanho, mantêm a integridade voluntária da casa ocultando seu conteúdo. Por dentro são simples molduras para a contemplação do espetáculo da natureza, absolutamente fechadas como corresponde ao que se encontra imerso no mundo nada dominável do natural.

Um sentimento absolutamente oposto parece provocar a casa construída por Frank Lloyd Wright para a família Kaufmann entre 1935 e 1937 onde, segundo o próprio filho da família, Edgar Kaufmann, "se produz o contato direto entre o homem e a natureza, estabelecendo entre eles uma agradável relação" (8). Esta casa, conhecida precisamente com o apelido de Fallingwater (cascata), um acidente natural, está tão dominada pelas forças da implantação como a Vila Malaparte, mesmo que neste caso, seja Bear Run, um pequeno riacho de somente seis quilômetros, o motivo para a profunda reconsideração da arquitetura doméstica que Wright leva a cabo, já com 67 anos de idade e após quase dez de inatividade professional.

Os Kaufmann, homens de negócios que tinham realizado um programa de reocupação na zona de Bear Run, dentro da região dos Apalaches no Estado da Pensilvânia, fazem a encomenda a Frank Loyd Wright de uma casa de verão dentro de um sítio de 500 hectares. Depois de um primeiro estudo com a casa na borda mais acessível, Wright, em acordo com Kaufmann, decide implantar a casa justamente sobre uma das cascatas do riacho Bear Run, em uma posição que permitia uma melhor orientação em relação ao sol, mas que exigia a construção de uma ponte para passar ao outro lado. Com esta decisão, Wright tenta fazer sentir intensamente a natureza desde a casa, através de uma participação extremamente próxima ao seu constante fluir, ampliando nos desníveis da cascata e presente também no crescimento do bosque recém plantado. Quando Wright conheceu o lugar, conta Edgar Kaufmann, que era ajudante dele em Taliesin, "apreciou imediatamente o potente ruído das cascatas, a vitalidade do bosque jovem e o dramatismo das rochas, considerando que estes deveriam ser os elementos que tinham que se entretecer com os serenos espaços de sua estrutura". A casa, continua Kaufmann, "aparece firmemente ancorada à solidez do terreno e, apesar de seus amplos panos envidraçados, é protetora em seu interior como uma caverna; parece, enfim, falar de um mundo em que o homem e os processos naturais, o artificial e o natural, se encontram em total harmonia" (9).

A natureza de Fallingwater é, entretanto, uma natureza em escala reduzida, uma natureza civilizada. Bear Run não é mais que um pequeno riacho, como são as cascatas que originam o seu percurso; basta olhá-las em relação à altura da casa. Existe, por outro lado, uma paisagem colonizada – com uma ponte e um caminho existente – anterior à construção da casa, do que esta se apropriará deixando pegadas mais além de seus limites da nova ponte, a pérgola ou a Casa de Hóspedes. A casa, o que faz, é reduzir as distâncias e focalizar suas formas, antes dispersas, sobre um pequeno ambiente dentro do qual se produz todo o espetáculo do natural à uma escala reduzida. Uma surpreendente transmutação do gosto pelos horizontes sem limites e às grandes distâncias próprias das paisagens americanas.

Dentro deste quadro, Wright responde à natureza fazendo com que a casa seja uma continuação da estrutura estratificada do relevo, abaixo do qual passa o riacho, ou também fazendo com que a casa surja como os galhos do tronco de uma árvore, quer dizer, como uma forma nascida do crescimento orgânico e incrustada na própria natureza. Nesse sentido também, Fallingwater pode entender-se como a vontade de estender à arquitetura as leis formativas do natural, neste caso no mais pausado crescimento orgânico; não em vão a idéia de forma orgânica é, como indicaram Morton e Lucia White, "um dos fundamentos em Wrigth e arranca a estética romântica que Emerson tomou diretamente de Coleridge" (10). Para Wrigth a forma orgânica – que se desenvolve a partir de dentro do material – se opõem à forma mecânica – imposta ao material a partir de fora dele – e toda habitação deveria ser uma forma orgânica, fortemente enraizada ao chão e fazendo surgir o ornamento de sua própria forma. Mas, ao contrário dos românticos, Wrigth, como Emerson, não contrapõem natureza e civilização, nem identifica esta como o urbano; para ele, a especulação racional, própria da natureza intocada, é um valor superior ao da experimentação, própria da cidade. Como conseqüência, o mito da natureza não é em Wright um mito idealista, mas sim, um mito que tem a ver com as organizações que, outra vez usando palavras de Northrop Frye, podemos chamar de "realistas, enquanto tem mais relação com a experiência humana e a representação que com o idealista da forma" (11).

Wright como Libera, coloca a casa ao mesmo tempo sobre e no interior da natureza; mas ao contrário dele, faz frente à singulariedade da implantação com a total decomposição do volume do edifício em uma série de estratos horizontais somente sustentados pelo eixo vertical da grande chaminé de pedra. A presença de uma oposição entre o racional / horizontal e o vertical / emocional – segundo a terminologia de Bruno Zevi – e de um forte contraste entre os materiais – rebocos lisos nos parapeitos dos terraços e pedras irregulares e rugosas na chaminé – mostra seu desejo de explorar ao máximo a estratégia formal da decomposição. Não existe uma base firme sobre a qual o edifício se assente, como também não existe uma cobertura única e identificável como seu arremate superior; a casa se desprende em elementos sucessivos que vão crescendo desigualmente, como acontece nos organismos vivos, mesmo que, como contraponto a este desprendimento orgânico, possa se ver também a insistente repetição das formas em balanço, uma afirmação de sua artificialidade.

Apesar de seu crescimento em direção ao alto, Fallingwater nada tem a ver com a ascensão a um resultado, daí sua ausência de cobertura, mas sim, com a imagem momentânea de cada uma de suas formas, seus estratos, liberados de seus apoios sobre a terra. O edifício, mais que um objeto sintético, é a soma de formas parciais que surgem individualmente, diretas e solitárias. A apropriação da natureza se produz através de uma imersão literal nela, uma vontade de participar em suas leis e uma dramatização dos próprios contrastes naturais. Assim, a imagem da casa suspensa no vazio, elevada, se sobrepõem à esta outra imagem, de caverna protegida pela rocha, e envolta pela espessa vegetação do bosque. Da mesma maneira, ao dinamismo, ao movimento dos planos horizontais, se sobrepõem a imagem de impassividade ante o fluir constante da natureza e da suspensão equilibrada da vida cotidiana. (Daí a ausência de linhas oblíquas, inclusive nas escadas, comentada por Robert Venturi). As aberturas, amplos panos envidraçados que se prolongam nos terraços, permitem uma contemplação da paisagem sem obstáculos, projetando os moradores da casa dentro dela. Esta mesma projeção para o exterior e a intercomunicação com a paisagem, impedem, por sua vez, que exista uma entrada diferenciada e conseqüentemente uma fachada concebida para tal.

Feita de uma arquitetura de continuidades, a Casa Kaufmann, ao tentar evocar os processos de crescimento orgânicos, adquire uma dramaticidade que é mais uma dramaticidade construtiva do que um sentimento dramático do natural. Nela se produz um contato com a natureza, sem distância, transformando inclusive o riacho em uma piscina natural acessível desde a sala de estar. O natural é aqui civilizado, e a falta de apoio, dá indício do abismo que se mostra nas visões da casa debaixo, está em todo caso dentro das dimensões do artificial e absolutamente controlado pelo homem.

Chegamos, com isto ao ponto de examinar o caráter doméstico da Fallingwater, obra de um arquiteto excepcionalmente dotado neste terreno e com uma ampla experiência na construção de residências. Em relação a outras casas de Wright, esta não parece oferecer mais variações em sua organização interna que uma concentração dos espaços comuns entorno da sala de estar e uma maior especialização e redução do tamanho dos dormitórios, cada um com seu próprio banheiro. Mas, mesmo que permaneçam os mesmos espaços, se produz na Fallingwater um esvaziamento do seu conteúdo – doméstico – em favor de sua forma – natural – o que já podia adivinhar-se na renúncia de um dos elementos mais características da arquitetura doméstica de Wright: a cobertura. A casa tem vida no seu interior e inclusive marca com a presença da chaminé todos os cômodos principais, os quais são projetados para fora procurando uma total comunicação com a natureza, apresentando-se essencialmente como um espetáculo de amplificação dos fenômenos naturais – estratificação, crescimento, fluxo – através da arquitetura. O espaço interior, reduto da vida doméstica, se vê impulsionado também a reproduzir – com a horizontalidade da alvenaria, a carpintaria existente no exterior. O próprio espaço da caverna, quase subterrânea, que envolve a casa tentará escapar para fora em busca da presença do natural.

Sem qualificação material alguma, no pólo oposto, a Vila Malaparte nos oferece um interior críptico onde a divisão em dois – as duas portas iguais – se interpõe a sala terminal aberta à paisagem. Apesar, em todos os desenhos como nas fotografias da casa, a Vila Malaparte nos mostra abertamente em seu interior certos atributos ao doméstico – poltronas, mesa, chaminé –, objetos aparentemente triviais, mas absolutamente necessários. Nesta situação, este exibicionismo deve entender-se como uma audácia, como afirma Barthes dos atores retratados por d’Harcourt (12), está reservada aos deuses ou aos reis que em certas oportunidades não temem parecer tão homens como os demais, e portanto, com lares mortais com poltronas e chaminés.

Por cima de sua condições domésticas, não há dúvida de que tanto a Vila Malaparte como a Fallingwater são, utilizando de novo as palavras de Roland Barthes, espatáculos excessivos (13) no que resulta essencial a sua imersão na natureza. Se a primeira é um espetáculo solar, uma arquitetura banhada permanentemente por uma luz sem sombra, a segunda é um espetáculo de claros e escuros. Idêntica comparação pode ser feita através da presença da água em ambos os casos, envolvente e imutável em Capri e em constante fluir em Bear Run. Como vimos, as duas levam a cabo uma espécie de esvaziamento de seu espaço interior, próprio da vida doméstica, em favor do imponente de sua forma externa. A Vila Malaparte é um traço desenhado com precisão, sem volume, que define a caixa fechada, enquanto que a Casa Kaufmann é um conjunto de fissuras que deixam escapar o espaço interno.

Como exemplos de arquitetura doméstica, a Vila Malaparte e a Casa Kaufmann são singulares enquanto parecem renunciar a dar uma resposta direta a suas condicionantes e a expressar, como costuma ser habitual, seus caracteres através da conversão das formas dos elementos componentes – coberturas, chaminés, pórticos – em símbolos da própria domesticidade do edifício. Só um dos condicionantes específicos do doméstico, o de seu pequeno tamanho, encontra direta satisfação nas estratégias formais utilizadas em cada uma delas: como forma (ou volume) rígida e unitária em um caso e como forma (ou volume) totalmente livre em outro. Ao escolher esta forma externa, tanto Libera como Wright, o que tratam de produzir é uma amplificação do pequeno edifício doméstico imprescindível para apropriar-se da natureza circundante: na Vila Malaparte, esta se produz por extensão, irradiando sua influência pelas grandes distâncias tal como é próprio da forma monumental; na Casa Kaufmann, pelo contrário, se produz por concentração, atuando a forma orgânica como uma lente de aproximação que converte à pequena paisagem de Bear Run em um espetáculo natural de incomparável grandeza. A geometria, essencial no desenvolvimento de ambos edifícios, ilustra mesmo assim tendências arquitetônicas contrapostas em Libera e Wright: para a integridade em um e para a total decomposição em outro. A absoluta carência de referências ortogonais, e com o domínio das linhas oblíquas, na Vila Malaparte contrasta com a imposição de algumas coordenadas na totalidade da construção ou inclusive ao que está mais além dela, como é o poente, na Casa Kaufmann. Este feito tem uma especial importância se se considera a influência que estes edifícios podem ter exercido sobre arquiteturas mais recentes – racionalistas e realistas respectivamente – e também se são vistas como precedentes das tendências italianas em direção à depuração geométrica e americanas em direção à total decomposição.

A clareza formal, a absoluta evidência de um gesto único faz com que o exterior da Vila Malaparte seja o essencial de um edifício cujo hermetismo nos impulsiona a adivinhar a natureza – mítica – de seu conteúdo. A Casa Kaufmann, com sua alternância de cheios e vazios, empurra para fora o conteúdo doméstico em busca de uma participação mais estreita com a natureza, ainda que conservando o mito da caverna, da proteção da casa frente ao mundo exterior, na textura rústica dos pilares de pedra na pressão dos tetos excessivamente baixos. O vazio essencial da caixa fechada que é a Vila Malaparte se contrapõe assim a um espaço real que na Casa Kaufmann escapa pelos rasgos horizontais até de se dispersar pela vegetação circundante. A estratificação, a forma descomposta que dá lugar à uma cascata de superfícies de pedra e água, é o meio do qual se serve Wright ao mesmo tempo para esvaziar o conteúdo doméstico da casa e responder, desde sua concepção da forma orgânica, ao entorno natural. Mas, do mesmo modo que o teórico poder expansivo dos balanços passa a ser aqui o que produz um estreitamento das distâncias entre arquitetura e natureza, se dá também uma interessante transmutação: o horizontal, associado ao terrestre e racional, aparece flutuando e com superfícies tensas enquanto que o vertical, simbólico e idealista, é pétreo e irregular e está fortemente ancorado à terra.

Do que foi dito até aqui, poderíamos concluir que, em relação com a Vila Malaparte, a Casa Kaufmann, se bem mais romântica por sua posição na ladeira, é igualmente espetacular e dramática em sua apropriação da paisagem natural. Se a Vila Malaparte era um espetáculo solar, esta é feita de dramáticos claro-escuros; se aquela era a imagem da ascensão ao triunfo, esta não é senão uma concatenação de formas isoladas; se aquela se apropriava da paisagem por extensão, esta o faz por concentração; se aquela estava vazia de interioridade numa caixa hermeticamente fechada, esta se esvazia por estar cheia de fissuras; se, enfim, aquela supunha um congelamento do tempo e uma busca metafísica da essência, esta trata de realizar-se no fluir contínuo da natureza e seu próprio tempo, seu crescimento. E poderíamos concluir também reconhecendo nestas obras o poder liberador da natureza, que exige ao arquiteto colocar-se frente a ela sem a carga das convenções ou da história.

Os brilhantes dos resultados formais conseguidos por Libera e Wright não devem, entretanto, impedir reconhecer os limites nos que se enquadram estas arquiteturas, transformadas das imediatamente em ícones da modernidade tanto ou mais que aqueles os que vinham a substituir. Certamente, as obras canônicas dos finais dos anos vinte haviam sustentado a potência de sua imagem moderna em seu lógico e ativo sistema construtivo e numa nova concepção do espaço interior. A Vila Malaparte e a Casa Kaufmann, surgidas a uma década depois e realizadas por arquitetos em todo caso marginais à ortodoxia moderna, ao mesmo tempo que põe em questão seus conteúdos domésticos, intentam manter a imagem moderna mas, eliminado o suporte construtivo e espacial que proporcionava a arquitetura moderna e substituindo pela força externa da natureza.

A indiferença construtiva de Libera, que leva a realizar a caixa homogênea que é a Vila Malaparte, discorre em paralelo com o risco construtivo que Wright assume nos amplos balanços da Fallingwater. E a repetição quase exata do teatro ao ar livre do Palácio de Congressos de Roma por parte de Libera num edifício doméstico, como puro gesto simbólico, supõe uma dependência de seu próprio universo formal tão forte como a de Wright invertendo na casa o caráter do espaço absolutamente fechado do edifício que quase ao mesmo tempo está construindo para a Johnson Wax. Quer dizer, tanto Libera como Wright se servem momentaneamente da natureza para colocar à prova a permanência da modernidade na arquitetura sem seus suportes construtivos e espaciais, violentando a forma em duas direções opostas: a síntese e a decomposição analítica.

Objetos singulares nascidos fora da corrente dominante da arquitetura moderna, estas duas casa figuram entre os pouquíssimos casos em que a arquitetura do século XX se colocou em meio à abrumadora presença da beleza natural para tomar de sua força e grandiosidade. Mas, se isso supõe que, tanto na Vila Malaparte como na Casa Kaufmann, mais que um recurso à antiga estética e uma anulação das antíteses moderna entre a arte e a natureza, uma constatação da autonomia do sistema formal da modernidade, capaz de subsistir despojado inclusive de seus próprios supostos, também é necessário reconhecer que, em sua dependência da natureza, o caráter doméstico dos edifícios resulta seriamente comprometido. É a natureza que introduz seus materiais e suas lei formativas, com o sentimento do heróico e os mitos do abismal e o terrível, num mundo da arquitetura doméstica moderna, subvertendo assim o caráter terrestre e cotidiano que havia dominado todo seu desenvolvimento.

O espelhismo de uma volta à natureza, como meio para liberar a arquitetura moderna de seus próprios dogmas formais, pode ter na Vila Malaparte e na Casa Kaufmann um momento de realidade em que a própria arquitetura ressoa com especial intensidade no eco produzido pela paisagem. Entretanto, neste encontro, a arquitetura permanece, desenhando-se com autonomia não só com respeito à paisagem mas também com respeito às imagens históricas associadas com os antigos mitos e a suas condicionantes materiais. A imagem profundamente renovada que oferecem estas duas obras as entronca diretamente com a arquitetura moderna em seu sentido mais amplo, nunca subjugada ao preexistente nem ao natural; mas, esta independência do sistema formal da modernidade para produzir imagens sem referência alguma às convenções do doméstico tem o preço de fazer depender, necessariamente, o eventual caráter doméstico dos edifícios da presença ativa da natureza. Sem ela, a arquitetura de Adalberto Libera e Frank Lloyd permanece, porque está por sobre ela e se serve dela como uma mera condição; agora bem, a Vila Malaparte e a Casa Kaufmann existem como casas só enquanto tomam emprestada da natureza a força necessária para sustentar um caráter não desenhado pela ausência do que são suas qualidades específicas de casas para a vida do homem. Sem uma especialidade interna que acuse a prioridade das atividades próprias da vida diária, sem cobertura protetora e sem entrada diferenciada, estas duas construções são indubitavelmente arquiteturas, mas somente são casas de um modo efêmero e instável.

notas

1
Artigo publicado originalmente na revista Arquitectura nº 269, novembro/dezembro de 1987, Colégio Oficial de Arquitetos de Madrid, p. 20-31. Tradução de Mario Figueroa (arquiteto formado pela FAU PUC-Campinas em 1988. Doutorando pela FAU USP. Professor do Mackenzie e na Unip-Alphaville), da UNIABC e UNIPAR) e Luciana Brasil (arquiteta formada pelo Mackenzie em 1995. Mestranda pela FAU USP).

2
ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Madrid, Taurus Ediciones, 1971.

3
Idem, ibidem.

4
QUILICI, Vieri. Adalberto Libera, l'architettura come ideale. Roma, Officina Edizioni, 1981.

5
HEDJUK, John. "Casa come me. Cable from Milan" in Domus, nº 605, abr. 1980.

6
FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism. Princeton, Princeton University Press, 1971.

7
BARTHES, Roland. Mitologias. Madrid, Siglo XXI Editores, 1980 (publicação original: Editions du Seuil, 1957)

8
KAUFMANN JR., Edgard. "Prólogo". In HOFFMAN. Donald. Frank L. Wright"s Fallingwater. The House and Its History. New York, Dover Publications, 1978.

9
Idem, ibidem.

10
WHITE, Morton and Lucia. The Intelectual versus the City. A Mentor Book. New York, The New American Library, 1964.

11
FRYE, Northop. Op. cit.

12
BARTHES, Roland. Op. cit.

13
Idem, ibidem.

sobre o autor

Maria Teresa Muñoz é arquiteta formada em 1972. Mestrado em Arquitetura pela Universidade de Toronto em 1974. Doutorado pela Politécnica de Madrid em 1982.Já publicou diversos artigos em revistas especializadas. Na época deste artigo era a Diretora do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura de Madrid.

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