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architexts ISSN 1809-6298


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A teoria da arquitetura constituiu-se como um campo de conhecimento, e que, nas últimas décadas, difundiu-se entre público e crítica, espectadores e arquitetos, mas, em contrapartida, o conhecimento sobre arquitetura que decorre da teoria, efetivamente,


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VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. Na vida das ruas. Escrevendo muito depois de Heidegger. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 056.05, Vitruvius, jan. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/513>.

I

O fato desta mesa redonda ainda intitular-se a partir do texto, por assim dizer, arquitetônico, de Martin Heidegger, diz muito sobre o destino daquela conferência entre os arquitetos. Mesmo hoje, 52 anos depois, ainda nos perguntamos o que fazer com aquelas palavras. Certamente que se trata de algo com que lidamos todos os dias, as habitações, os lares, mas, descontadas a metáfora e a alegoria, certamente permitidas pela tonalidade alusiva do texto heideggeriano, não creio que quaisquer daqueles conceitos possam ter fundamentado operativamente os projetos de arquitetura.

Não obstante, Construir, habitar, pensar, se inscreve na tradição recente da teoria da arquitetura, exatamente naquela denominada abordagem fenomenológica, e da qual Heidegger é um dentre alguns representantes, todos eles filósofos de corte clássico: Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Gaston Bachelard. Afora Husserl, todos eles escreveram mais ou menos à mesma época (2), no contexto de posteridade da Segunda Guerra Mundial, quando o campo da arquitetura delineava-se de modo diverso: seu habitante típico é outro; não mais a figura heróica e hipotética do operário, morador da metrópole, mas a classe média das grandes cidades terciárias.

Esse avizinhar-se da arquitetura com a filosofia fenomenológica implicou em reorientar a teoria e a produção da Arquitetura para algo diferente do pragmatismo e do realismo que pareciam ser a única resposta possível à indiferença plana das pessoas, dentro e diante dos lugares de se viver. É certo que a fenomenologia fez a crítica de determinados padrões caros à arquitetura, tais como eficiência, funcionamento, etc., mas não deixa de ser uma contradição que justamente uma filosofia, que defendia desde seus começos um “retorno às coisas mesmas” em sua crueza e materialidade, tenha sido responsável pelos exageros na conceituação da arquitetura como representação simbólica. Ao fim e ao cabo, estudar Heidegger e cia. evidenciava o risco de perdermos o objeto arquitetônico, para ficar apenas com o discurso. Era preciso encontrar um modo diverso de raciocínio, que partisse da práxis, para fazer avançar uma abordagem fenomenológica da arquitetura.

II

O argumento recorrente acerca da dificuldade em pensar o que se denomina teoria da arquitetura revela, mais que um sintoma do momento de nossa disciplina, sua necessidade de legitimação. Os discursos da arquitetura já não podem mais ignorar a aporia a que chegam sempre que rastreiam nosso objeto, quer seja para denominá-lo, quer seja para dar-lhe circunscrição ou legitimação novas. Não houve frase mais comum na literatura recente sobre arquitetura do que aquela que estabelece a crise de nossa disciplina e profissão. Entretanto, tal crise não me parece ter se exaurido após tantos debates, e talvez porque não tenhamos nos apercebido da equivocidade do seu sentido.

Não se trata de discutir a resolução de uma crise, pois, desde que não há mais tratados, a arquitetura já não admite uma fundamentação única, última, normativa. Outra é sua teoria, ou melhor, são muitas e outras teorias e tal diversidade não mais se resolverá em uma convergência de princípios. A chamada crise decorre da dificuldade de enfrentamento do objeto da arquitetura, cuja natureza complexa, estabelecida nos textos inaugurais dos séculos XIX e XX, está longe de ser univocamente aceita. Em geral, os arquitetos resistem em reconhecer tal dificuldade sempre que se trata de estabelecer as premissas do próprio trabalho, pois fazê-lo implicaria então um esforço especulativo não raro considerado nos meios arquitetônicos dispendioso, senão supérfluo. Desse tipo de atitude é que surgem metodologias e manuais de projetação, bem como toda uma ordem de textos que reivindicam validade geral para cada enunciado seu ou pleiteiam a universalidade de suas definições de arquitetura. O discurso, nessas formas, é sem dúvida mais palatável e popular, mas se paga com a perda de relevância da especulação teórica para a arquitetura do mundo real. Ora, exatamente aí reside a aporia que mencionava. Não resta dúvida de que a teoria constituiu-se como um campo de conhecimento, e que, nas últimas décadas, difundiu-se entre público e crítica, espectadores e arquitetos, mas, em contrapartida, o conhecimento sobre arquitetura que decorre da teoria, efetivamente, avançou muito pouco (3).

Como reverter esse estado de coisas? De pouco ou quase nada nos serve uma teoria descarnada, que apenas toca a superfície dos problemas. Se a teoria da arquitetura deve dar conta da identificação e delimitação dos problemas que envolvem a práxis arquitetônica, é sua tarefa explicitar os modos como tais problemas se entretecem em seu objeto. Nesses termos, não é possível fazer teoria sem tomar o objeto em sua radicalidade; e nenhuma teoria será relevante para o status quo da arquitetura a menos que a natureza do objeto arquitetônico seja tomada em nova consideração. Somente assim veríamos se operar, conseqüentemente, transformações decisivas do discurso. Entendo que é preciso começar por modos de reflexão que permitam reenviar a arquitetura à cidade real: se a finalidade da teoria é alterar a consciência reflexiva que temos de nossas próprias práticas, então é preciso refletir sobre os modos atuais de experiência urbana (4).

Nos dias de hoje, quando a prática da cidade parece não significar mais que algo opaco, a metrópole é cidade que já não basta a si mesma (5), que se expande e cresce, “para além de todas as formalizações e de todas as categorias” (6). Ainda assim, é exatamente no domínio da cidade por experimentar que se vislumbram saídas. O que defendo aqui é uma estratégia de reflexão que reúna edifício e cidade (estratégia já vigente na historiografia atual da arquitetura) (7), de modo que teoria da arquitetura traduza teoria das práticas urbanas. A tese de que a reflexão sobre experiências urbanas pode-se fazer num registro diverso das categorizações, mais afeito ao inexato da filosofia, não é, de modo nenhum, nova (8). Encontra-se especialmente desenvolvida em textos seminais de Henri Lefebvre, nos quais o fundamento de uma teoria do espaço urbano é a experiência individual do habitante, e onde o autor persegue os nexos entre espacialidade/experiência, então analisados num cruzamento de fenomenologia, existencialismo e marxismo.

Geógrafos e sociólogos têm sido leitores assíduos de Lefebvre e importantes críticas à cidade têm advindo daí (9); porém, inversamente, o conceito lefebvriano de espaço permanece desconhecido para a maior parte dos arquitetos. Talvez pelo hermetismo do seu texto filosófico, talvez pelo ecletismo de seus temas, fato é que sua teoria ainda aguarda uma interpretação arquitetônica, sobretudo porque sua concepção de espaço bifurca-se nas direções da produção da cidade e da recepção dos lugares.

É preciso ler Lefebvre abandonando a expectativa de uma teoria prescritiva para a arquitetura: seu pensamento exige tanto o trabalho teórico quanto a análise empírica, e suas premissas estão dadas na observação das vivências cotidianas de homens e mulheres num universo urbano. Ainda que apresente a crítica da vida cotidiana como a principal articulação de sua teoria sobre o urbano, dali não se extrairá jamais tipologias de cidade, padrões de comportamento ou esquemas espaciais. Lefebvre recusa a tentação de elaborar mais um sistema. Prefere dizer que é preciso debruçar-se sobre a idéia de cotidiano para compreendê-lo como denominador comum para sistemas existentes – “denominador comum de atividades, locus e milieu de funções humanas” (10).

A mesma atitude filosófica, encontramo-la também em Gianni Vattimo, ainda que, nesse caso, sejam outros seus objetos de reflexão. Vattimo tem reclamado a reflexão sobre o cotidiano na forma do que chama pensamento fraco, instância de onde deve emergir um conceito de experiência válido no mundo atual:

“A experiência da qual devemos partir, e à qual devemos permanecer fiéis, é aquela do (que caberia qualificar como) cotidiano; experiência que se apresenta sempre repleta (e qualificada) do ponto de vista do conteúdo cultural. Não existem condições transcendentais de possibilidade da experiência, acessíveis mediante qualquer tipo de redução ou epoché que suspenda nossa pertença a determinados horizontes histórico-culturais, lingüísticos, categoriais. As condições de possibilidade da experiência se encontram sempre qualificadas.” (11)

Ora, não será por acaso que, ao trazer esses conceitos à nossa disciplina, falaremos de fenomenologias da arquitetura, uma vez que não é difícil reconhecer nesses filósofos a sentença husserliana para “retornar às coisas mesmas”, quando relacionam experiência e cotidiano: em Vattimo, trata-se de buscar refletir por meio de “um procedimento de corte empirista, porém desprovido de qualquer intento de iniciar-se por uma certa experiência pura ou purificada de todo condicionamento histórico-cultural” (12); em Lefebvre, “o cotidiano é o maior universal e a mais única condição, o mais social e o mais individualizado, o mais óbvio e o mais escondido. (...) Entretanto, o cotidiano é conceito; estabelecido e consolidado, designa afinal uma solitária referência para o senso comum” (13). O conceito de cotidiano, em ambos os autores, estabelece o terreno de antecedências sobre o qual se realiza a ação humana e a partir do qual todos podemos falar. Não se trata, então, de descrever a essência do cotidiano ou estabelecer sua natureza, mas, antes, de explorar o modo como agimos nele ou sobre ele. Tanto Vattimo como Lefebvre procedem àquilo que Edmund Hussel chamou Reaktiverung (14) – reativação: resgatar uma idéia do senso comum, reativar sua força especulativa quase desaparecida ali e descobrir seus fundamentos, mostrando quanto da práxis humana vem sendo por ela determinada.

III

O que defendo aqui é uma teoria da arquitetura articulada ao conceito de cotidiano, bem como à noção de espaço urbano que esse evoca. Na arquitetura atual, tão problemática quanto à fundação e diversidade do seu âmbito, já vão longe os dias em que podíamos aceitar como suficientes afirmações como a de Bruno Zevi, para quem “em torno do espaço, todos os fenômenos convergem, formam sistema” (15). Que o espaço é matéria da arquitetura, todos concordamos; mas, os modos de lidar com ele não mais convergem na unidade de um sistema. A racionalidade que rege tanto o pensamento do espaço como seu desenho tem mais de um sentido, se presta a mais de uma interpretação. A radicalidade do conceito de espaço em Lefebvre assenta exatamente na construção de uma analítica do espaço, resolvida numa tríade, que aponta sua complexidade. Em primeiro lugar, o espaço material, espaço que é percebido: situa-se entre a rotina diária e a realidade urbana, suas rotas, sua teia que liga lugares. É o espaço praticado das coisas, objetos, movimentos, atividades. Em segundo lugar, o espaço conceituado, espaço abstrato, em geral designado pelos cientistas, planejadores, arquitetos, e que é uma forma de conhecimento que possibilita os muitos modos de compreender o espaço necessário às práticas espaciais. Em terceiro lugar, o espaço vivido, as concepções de realidade que condicionam as ações. É o espaço de habitantes e usuários, vivido através de suas imagens, seus símbolos. Lefebvre o chama espaço de representação. Num valoroso artigo sobre as correlações entre história urbana e filosofia européia Carl Schorske sintetizaria a tríade de Lefebvre, dizendo que “ninguém pensa a cidade num isolamento hermético. Forma-se uma imagem dela por meio de um filtro da percepção derivado da cultura herdada e transformado pela experiência pessoal” (16).

Lefebvre faz uma descrição fenomenológica do espaço em ato. O que não é apenas uma enumeração de elementos constituintes do espaço, mas uma estratificação do fenômeno espaço, configurado necessariamente numa dimensão temporal e segundo a ação de um sujeito. Nas acepções do concebido, percebido, e vivido o conceito estabelece-se para além de espaço geométrico (espaço mental concebido pela matemática e pela filosofia) e espaço físico (na dimensão prático-sensível, de percepção da natureza). A hipótese central em Lefebvre é que não existe relação social fora do espaço. Relações sociais somente se concretizam enquanto relações espaciais. Ou seja, espaço é espaço social e inere à existência de modo que “pessoas fazem os lugares, lugares fazem as pessoas” (17). Essa dialética espaço-social permite reconfigurar a práxis da arquitetura, pois intervir no espaço passa a significar compreender sua dinâmica, entre a prática e a representação, e não mais manobrar seus atributos, buscando parâmetros para o desenho. Construção e interpretação de espaço não podem escolher uma acepção dentre três, mas estão desde sempre obrigadas a considerá-lo em sua diversidade.

Ora, pensemos na arquitetura de territórios, lugares e enclaves da cidade contemporânea: como compreender seus contextos híbridos, efêmeros? Como enfrentar suas transformações, deturpações tão aceleradas? Até que ponto podemos conhecer, de fato, os habitantes da Mega-cidade, da Cidade global (18) ou da Metápolis? (19)

No que toca ao projeto dos lugares da cidade, não há mais como fazê-los ingenuamente. Tampouco é possível o planejamento/desenho urbano como engenharia social, com sua pretensão totalizante, seja à direita ou à esquerda. Projetos urbanos exigem, como condição necessária, que nos debrucemos sobre a lógica da cidade que os acolherá. Não falo de uma ordenação lógica de desenhos e formas, pelo contrário. Claro está, para todos nós, o quanto duas décadas de consumo visual exauriu nossas cidades. Trata-se, entendo, de enfrentar os múltiplos sentidos da espacialidade urbana. Interpretá-los, sim, é que se põe como desafio! A tentação de controlar e homogeneizar os lugares, de estabelecer fronteiras e limites claros, bate-se com a rudeza do heterogêneo e a impenetrabilidade dos enclaves, com a realidade da mistura e da entropia. Destas, sabemos ainda muito, muitíssimo, pouco.

A tentativa de compreender o que as pessoas experimentam nos lugares e de que modo o fazem tem um efeito claro na teoria atual: já se investiga a questão da recepção da arquitetura em bases muito diversas das que demarcam as metodologias da avaliação pós-ocupação (APO) (de certa forma constituída em pseudo-paradigma desde os anos 70). A discussão sobre a experiência do espaço vem se diversificando, somando o que me permito denominar hermenêutica urbana. Grosso modo, essas abordagens recentes se esforçam por apreender em argumentações filosóficas os contrastes, as oposições, superposições e justaposições: “diferenças que emergem e se instauram no espaço – que não provêm do espaço enquanto tal, mas do que nele se instala, reunido, confrontado, pela/na realidade urbana” (20).

IV

O desafio de transitar entre mundos e realidades contraditórios e complexos está agarrado aos calcanhares de nós, brasileiros. Nossos contrastes humilhantes, uma covarde distância social, a ameaça permanente de deflagração de uma violência ainda mais generalizada desenham o nosso cotidiano. Vivemos hoje, na cidade brasileira, o seu limite (21). Contudo, tem havido no Brasil algumas ações decisivas, que vem colocando em questão a experiência concreta dos espaços, de modo a reformular o discurso teórico. A história da Cidade da reforma agrária nos dá a medida de tal forma de atuação.

A chamada Cidade da reforma agrária ou Cidade dos sem-terra ergueu-se no centro-oeste do Paraná, a partir de um dos maiores assentamentos da reforma agrária (Assentamento Ireno Alves dos Santos), na Fazenda Giacometti, cuja área era maior que a área da cidade de Curitiba (22). Hoje há onze arquitetos e urbanistas, ligados aos movimentos de moradia social, trabalhando junto aos assentados no projeto da cidade, e que ali estão desde 1996 (23). A invasão da área aconteceu em 17/04/1996, quando 1580 famílias pertencentes ao movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST) montaram acampamento (24). Mais tarde as famílias assentadas propuseram a construção de uma cidade, contrariando as próprias expectativas do MST, que previa para o assentamento uma vinculação à sede do município, uma vez que passava a representar 40% da área total do mesmo. Um dos arquitetos responsáveis pelo projeto, João Paulo Lopes, relata que conceber aquela cidade significou jogar “o jogo entre a atividade mental do projeto e a ‘capacidade de fabricação’, relacionadas com a organização da estrutura espacial e a criação de um ambiente”. Ora, uma vez que aqui analiso exatamente a possibilidade da construção de um lugar a partir das pessoas que o habitam, torna-se importante para este trabalho o exame dessas noções, quais sejam, atividade mental do projeto e capacidade de fabricação, pois que do seu equacionamento resultaria a estupenda hipótese do projeto urbano.

Ao meu ver, a atividade mental do projeto significaria, nesse caso fazer frente à idéia de cidade legal: por um lado, cidade coadunada ao que o poder público oferece – escolas, aberturas de estradas e calçamento, transporte público e atendimento básico à saúde –, por outro, trabalhar com a noção dos processos produtivos tradicionais que configuram comunidades urbanas – saúde, educação,lazer, cultura, conhecimento, tecnologia. Mas, a capacidade de fabricação, por sua vez, diz respeito à real possibilidade de levar a termo um estranho projeto de cidade, cercado por todos os lados. Primeiramente, o MST é instância articuladora da mediação entre as demandas individuais e a comunidade que ali se estabelecerá. Nesse instante, o que predomina são discussões pragmáticas sobre demandas estratégicas do próprio MST. Num segundo momento, quando acontece “a dispersão das famílias nos lotes” e começa a estruturar-se a prática cooperativista, enfraquecem-se os laços entre a família (como célula) ou o indivíduo e a comunidade (o sujeito coletivo). Finalmente, o impacto do assentamento nas vidas de comunidades e pequenas cidades vizinhas, cuja dinâmica fica profundamente alterada.

Os arquitetos tiveram olhos e ouvidos muito atentos – seu ponto de partida para esse projeto sem desenho foi justamente perceber que tal constelação de forças dava conta de uma real assimilação ao novo lugar, “quando as relações de vida davam-se num entranhamento do território”. Um relato da reunião de agosto de 1998, quando os arquitetos começavam a ouvir os assentados, os coordenadores do assentamento, e integrantes do MST, evidencia de que modo iriam trabalhar:

“O que cada um entende por cidade – apesar daquela reunião pretender esboçar a discussão sobre inúmeras outras questões, buscando estabelecer um parâmetro inicial para nossa atuação, aquela primeira pergunta mobilizou de tal forma a manifestação dos participantes que o restante das questões acabou ficando inócuo.” (25)

Ou seja, de periférica a primeira pergunta passa a ser coração do projeto; a hipótese de trabalho configurar-se-ia, afinal em perguntar aos habitantes qual cidade desejavam. Da capacidade de usuários e arquitetos lidarem com as respostas é que viria a termo o novo lugar urbano. E as respostas foram desconcertantes! A tal ponto, que os arquitetos precisaram pensar um projeto de cidade a partir da inversão da dinâmica de produção das cidades modernas.

“Ao propor uma cidade concebida pelo seu avesso, os sem-terra disputam essa territorialidade estabelecida pelos estatutos legais que também confirmam as condições da vida civil nas cidades brasileiras e que, portanto, confirmam ainda os mecanismos de ordenação social que condenam a ‘descartáveis’ aqueles considerados incapazes de inserção no mercado urbanizado e globalizado de nossos dias. Por isso a inversão: é essa população descartável que se recoloca na disputa não só pelo espaço da cidade, como também por uma nova concepção de cidade.” (26)

Que haja algo no Brasil como uma cidade dos sem-terra representa, no meu modo de ver o estado de coisas da arquitetura, uma pletora de caminhos. Para compreendê-la é necessário não tomar os movimentos sociais de grupos e classes subalternas do campo como movimentos exclusivamente de luta pela terra: o que está em jogo é a participação política dessas populações, na cena urbana histórica, sua interrogação pelas formas de praticar e conceber as condições de existência numa sociedade capitalista e citadina. Como o professor Milton Santos nos fez saber tantas vezes, a cidade é o que está no centro das interrogações sobre o futuro. Contudo, esta futura cidade brasileira já não mais poderá estar atrelada a uma regulação dominante: para nela atuar, nós os arquitetos precisamos aprender a nos deslocar para o descontínuo mundo dos habitantes; só de suas rupturas e de seus atalhos é que surgirão nossos diálogos, e quem sabe, outros modos de descrevê-las.

notas

1
Este texto foi escrito para apresentação no seminário Arquitetura e Conceito (realizado pelo Núcleo de Pós Graduação em arquitetura e urbanismo, na Escola de Arquitetura da UFMG, entre 05 e 08 de agosto de 2003) como parte da mesa redonda Construir, Habitar, Pensar, Hoje. O que é Projetar?, de que participaram também os professores José dos Santos Cabral Filho e Carlos Alberto Maciel. Uma versão reduzida foi publicada no jornal ERR, de produção dos alunos de arquitetura da Faculdade Izabela Hendrix, no segundo semestre de 2003.

2
Em 1945, Maurice Merleau-Ponty escreveu a Fenomenologia da percepção. Em 1948 Gaston Bachelard escreveu A casa onírica.

3
É inegável que os temas de teoria e crítica de arquitetura encontram hoje, na mídia da nossa profissão, um enorme espaço de divulgação. Isso, contudo, não significou um aprofundamento nas discussões; pelo contrário, o que se verifica, sobretudo em periódicos de grande circulação, é uma crescente banalização do discurso. Sobre esse assunto no cenário internacional, cf. o excelente artigo de McLEOD, Mary. “Architecture and politics in the Reagan era: from postmodernism to deconstructivism”. In HAYS, M. Architecture theory since 1968. Cambridge, MA/ NYC: MIT Press/ Columbia Books of Architecture, 1998, (678-703).

4
No que concerne à projetação da cidade, a teoria sempre foi instrumento de regulação e controle. Já no século XIX (quando a revolução tecnológica reordenou o mundo urbano) havia uma crônica das grandes cidades, de caráter reflexivo e crítico, que estabelecia o problema da cidade em face de sua estrutura e dos significados das relações sociais ali desenroladas. O exemplo mais acabado deste tipo de ação oitocentista sobre a cidade é o trabalho de Haussmann em Paris. Como nos diz Françoise Choay, aquela foi uma obra de caráter realista, que então viera de encontro às necessidades da indústria e dos financistas”. Além do mais, “o otimismo obrigatório da Paris de Haussmann” veio inaugurar, na segunda metade do XIX, um projeto de cidade que é resposta ao cenário europeu de 1848, ano que assinala a crise dos movimentos de esquerda e dos regimes liberais. A cidade que dali nasce é a do modelo urbano pós-liberal, onde passam a estar bem definidos os papéis da administração pública e da iniciativa privada. Desta profunda alteração cultural derivaram pelo menos dois tipos de discursos: um pré-urbanismo que, abrigado nas ciências humanas, fez a crítica da cidade pela primeira vez denominada industrial; é o contexto, por exemplo, em que Engels escreve A situação da classe operária na Inglaterra, com sua contundente descrição de Londres; por outro lado, houve os relatos da literatura, na prosa de Vitor Hugo e Zola ou na poesia de Baudelaire (e aqui estou relacionando apenas alguns nomes franceses!). Mais tarde, com a gênese do urbanismo propriamente dito, o discurso passa a ser o da transformação do espaço físico, com o esboço daquilo que hoje chamamos planejamento do espaço, e aos arquitetos coube discutir o desenho do espaço urbano, porquanto essa fosse a sua principal atribuição. O final dessa história nós todos conhecemos bem: os CIAM, Carta de Atenas, suas respectivas condenações, e o recente discurso dominante do city marketing, etc.

5
MONTE-MÓR, Roberto Luís de M. “Belo Horizonte, Capital de Minas, Século XXI”. In: Varia Historia, BH, nº 18, set. 97, p. 467-486, p. 483: “as cidades já não se bastam e se integram assim em redes cooperativas, articulando-se com suas periferias urbanas e rurais e com outras cidades, formando complexos (micro) regionais mais ou menos integrados segundo interesses diversos”.

5
SEVCENKO, Nicolau. “A questão Cultural no embate de diferentes planos: metrópole, região, nação, mundo”. In: GONÇALVES, Maria Flora (org). O novo Brasil urbano: impasses, dilemas, perspectivas. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, p. 188.

6
Quando se trata, por exemplo, de fazer a história do uso do espaço. Neste aspecto em particular Anthony Vidler é, a meu ver, o historiador da arquitetura mais bem sucedido. Veja-se sua análise dos episódios em Paris nas comunas de 1838, 1848, 1871. Cf. VIDLER, Anthony, “Los escenarios de la calle: transformaciones del ideal y de la realidad”. In ANDERSON, Stanford. Calles. Problemas de estructura y diseno. Barcelona, Gustavo Gili, 1978, 1981, p. 37-124.

7
Caberia aqui uma nota de explicação sobre as teorias recentes de planejamento urbano versus urbanismo funcionalista, ou mesmo sobre as discussões sobre planejamento versus desenho urbano, mas acho que sobrecarregaria, em muito, o objetivo do texto. Os seguintes textos são importantes para a caracterização do problema: SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002; CAMPBELL, Fainstein (ed.) Readings in planning theory. Malden, MA, Blackwell Publishers, 1996; ELLIN, Nan. Postmodern urbanism. New York, Princeton Architectural Press, 1999.

8
Por exemplo, Milton Santos, Edward Soja, Mike Davis, Fredric Jameson.

10
Cf. LEFEBVRE, Henri. “The Everyday and everydayness”. In HARRIS, Steven; BERKE, Deborah. Architecture of everyday life. New York, Princeton Architectural Press, 1998, p. 32-37 [tradução do verbete Quotidien et Quotidienneté, para a Encyclopedia Universalis, de 1972].

11
ROVATTI, Pier Aldo; VATTIMO, Gianni. (ed). El pensamiento débil. Madri, Catedra, 1995, p. 19.

12
VATTIMO, Gianni. Idem, ibidem.

13
LEFEBVRE, Henri. Idem, ibidem.

14
Em A origem da geometria a argumentação de Husserl consiste na descrição do percurso da geometria desde o pensamento grego até a matematização da natureza realizada por Galileu, quando então a natureza é idealizada segundo as leis da nova matemática. A análise husserliana da geometria, dita análise intencional, quer restituir o fundamento da geometria às estruturas do conhecimento desta. Na análise intencional a consciência do objeto físico é consciência perceptiva e conhecimento é descrição, ou seja, conhecimento é um enunciado da percepção. Husserl chama Reaktiverung (reativação) a esta análise, que é desenvolvida para obter o oposto da sedimentação, e que, como resultado, põe a descoberto os fundamentos daquilo que já foi encoberto pela práxis, o que no caso em questão diz respeito à práxis científica.

15
ZEVI, Bruno. Arquitectura in nuce. Madri, Aguilar, 1969.

16
SCHORSKE, Carl. “A idéia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler”. In Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 53-72 [publicado originalmente em The historian and the city. Cambridge, MA, MIT Press, 1963].

17
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace, p. 46.

18
Megacidade é aquela que concentra nas suas áreas urbanas mais de 10 milhões de habitantes. São, pela ordem: Tóquio, México, SP, NYC, Bombaim, Xangai, LA, Calcutá, Buenos Aires, Seul, Pequim, Lagos, Osaka, Nova Delhi, Rio, Karachi. A cidade global, por sua vez, concentra serviços (habilidade e conhecimento) ligados à globalização, independentemente do tamanho de sua população. Também são chamadas de cidades mundiais, e referem-se, nesta denominação aos circuitos financeiros que nelas atuam. São os principais vetores da economia internacionalizada. Em Primeiro lugar: NYC, Londres, Tóquio. Em segundo lugar: Los Angeles, Frankfurt, São Paulo. Metápolis é um conjunto de espaços em que os habitantes e as atividades e os territórios integram-se ao funcionamento de uma metrópole. Com dezenas de milhões de habitantes, são espaços heterogêneos, não necessariamente contíguos, uma única bacia de emprego, moradia e atividades.

19
ASCHER, François. Metapolis: acerca do futuro da cidade. Oeiras, Celta, 1995 (1998), p.16.

20
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana, p. 117.

21
O jornal Folha de São Paulo, de 31/05/2002, noticiou os números relativos aos indigentes no Brasil. Por indigentes entenda-se: quantos milhões de miseráveis habitam o território brasileiro. Segundo dados do Banco Mundial, são 15 milhões, o que representaria 9% da população; segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do Ministério do Planejamento, são 22 milhões (13% da população); segundo o Instituto Cidadania, ONG do candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, são 44 milhões (26% da população) e, finalmente, os dados da Fundação Getúlio Vargas, que somam 50 milhões, ou seja, 29,.3% dos brasileiros. Sugiro a consulta ao texto da reportagem “País desperdiça gasto social, conclui debate” para que se comece a desenhar um horizonte sobre os habitantes das nossas cidades: www.uol.com.br/fsp.

22
A região pertence ao município de Rio Bonito de Iguaçu, entre Laranjeiras do Sul e Chopinzinho, no centro-oeste do estado do Paraná. A área havia sido beneficiada entre 1970-1980 com a construção da Usina de Salto Santiago, no rio Iguaçu. Em 1970 ergueu-se ali a Vila Barrageira, uma cidade acampamento, construída para operários, técnicos e encarregados da obra da Barragem Salto Santiago.

23
ALMEIDA LOPES, João Paulo. “O dorso da cidade: os sem-terra e a concepção de uma outra cidade”. In SOUZA SANTOS, Boaventura (org). Reinventar a emancipação social: para novos manifestos. vol. 2, Produzir para Viver: Os caminhos da produção não capitalista, 2002, p. 285- 326.

24
O fotógrafo Sebastião Salgado documentou os primeiros dias do acampamento. Cf. SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 124-125.

25
ALMEIDA LOPES, João Paulo. Op. cit., p.307.

26
ALMEIDA LOPES, João Paulo. Op. cit., p.286.

sobre o autor

Rita de Cássia Lucena Velloso é professora de Teoria e História da Arquitetura e Projeto de Arquitetura. É Prof. Titular da Universidade FUMEC, Prof. Assistente PUC-Minas, e mestre e doutoranda em filosofia pela UFMG

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