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architexts ISSN 1809-6298


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Baseado em sua dissertação de mestrado, Luís Henrique Haas Luccas, estuda neste artigo a arquitetura rural da pecuária riograndense, que constituiu um conjunto formal heterogêneo sob aspectos construtivos, plásticos e de distribuição interior


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LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: uma contribuição ao estudo da arquitetura tradicional riograndense. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 071.05, Vitruvius, abr. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.071/363>.

"Chama-se estância no Rio Grande do Sul, uma circunscrição dada das campinas do país, povoada de gado, cavalos e mulas e, em certas porções, partes de carneiros; tem ordinariamente a extensão de uma sesmaria, às vezes de duas, de três e mais; os animais multiplicam-se nelas na razão da quantidade inicial, da vastidão do território e da bondade dos pastos".
Nicolau Dreys, 1839

Um pouco da história

A colonização luso-brasileira do Rio Grande do Sul ocorreu com uma defasagem de quase dois séculos do restante da costa brasileira. Tendo como atrativo a exploração econômica da pecuária, o território foi ocupado a partir da necessidade de abastecimento da região das Minas, descobertas no final do século XVII; abastecimento que incluía, além dos alimentos, o próprio meio de transporte necessário.

Criatórios extensos denominados estâncias, também chamados fazendas no norte do Estado, surgiram a partir da existência de pastagens qualificadas, povoadas pelo gado xucro abundante remanescente do empreendimento jesuítico. Destinados a invernar gado solto para deslocamento e comercialização em Sorocaba, estes estabelecimentos rurais tiveram suas atividades iniciais ampliadas gradualmente, passando ao criatório efetivo, às atividades agrícolas e práticas fabris incipientes como a produção da farinha de mandioca em atafonas, de charque, do curtimento de couro, entre outras mais recentes.

Responsável pela descoberta das Minas, a sociedade bandeirista de São Paulo assumiu a tarefa de abastecer a região do garimpo, nos setecentos, tornando-se roceira e tropeira. A pecuária avançou pelos Campos Gerais, que abrangiam as terras até o sul do Paraná. O mercado consumidor crescente apontava para os campos distantes do Rio Grande do Sul como possibilidade de expansão dos criatórios. Em 1725, o Governador de São Paulo encarregava o Capitão-mor de Laguna, Brito Peixoto, de realizar a primeira expedição oficial ao Sul. Genro do líder lagunense, João de Magalhães conduziu a conhecida “frota” composta por trinta e um homens. A expedição atingiu as proximidades da futura vila de São José do Norte, onde se encontravam as “Vacarias do Mar”. Na ocasião, integrantes da expedição teriam “formado no estreito invernadas e currais que atraíram novos moradores e traficantes de gado”.(2)

Os sucessivos caminhos abertos em direção ao oeste constituíram um fator importante para a interiorização de estâncias e núcleos urbanos no território gaúcho. Em 1721, Bartolomeu Pais de Abreu propunha ao Governador César de Menezes uma estrada aos Campos de Viamão.(3) O empreendimento estava condicionado à isenção de impostos, por nove anos, dos animais que Pais de Abreu por ela conduzisse. Em 1728, partia de Laguna uma expedição oficial liderada por Francisco de Souza Faria, subindo a Serra Geral pela localidade de Araranguá, cerca de noventa quilômetros ao sul de Laguna, até atingir a “Vacaria dos Pinhais”. O caminho ficou conhecido como Estrada dos Conventos, encontrando na Vacaria “pastos admiráveis e neles intensidade de gado”.(4)

Cristóvão Pereira de Abreu ratificaria o caminho aberto. Acompanhado por setenta homens e um piloto, permaneceu treze meses no planalto, entre 1731 e 1732, fazendo um reconhecimento das terras, modificando o traçado inicial para oeste e construindo uma série de pequenas pontes para a facilidade da marcha dos rebanhos. Em 1738, abandonaria a subida por Araranguá, estabelecendo o acesso pelas atuais Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Bom Jesus.(5) Português radicado em Sacramento, onde havia arrematado a “caça aos couros” (6), Cristóvão Pereira dava início ao tropeirismo no território gaúcho, atividade econômica baseada na condução de mulas (7), cavalos e bovinos ao centro do País.

Na mesma década, os chamados Campos de Viamão começavam a receber assentamentos de invernistas. A confirmação do estabelecimento de criadores na região é ratificada pelo indeferimento do pedido de Brito Peixoto, de uma sesmaria desde o rio Tramandaí até a barra de Rio Grande. A resposta que obteve foi que “estes campos já se achavam povoados por um grande número de criadores, que neles tinham seus gados”.(8) Em 1732, Manuel Gonçalves Ribeiro obtinha a Sesmaria do Tramandaí; dois anos mais tarde era concedida a Sesmaria da Sapucaia a Francisco Pinto Bandeira; Sebastião Francisco Chaves receberia a sesmaria em terras da atual cidade de Porto Alegre; e assim por diante.

O século XVIII transcorreria com a indefinição das fronteiras do Rio Grande do Sul, consolidadas através de tratados e lutas somente à entrada dos oitocentos. Em 1750 era firmado o Tratado de Madrid, no qual Portugal perdia a Colônia de Sacramento para a Espanha, recebendo a região dos Sete Povos como contrapartida. Na ocasião, a Campanha também se mantinha excluída. Pouco depois, os dois Reinos uniam-se contra os povos reduzidos, realizando o genocídio indígena da Guerra Guaranítica. Em 1767, os jesuítas seriam definitivamente expulsos pelo governo espanhol de suas colônias.(9)

Em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso transferia a região missioneira para a Espanha, momento em que surgia o ciclo econômico local baseado no charque, concentrado na região do Canal de São Gonçalo. A produção em escala de exportação é creditada aos cearenses radicados no sul, em fuga da grande seca que inviabilizou a manufatura nordestina. A atividade passaria a absorver o gado criado na metade sul do Estado, cujos limites atuais seriam definidos de modo irreversível após a invasão das Missões e Campanha por Borges do Canto, em 1801. A partir de então ocorreria o que Fernando Henrique Cardoso chamou de “apropriação privada da terra e dos rebanhos”.(10)

A transposição da serra riograndense através do Passo Fundo, em 1819, consolidaria o Caminho Novo da Vacaria, acelerando a ocupação dos Campos mais à oeste. A nova rota atingia diretamente as Missões através de Cruz Alta, Tupanciretã e Santiago, em busca das mulas abundantes na região e contrabandeadas da Argentina. A ocupação posterior da Campanha e Missões seria compensada com o desenvolvimento da indústria do charque, a partir da segunda década dos oitocentos; momento em que ocorreram as lutas platinas pela independência, desestruturando a produção da carne salgada no Uruguai e Argentina. A atividade passava a absorver o gado da região, com prioridade na cria de bovinos. No mesmo período a economia serrana estagnava-se, como efeito do declínio da mineração nas Gerais.

A Arquitetura

A arquitetura rural da pecuária riograndense constituiu um conjunto formal heterogêneo sob aspectos construtivos, plásticos e de distribuição interior. O extenso período de hegemonia econômica da atividade – quase dois séculos – é um dos fatores responsáveis pela diversificação dessa produção. Um segundo fator pode ser atribuído às diferenciações geográficas e culturais existentes dentro do território gaúcho: a geografia oferecendo recursos mesológicos distintos e estabelecendo diferentes polarizações comerciais; e essas polarizações, por sua vez, criando vínculos sócio-culturais que incidiram sobre a condição material das propriedades, influenciando o gosto, as formas de distribuição interior e hábitos construtivos adotados, entre outros aspectos. Fatores que dividiram o Estado em dois hemisférios distintos: o Norte, composto pelos Campos de Cima da Serra, Planalto Médio e, em parte, Missões; e o Sul, constituído pela Depressão Central, Campanha, Serra e Encosta do Sudeste e, em parte, Missões.

O Norte manteve-se conectado à rústica Sorocaba dos tropeiros através do comércio de “gado em pé”, especialmente das valiosas mulas. Constataram viajantes como Nicolau Dreys que “a presença do homem pouco fez em benefício desses lugares; suas moradas foram construídas pela necessidade: ali não aparece luxo algum”.(11) Já o Sul enriqueceu e sofisticou-se, fornecendo gado para a indústria do charque concentrada em Pelotas e outros centros menores como parte do rio Jacuí. O contato com Montevidéu e a fronteira Argentina também constituiu um diferencial importante nos hábitos da sociedade e na própria arquitetura da metade sul do Estado, como testemunham algumas sedes rurais e remanescentes urbanos de cidades como Pelotas, Jaguarão e Arroio Grande: percebe-se um acento europeu transmitido pela região do Prata.

Este ciclo econômico regional produziu uma arquitetura que apresentou alguns desenvolvimentos particulares sobre exemplos praticados no restante do território brasileiro, até meados do século XIX; momento no qual surgiam influências ecléticas, próprias do período industrial que se avizinhava, e platenses, ocasionadas a partir do afrouxamento das fronteiras entre o Brasil e seus vizinhos. A recuperação histórica explica certos fatos ocorridos na arquitetura, demonstrando a bifurcação nos rumos da pecuária gaúcha e seus produtos materiais correspondentes.

A casa sede e seu conjunto

As fazendas pecuaristas gaúchas tiveram em suas sedes um conjunto variável de elementos construídos e naturais, em função das regiões e ênfases produtivas, sendo submetidas a determinados procedimentos de implantação sistemáticos. A escolha invariável de sítios elevados – coxilhas ou cerros – foi um destes procedimentos, seguido da decisão de orientar as fachadas frontais de leste a norte. Estas fachadas continham, em geral, as aberturas dos principais cômodos, que resultavam mais salubres. A presença de pomares e caponetes foi outra constante, uma atitude empírica que visava proteger as sedes do vento frio proveniente de sul e sudoeste (pampeiro e minuano).

As senzalas foram registradas com freqüência pelos viajantes, mas não resistiram ao tempo por conta da usual precariedade construtiva. Os galpões e paióis foram outras constantes de programa nas sedes com ênfase na pecuária, sendo em alguns casos substituídos pela presença de atafonas (12) onde a produção agrícola ganhava importância. O galpão é descrito por Arsène Isabelle (1834) como um quarto de hóspedes: “Na maioria das estâncias ou fazendas há um rancho aberto, sem outro móvel que um barril ou talha d’água, um chifre, um banco ou dois e, raras vezes, uma cama de lona estirada feita com correias de couro não curtidas: é o que os brasileiros chamam de casa de hóspedes”.(13) A exemplo do restante do Brasil, as capelas estiveram presentes nas propriedades mais abastadas, eventualmente isoladas do corpo da casa, como nas estâncias São Luís e Batovi, em Dom Pedrito e São Gabriel respectivamente; às vezes agregadas à fachada com acesso independente, como no caso da Lapa, em Encruzilhada do Sul; outras vezes interiorizadas, transformando-se na maior parte dos casos num oratório.

Quanto às casas sedes, o programa de necessidades manteve-se semelhante à tradição rural brasileira, com exceção dos alpendres, nunca frontais no caso local, ressalvadas exceções como a platense Granja Ernestina. A principal diferença programática frente às “casas grandes” cafeeiras e açucareiras foi uma redução proporcional destas, de suas áreas sociais e do número de aposentos. O fator econômico pode ter apresentado assimetria entre o sul e as regiões ricas referidas, pela liquidez financeira e fluxo de capitais das exportações de açúcar e café, mas não sustenta a questão por si só. Saint-Hilaire comenta em algumas passagens as grandes fortunas de que eram possuidores os estancieiros, embasando o descarte proposto: “Várias vezes tenho assinalado a existência de homens muito ricos nesta Capitania. Inúmeros são os estancieiros que dispõe de renda de até 40.000 cruzados. Todavia em suas casas, nada existe que anuncie tal fortuna. O major Felipe, por exemplo, é possuidor de 40.000 cruzados; entretanto um campônio francês, com mil escudos de renda, vive com mais conforto”.(14)

Tudo leva a crer que a simplicidade das casas e o modo de vida fossem resultado de uma convergência de mais fatores, além dos recursos econômicos prováveis. Um destes fatores refere-se à escassez de mão-de-obra local, que se comprova em depoimentos como: “mesmo pelo fato de serem menos numerosos, parecem-me melhores e mais felizes. O preço que se pagava por um escravo era alto, havendo muita dificuldade para conseguí-los, o que em parte pode justificar o bom trato que lhes davam; desconfio, porém, que o motivo mais poderoso deve ser procurado na temperatura mais moderada da região, que permite que os senhores compartilhem de seus trabalhos”.(15) A situação nas monoculturas era inversa, com abundância de mão-de-obra ociosa nas entressafras, tornando-se potencial à construção ou ampliação das sedes rurais. Ao que se soma uma evidente redução do comportamento aristocrático em função das condições de pioneirismo e da distância da Corte, o que é percebido pela proximidade dos patrões aos trabalhadores, detectada na citação anterior, ou em passagens como: “Os senhores trabalham tanto quanto os escravos”.(16) Também deve ser considerada a necessidade de ocupação dos latifúndios pelos descendentes, em novos postos ou sedes, que neste caso é de se crer que não tenham permanecido agregados às famílias patriarcais, como nas “casas grandes” açucareiras e cafeeiras.

Construção e forma

A arquitetura estancieira dos primeiros tempos foi primitiva, como se confirma pelo depoimento de viajantes como John Luccock (1809). Fato próprio da carência de materiais como tijolos e telhas, ferragens, esquadrias, ou mão de obra qualificada. Algumas passagens atentam para a questão, merecendo transcrição: “... uma descrição da casa dele pode bem servir de retrato das habitações dos estancieiros de condição inferior, não só desta província, como de toda a região que se estende desde o rio Paraná até o oceano. Era feita de um arcabouço de madeira, a que se prendiam barrotes por meio de cavilhas ou vergonetas de uma planta aqui chamada cipó [...]. O teto é feito de capim longo e grosso, o piso de terra batida e os aposentos não possuem lareiras”.(17)

O pau-a-pique teve como solução evoluída a casa de arcabouço de madeira, tecnologia desenvolvida nas Minas em função dos sítios íngremes, que sofreu “torna viagem” para a arquitetura roceira de São Paulo, no século XVIII. O único remanescente local nessa tecnologia foi encontrado na região de São Sebastião do Caí, com enchimento de tijolos, existente antes da chegada dos colonizadores alemães, em 1824. A taipa de pilão já apresentava sinais de decadência de confecção e uso, conforme Luís Saia (18), em meados do século XVIII, quando a ocupação do território sulino tomava impulso. Uma alternativa passava a utilizar-se em São Paulo e “Campos Gerais”, ao que Jaelson Trindade denominou taipa francesa (19), detectada com freqüência nas casas gaúchas de construção mais sólida, anteriores ao emprego usual de tijolos.

Duas alternativas regionais merecem menção. Uma delas, rudimentar, foi a construção de ranchos de torrão, que consiste na confecção de paredes através da sobreposição de placas de grama com a terra agregada às suas raízes (leivas), com cobertura usual de capim santa-fé. A outra, se refere às “casas de araucária”, que utilizaram a madeira abundante dos Campos de Cima da Serra e Planalto Médio, aplicando tábuas verticais para a vedação. Uma remanescente deste modo construtivo é a sede da Fazenda do Socorro, ao norte de Vacaria.

O uso de tijolos iniciaria um processo construtivo com elementos industrializados, permitindo a execução de paredes mais esbeltas e maior proporção de aberturas, o que, aliado ao avanço da produção de componentes como esquadrias, propiciou casas com vãos mais próximos e maiores a partir da segunda metade dos oitocentos, como requeria um contexto mais amplo a caminho da modernidade. A conhecida seqüência de fachadas desenhada por Lúcio Costa, em Documentação Necessária, demonstra essa trajetória “desmaterializante” da arquitetura brasileira.

Quanto à concepção plástica utilizada na casa estancieira no momento inicial, pode-se afirmar que ocorreu uma apropriação da arquitetura que se praticava em Laguna e São Paulo, mais precisamente em Sorocaba, centro da atividade tropeira, além de outras regiões da cultura luso-brasileira envolvidas na ocupação. Essa arquitetura sofreu adaptações graduais, como resposta aos condicionantes geográficos e culturais locais, aproximando-se de uma expressão regional. Posteriormente, as influências ecléticas “afrancesadas” e de outras tendências começam a permear aquela arquitetura, irradiadas da região do Prata ou diretamente da Europa. Uma arquitetura que foi viabilizada pelo coincidente ingresso, à época, do uso de materiais industrializados na construção, como os tijolos, que permitiram alvenarias mais esbeltas e precisas, e acessórios como cimalhas, urnas decorativas, pinhas e balaústres próprios do repertório eclético de acento clássico. As coberturas comumente resolvidas com telhas cerâmicas do tipo capa-e-canal e beirais, também passaram a receber platibandas, dentro dessa tendência. Isso ocorreu especialmente na região da Campanha e sul do Estado, a partir do afrouxamento das fronteiras platinas, em meados do século XIX. Aliás, a presença francesa no Prata se fez sentir ao longo do rio Uruguai, como Robert Avé-Lallemant demonstra: “Só franceses existem mais de cem no lugar, entre eles gente de muito boa educação e de irrepreensível conduta. Em Uruguaiana quase não se reconhece uma cidade brasileira, mas uma hispano-francesa que parece apoiar-se, em suas relações de vida e de comércio, mais em Buenos Aires e Montevidéu do que em Porto Alegre e Rio Grande” (20).

Distribuição interior

A distribuição interior das edificações constitui uma fonte importante de subsídios ao estudo da arquitetura tradicional. Os arranjos interiores contribuem na investigação de possíveis precedentes arquitetônicos e de desenvolvimentos regionais sedimentados.

A partir de critérios de configuração interior, a casa estancieira pode ser classificada em dois grupos. O primeiro deles enquadra construções onde a distribuição ocorre através de circulações especializadas. A tipologia predominante foi a que utilizou um arranjo análogo ao da chamada “morada inteira”, na qual a circulação central organiza a planta, conduzindo desde a entrada, ao longo de salas e alcovas, até uma sala posterior geralmente ampla. Paulo Thedim Barreto ocupou-se pioneiramente do estudo deste padrão tipicamente urbano, em seu ensaio “O Piauí e sua Arquitetura”, publicado pela Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Enquadram-se neste conjunto sedes como Lapa, Gruta e Santo Onofre, entre muitas outras. Parecem ter como precedentes distantes os padrões arquitetônicos organizados por Sebastiano Serlio em seu sexto livro, além da dita “morada inteira” exaustivamente aplicada em todo o Brasil português. Permitia uma privacidade satisfatória, o que dificilmente ocorria no modo de distribuição tradicional, através dos próprios cômodos.

O segundo grupo é composto por edificações que não possuem circulações especializadas, onde a distribuição ocorre diretamente através dos cômodos. Este grupo, por sua vez, pode dividir-se em dois subgrupos, um deles formado por casas pavilhonares, onde os compartimentos são dispostos seqüencialmente, com a circulação através dos mesmos, às vezes em enfilade. São características deste grupo as sedes da estância Arvorezinha, em Piratini, e Granja Ernestina, em Uruguaiana; a primeira com precedentes tipológicos distantes no palazzo urbano renascentista ou nos mosteiros enclaustrados, tanto pela organização em torno do pátio, como pela opção de circulação através da galeria interior; e a segunda aproximando-se de certos tipos hispânicos, como estâncias pecuaristas platinas, casas rurais através da América espanhola e, de forma mais ancestral, o palácio de D. Diogo Colón, em São Domingos, datado do início do século XVI.

O outro subgrupo é composto por casas em três “lanços” (21), com planta tendendo ao quadrado, onde o corpo central distribuidor é composto por uma ou mais salas contíguas, ou por duas salas intermediadas por alcovas e circulação; e seus compartimentos dispostos nos dois flancos dedicados a dormitórios e outros espaços mais privativos. É análoga à tipologia da casa tropeira da região de Sorocaba, que se desenvolveu igualmente pelo caminho de tropas desde os Campos Gerais até os Campos do Viamão; ou dos sucessivos destinos posteriores das rotas de tropeiros em direção a oeste, através dos Campos de Cima da Serra e Planalto Médio, em direção às Missões, à Campanha e à fronteira com a Argentina. Este grupo tem como exemplos as sedes das estâncias Capelinha e Irapoazinho em Cachoeira do Sul, Cerro Formoso em Lavras do Sul, e Tabatingaí em Rio Pardo.

Um exame comparativo das plantas baixas demonstra a descendência das casas tropeiras e roceiras, surgidas no século XVIII, da casa dita “bandeirista”. A tipologia matriz, de sala central com loggia frontal, seria adaptada às necessidades do novo modelo sócio-econômico. Ocorreria uma especialização das funções do programa, através da segregação dos ambientes de convívio. A loggia seria substituída pela sala frontal, separada por uma circulação entre alcovas da sala posterior, esta comumente chamada de varanda, dedicada à intimidade e às refeições.

Se tentarmos retroceder mais um pouco, definindo a genealogia da casa “bandeirista”, forma-se uma interrogação sobre a procedência deste tipo repetido intensamente na região paulistana, objeto de pesquisas discordantes de Luís Saia, Carlos Lemos e Aracy Amaral, destacadamente. Luís Saia, o pioneiro, trabalhou sobre os “restos”, como denominou doze exemplares remanescentes à época. Destaca “a planta tipo, repetida com riqueza de variantes em todos os ‘restos’, e também identificável em eventuais descrições no documentário da época”, como sendo de procedência erudita. Segue dizendo que “foi publicada por Palladio, em 1570, e a este arquiteto da Renascença foi inspirada, pelas pesquisas que realizou na zona da ‘terra ferma’, do norte italiano em ‘restos’ de habitações primitivas, então chamados castelos”. Aracy do Amaral tenta demonstrar a ligação dessa tipologia à América espanhola (22), aproximando-se de Saia, por isto mesmo lembrando o nome de Palladio. Ventila a hipótese da tipologia ter sido implantada pelos jesuítas, visto que “a disciplina da planta poderia, de fato, apontar para um jesuíta –proprietária a Companhia de Jesus de numerosas glebas de terra nos arredores da cidade–, posto que o nível intelectual mais elevado do planalto estava, sem dúvida, sobretudo entre os da Companhia”. E Carlos Lemos apega-se aos inventários e testamentos paulistas dos três primeiros séculos, como forma de solapar a tese de Saia, rechaçando igualmente a tese de Aracy Amaral. Lembra a possibilidade da tipologia ter sido implantada a partir de exemplo na arquitetura militar, mencionando a edificação no Forte de São João de Bertioga e um desenho arcaico do frontispício do quartel da Fortaleza da Barra, ambos localizados em Santos.(23)

O fato é que nenhuma das ville palladianas apresentou a solução de sala central de forma tão clara como as propostas por Serlio, que parece ter influenciado mais as colônias latino-americanas pela sua abordagem genérica, do que Palladio em sua especificidade.(24) Em Palladio o tramo central transforma-se numa seqüência de espaços como logge ou átrios, passagens guarnecidas por pequenos cômodos ou escadas, e salas. O tratado de Serlio deteve-se no registro literal de tipos usuais, em parte, enquanto Palladio enfatizou suas próprias criações, onde os arranjos interiores possuem boa dose de invenção embasada sobre a geometria dos espaços. Um fato difícil de ser explicado, pois o sexto livro de Serlio, que apresenta a arquitetura doméstica, não foi publicado na época, tendo se mantido disponível em dois manuscritos apenas. É plausível concebermos a tipologia de sala central como uma solução de domínio público, uma síntese ideal extensamente utilizada.

Um terceiro grupo híbrido pode ser definido pelas casas onde existem simultaneamente as duas situações de distribuição, parte através de circulações especializadas, outra parte através dos próprios compartimentos contíguos. Neste conjunto enquadram-se sedes como da Estância do Seival, Criúva e São José, respectivamente localizadas em Caçapava do Sul, Tapes e Cachoeira do Sul.

Considerações finais

Um olhar atento à trajetória da casa estancieira pode sugerir uma interpretação sobre sua evolução como produto regional. Essa arquitetura buscava empiricamente um ideal de conforto no seu sentido mais abrangente: qualidade construtiva adequada aos recursos disponíveis e ao clima (durabilidade), conforto ambiental (umidade, ventilação, temperatura, luminosidade), dimensional e distributivo (privacidade, funcionalidade), entre outros quesitos possíveis. Uma evolução que ocorreu ao longo do período inicial, até meados do século XIX, de quando montam as sedes remanescentes de maior qualidade construtiva e formal identificadas com a tradição luso-brasileira. Uma experimentação prática que incluía apropriação de materiais locais e métodos construtivos compatíveis com estes materiais, dentro de uma combinação de repertório restrito de elementos de arquitetura de comprovada correção construtiva e estética.

A partir das últimas décadas do século XIX, alguns fatores concorreram para a substituição daquele corpo de conhecimentos sedimentado. Ocorria uma crescente introdução de manufaturados como tijolos, esquadrias e outros elementos estandardizados; como também de influências externas na concepção formal trazendo características ecléticas e art-nouveau. A concepção das casas passava a adotar elementos estranhos àquela sintaxe, como platibandas e alpendres, novos partidos arquitetônicos, alterações na relação entre cheios e vazios, entre outras modificações que encerrariam definitivamente o processo empírico de aperfeiçoamento desta arquitetura como produto regional.

notas

1
Este artigo foi extraído da seguinte dissertação
Mestrado em Arquitetura; LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e Fazendas: arquitetura da pecuária no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, PROPAR/UFRGS, 1997.

2
CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1980, p. 91.

3
Região de contornos indefinidos, os Campos de Viamão começavam na planície litorânea estreita ao norte do Estado, estendendo-se pela península da Lagoa dos Patos, Delta do Jacuí, Gravataí e adjacências.

4
TRINDADE, Jaelson Bitran. Os tropeiros. São Paulo, Publicações e Comunicações, 1992, p. 30.

5
TRINDADE, Jaelson Bitran. Op. cit., p. 31.

6
Denominava-se “caça aos couros” o monopólio desse comércio à época. CESAR, Guilhermino. Op. cit. p. 80-81.

7
Animal híbrido resultante da cruza de éguas com jumentos, portanto estéril, utilizado no transporte de carga para o interior do País.

8
PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai, vol.1, p. 20.

9
CESAR, Guilhermino. Op. cit., p. 165.

10
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 87.

11
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província de São Pedro do Sul (1839). Porto Alegre, Nova Dimensão, 1990, p. 92.

12
Moendas movidas por bois, destinadas ao fabrico de farinha de mandioca, comuns nas casas rurais da região próxima a Porto Alegre.

13
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834), Porto Alegre, Martins Livreiro, 1983, p. 35.

14
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte / São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1977, p. 193.

15
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1975, p. 141. E mais: “A criação do gado, como é feita no Rio Grande do Sul, pede muita terra e pode ser realizada com poucos braços: aliás, geralmente é feita por si mesma e por isto praticada com pouco cuidado”. Ver também AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). Tradução Teodoro Cabral, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1980, p. 375.

16
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 47.

17
LUCCOCK, John. Op. cit., p. 130-131.

18
SAIA, Luís. Morada Paulista. São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 81-82.

19
TRINDADE, Jaelson Bitran. Op. cit., p. 86.

20
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Op. cit., p. 298.

21
O termo “lanço” foi utilizado nos inventários e testamentos paulistas dos primeiros séculos, e adotado por Carlos Lemos em seus estudos.

22
Aracy Amaral apresenta casas da América espanhola onde o uso da taipa de pilão, a presença de alpendres frontais entre dois volumes, detalhes artesanais de carpintaria, além da arte religiosa (arte na qual tem autoridade científica), demonstram semelhanças com a casa bandeirista. No caso das plantas baixas, faz uma leitura rápida, ignorando o detalhe de que a casa da América hispânica apresenta ênfase na solução pavilhonar tipo enfilade, com corpos nas extremidades ao modo da casa de D. Diego Colón; enquanto a casa paulista adota a planta de sala central. Em AMARAL, Aracy. A hispanidade em São Paulo. São Paulo, Nobel/Edusp, 1981.

23
LEMOS, Carlos A. C. Casa paulista. São Paulo, Edusp, 1999, p. 66-67.

24
Este influenciou as colônias da América saxônica, através do palladianismo desenvolvido na Grã-Bretanha por Iñigo Jones

sobre o autor

Luís Henrique Haas Luccas é professor adjunto da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, onde se dedica ao ensino do projeto e à pesquisa. É Mestre e Doutor pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR-UFRGS).

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