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PINTO, Fernando. A relatividade do movimento no patrimônio. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 014.09, Vitruvius, jul. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.014/872>.

"Um arqueólogo duma civilização adiantada encontra um tratado de geometria euclidiana sem figuras. Descobrirá em que sentido estão empregadas nos teoremas as palavras ponto, reta e plano. Reconhecerá também como esses teoremas são deduzidos uns dos outros. Poderá até mesmo estabelecer novos teoremas segundo as regras reconhecidas. Mas a formação dos teoremas continuará a ser para ele um jogo de palavras vazias, enquanto não 'puder imaginar qualquer coisa' que corresponda às palavras ponto, reta, plano, etc. Só quando isto acontecer é que a geometria passará a ter, para ele, um verdadeiro conteúdo. O mesmo se passará com a mecânica analítica ou com quaisquer outras exposições das ciências lógico-dedutivas." (1)

Escreveu Albert Einstein, a propósito da explicação da sua famosa teoria da relatividade a leigos como eu. O que acho fascinante neste excerto, é a sua proximidade com aquilo que acontece nestas nossas áreas do patrimônio arquitetônico e da arqueologia. Como interpretar a organização funcional de uma construção da qual só se conhece a forma física? Como saber que tipo de utilização teria? E que gênero de vivências? De imediato me lembrei da Casa del Fauno, em Pompeia. De fato, chama-se del Fauno, pelas pinturas que tem, decorando uma das paredes. O fato deverá ser visto em sentido contrário: A parede tem o fauno porque quem sobre isso decidiu, de alguma forma atribuía importância a essa representação. Hoje, é essa característica que lhe dá o nome, tornando-se um mistério o fato de alguém ter resolvido ter, na intimidade de sua casa, um fauno pintado numa parede.

De certa forma, e parafraseando Einstein, estamos a jogar com "palavras vazias" como ponto, reta ou plano, sem muito bem saber o que isso verdadeiramente quer dizer.

O exemplo mais direto e flagrante, poderá contudo ser dado pela Pedra de Roseta. Através dela, conseguiu-se decifrar o que foi escrito nos túmulos dos faraós. Contudo, porque não nos deu a sonoridade da língua, não nos permitiu sequer saber se a escrita era poética ou se jogava com a sonoridade. Para nós, os hieróglifos continuam a ser pouco mais que "palavras vazias", das quais sabemos o sentido.

E cito novamente Einstein: "Desde a antiguidade grega é sabido que, para a descrição do movimento dum corpo, é preciso haver outro corpo que sirva de referência ao movimento do primeiro.(...) Na física, chama-se ao corpo que serve de referência espacial aos fenómenos, sistema de coordenadas" (2). Ao sistema de coordenadas escolhido num dado momento como referencia para análise do movimento, chama Einstein "sistema inercial". Daí parte, se não traio o seu genial raciocínio, para a seguinte proposição: "Um sistema de coordenadas, movendo-se uniformemente e em linha reta relativamente a um sistema inercial, é igualmente um sistema inercial. Compreende-se por "princípio especial da relatividade", a generalização desta proposição a todo e qualquer fenômeno da natureza. Segundo este princípio especial, toda a lei geral da natureza que vale em relação a um sistema de coordenadas K, também tem de valer inalteravelmente em referência a uma sistema de coordenadas K1, que esteja em movimento uniforme de translação relativamente a K" (3).

Ora bem, partindo do princípio que o ser humano (ou a Humanidade) é esse sistema de referência K (ou sistema inercial) de Einstein, as civilizações aparecem-nos como sistemas de tipo K1, isto é, como translações do sistema inicial. Do sistema K tomam (simplificadamente), o ponto de partida. Cada sistema civilizacional "K1" evolui com uma velocidade, um sentido e uma direção próprios, na sua própria marcha cultural, tornando-se também ele próprio, num sistema inercial. Assim se justificam as "vanguardas" e as "culturas marginais", que dimanam desse sistema K1, nele contudo se integrando e com ele interagindo. Mesmo admitindo, e por pura simplificação, que todas as civilizações têm a mesma base inicial, o tal "K", concluímos que o ponto em que se encontram umas em relação ás outras não pode ser comparado entre si. Essa comparação só teria sentido se feita a partir do sistema inercial inicial (o K), que de si é um ponto teórico impossível de determinar.

Qualquer comparação feita entre o nosso sistema e outro, incorre em erros evidentes de apreciação. Tentamos comparar um sistema a partir de outro, com direção, sentido e velocidade diferentes. Mas é esse erro que sistematicamente cometemos. Mesmo quando aceitamos que os diferentes sistemas culturais têm velocidades diferentes, ou seja, quando aceitamos que uns são mais "rápidos" que outros, e isso parece ser comumente aceite, acreditamos que o sentido e a direção são comuns a todos, isto é, só podem ser "os nossos". Por outras palavras, algumas civilizações "ainda não chegaram" ao nível da nossa ou, humildemente, numa espécie de ato de contrição relativamente a outras, "nós ainda não chegamos lá", mas um dia assim seremos. Analisando outros sistemas culturais a partir do ponto em que nos encontramos na nossa própria translação, tomando-nos como sistema inercial de referência, cometemos erros grosseiros.

Sendo os aborígenes australianos tidos como um dos povos culturalmente mais atrasados do mundo, inventaram o boomerang e a forma de o lançar. Tudo aquilo que o mundo "civilizado" e "evoluído" conseguiu fazer até hoje, foi copiar-lhe a forma física e aprender a maneira de o manejar, ensaiando ainda uma parafernália de formulas que justifiquem aquela estranha forma. Estará então a nossa civilização mais atrasada que a aborígene no capítulo dos boomerangs, e mais avançada em todos os outros? Não é disto que se trata. O fato é que a civilização aborígene evoluiu com uma velocidade, um sentido e uma direção diferentes das nossas. Como tal, construiu uma filosofia e um modo de vida que dificilmente poderão ser comparados com os nossos, e portanto de ser entendidos.

É com um espírito essencialmente comparativo que avaliamos as outras civilizações. Sem liminarmente as aceitar primeiro. Os descobrimentos e as colonizações que se lhe seguiram provocaram um dos "cortes transversais" mais notáveis de que há memória. Num lapso temporal relativamente curto, expusemos a nossa civilização ocidental a um leque bastante alargado de outras civilizações, fixando a nossa como padrão e paradigma. Fixamos "atrasos" e "avanços" à nossa imagem e semelhança, catalogamos comportamentos e civilizações. São deliciosas algumas das descrições dos nossos navegadores, a propósito dos povos encontrados, bem como as descrições desses mesmos povos, destes homens barbudos e algo rudes que do mar lhes apareciam. "Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as suas vergonhas" (4). Assim descrevia Pero Vaz de Caminha os primeiros índios que viu em Terras de Vera Cruz. A nudez dos índios é uma imagem recorrente na descrição do cronista. Segundo Manuel Viegas Guerreiro, "a sua nudez demonstraria a sua inocência, pois, como não tinham sido corrompidos pela civilização, eram naturalmente bons, tal como Deus os tinha criado, vivendo ainda no seio de uma natureza sã e acolhedora. Estavam, então, isentos do pecado, e aguardavam apenas que até eles fosse levada a palavra de Deus para que se tornassem bons cristãos" (5). Por outras palavras, só ainda não eram cristãos.

É esta atitude que, transposta para as análises do patrimônio, leva a que freqüentemente se negligenciem fatores que não se compreendem. A partir daí, é fácil a obliteração de detalhes que poderão – ou poderiam – vir a fornecer dados interpretativos importantes de uma realidade que não é a nossa, ou que já não é a nossa, no caso do nosso próprio patrimônio. Ocorre-me a este propósito uma historieta que o meu avô contava, sobre um arrolamento de bens levado a cabo algures no Distrito de Aveiro, no início deste século que agora acaba. Rezava o rol que, entre os objetos havia um, e cito de memória, "objeto de uso desconhecido, em forma de uma guitarra". Tratava-se simplesmente, de um bidé. Aqui, ao menos, houve a preocupação de uma descrição o mais precisa possível, assumindo-se desde logo, a incapacidade de interpretação do objeto.

É fundamental que, ao tentar interpretar uma realidade desconhecida, cada um se coloque numa posição descomprometida e aberta em relação ao objeto de estudo. Embora não seja uma posição fácil, é essencial tentar ao menos exercitá-la. Muitos dos erros cometidos em nome da manutenção das peças a preservar e restaurar são devidos à incompreensão dos valores profundos e da gênese (entendida no seu sentido mais profundo) das próprias peças. O que importa reter é que, quer na avaliação do patrimônio legado pelos nossos antepassados, quer mais ainda na apreciação do patrimônio de outros povos e civilizações, deveremos ter uma atitude de humildade, de respeito e de assunção do desconhecimento que desses tempos ou dessas civilizações temos. Por muito que saibamos, o nosso conhecimento é sempre parcial e eventualmente tendencioso, pois é sempre um ponto de vista e não o produto direto da vivência no mesmo tempo e no mesmo espaço. A título de exemplo, eis aqui um breve e delicioso excerto de um escrito atribuído a Leonardo de Vinci, "Sobre o Comportamento Impróprio à Mesa do Meu Senhor" (6). Recordemos que este "Meu Senhor" era Ludovico Sforza, il Moro, homem de grande dimensão social e cultural na península itálica de então, senhor da corte milanesa de quem Leonardo era "Mestre de Festas e Banquetes":

"Há hábitos impróprios, de que um convidado para a mesa do meu Amo se deve abster, sendo a lista que se segue baseada nas observações que fiz daqueles que tomaram assento junto do meu Senhor durante o ano que passou:
Nenhum convidado se deve sentar em cima da mesa, nem de costas voltadas para ela, nem ao colo de outro comensal.
Nem deve por as pernas em cima da mesa.
Nem se deve sentar debaixo da mesa, por pouco tempo que seja.
Não deve tirar comida do prato do vizinho, sem primeiro pedir licença.
Não deve colocar no prato do vizinho partes desagradáveis ou já mastigadas da sua própria comida, sem que primeiro lhe tenha pedido licença.
Não deve limpar a sua faca às vestes do vizinho.
Não deve retirar comida da mesa, guardando-a na bolsa ou na bota para consumo ulterior.
Não deve cuspir à frente do meu Senhor.
Nem ao seu lado.
Não deve beliscar ou dar palmadas no vizinho.
Não deve meter o dedo no nariz ou no ouvido durante a conversação.
Não deve fazer propostas obscenas aos pagens do meu Senhor, nem abusar dos corpos deles.
Nem deve pegar fogo ao vizinho enquanto se encontra à mesa.
Não deve agredir um criado (a menos que seja em defesa própria).
E, se sentir necessidade de vomitar, que saia da mesa.
Tal como se tiver de urinar."

Pela parte que me toca, e após a leitura deste livro, passei a fazer uma outra imagem do que seria a civilização milanesa de então e do tão (justamente) louvado Renascimento. O "negativo" de Leonardo produz uma "fotografia" em minha opinião arrasadora da imagem normalmente atribuída a este período. A agitação, o cheiro, o barulho que daqui dimanam, emprestam uma vida diferente às faustosas e amplas salas de qualquer palácio renascentista, para quem hoje as visita.

E volto então à questão inicial: Os palácio que nos legaram (por exemplo os Sforza), não são mais que as "palavras vazias" de que nos fala Einstein. Neste caso, e dado haver escritos que nos permitem (ainda segundo a expressão de Einstein) "imaginar qualquer coisa", poderemos interpretar os tais "ponto", "reta" e "plano" da construção, dando-nos portanto pistas para nela podermos intervir, sem muito trair a história e a verdade que pretendemos preservar. Mas que dizer de tantos outros imóveis "mudos", que habitam este nosso mundo? E que dizer também de tantas instituições e profissionais de patrimônio que agem como se essas realidades fossem idênticas às nossas ? Como se pode falar em "reutilização", "recuperação" ou mesmo "restauro" de qualquer peça, esquecendo o fosso que nos separa da concepção, construção e vivência dessa mesma peça?

Não falemos já da perda de conhecimento que hoje temos dos materiais utilizados e do virtuosismo dos artesãos nas suas técnicas de aplicação.

Respeito Gabriel Pereira quando escreve "restaurar um edifício não é conservá-lo, repará-lo ou refaze-lo impecavelmente", mas sim "estabelecê-lo em um estado completo, que é possível que nunca tenha existido" (7), embora não concorde com ele ou com Viollet-le-Duc, que o inspirou. Mas eu vejo-os a partir do final do século XX. Há que entender que os conceitos e os objetivos da preservação monumental de então, não são os de hoje. Há portanto que respeitá-los e tentar compreender, na medida do possível, as suas razões. O próprio conceito de patrimônio como hoje o concebemos, não existia na civilização européia ou portuguesa de então. Hoje, vê-mo-lo muito mais como testemunho e memória de uma ou várias épocas do que como enaltecimento cego dos nossos antepassados. Na altura, só os símbolos da grandeza e enaltecimento pátrios eram valorizados. Hoje, o conceito que utilizamos é bastante mais abrangente e democrático. E também mais respeitador da essência das próprias coisas.

É por isso que conceitos como o de reutilização ou reabilitação do patrimônio cultural construído têm necessariamente que ser entendidos a partir do ponto de vista do imóvel e da sua própria flexibilidade, e não partindo das hipóteses de reuso. Os usos são temporais. Tanto assim que o uso para o qual foram concebidos já não serve. O reuso tem de servir o imóvel e não o contrário É o valor patrimonial que tem de prevalecer. Este, enquanto dura, é transversal ao tempo e ao espaço, muito para além da nossa própria existência.

É natural que estes conceitos venham a variar de intensidade ou mesmo a mudar. É possível que hoje nos agarremos ao patrimônio um pouco como a uma bóia salvadora que resiste à grande fúria do mar encapelado que é a vertiginosa marcha desta nossa civilização. Mas o fato é que hoje é assim. Precisamos destas bóias ou âncoras que nos referenciem a qualquer coisa transversal ao tempo. De forma a podermos saber de onde viemos e onde estamos. E assim poderemos saber para onde vamos.

notas

1
EINSTEIN, Albert, Como vejo o mundo, ENP, Lisboa, 1962, 2ª edição, p. 234-235.

2
Idem, p. 215.

3
Idem, p. 216.

4
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, Parque Expo 98, Lisboa, 1997, p. 11.

5
GUERREIRO, M. Viegas, citado em Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, Parque Expo 98, Lisboa, 1997, p. 14.

6
VINCI, Leonardo da. Apontamentos de Cozinha de Leonardo da Vinci, Edições Atena, Lisboa, 1997, p. 98-99.

7
Citado em Boletim nº 51 "Castelo de Silves", Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, 1948, p. 25

sobre o autor

Fernando Pinto é arquiteto em Évora Portugal e membro do ICOMOS, Earthen Architecture I.S. Committee

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