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architexts ISSN 1809-6298


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português
O artigo se propõe a analisar três projetos de teatro, que juntos compõem uma pequena síntese para compreender caminhos para a construção de espaços cênicos


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RODRIGUES, Cristiano Cezarino. Cogitar a arquitetura teatral. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.06, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/85>.

Preâmbulo

Diante da pluralidade e diversidade que caracterizam a produção das artes cênicas nos dias atuais, refletir sobre a arquitetura teatral torna-se um exercício cada vez mais complexo. Requer-se uma abordagem transdiciplinar, uma vez que as noções de espaço cênico e espaço arquitetônico diluem-se e, em alguns casos, fundem-se. A constituição do espaço cênico contemporâneo trabalha com operadores diferenciados que demandam uma série de modificações nas formas tradicionais de concepção espacial. A arquitetura teatral, que trata da elaboração do edifício teatro, será veementemente afetada e outras formas e soluções diferentes surgirão. Tentativas das mais variadas apresentar-se-ão, algumas bem sucedidas e outras nem tanto, umas permanecerão somente no projeto enquanto outras se tornarão realidade. Algumas destas experiências que buscam um edifício condizente com as propostas contemporâneas de construção do espaço cênico e que, à sua maneira, são capazes de ilustrar os possíveis caminhos que podem ser percorridos rumo a uma nova síntese são o Teatro Total (1927), de Walter Gropius e Erwin Piscator, o Teatro Oficina (1984), de Lina Bo Bardi e o Fun Palace (1961) de Cedric Price. Compreender as vertentes que estas propostas apontam é fundamental para se avançar na produção do conhecimento deste tema que é a arquitetura teatral, tão rico e complexo,  que carece de um constante estudo por parte dos vários profissionais envolvidos na sua concepção.

O Teatro Total

A escola alemã Bauhaus tinha como princípio norteador a síntese entre arte e tecnologia. Diante de uma Alemanha dividida e empobrecida do pós-guerra, a Bauhaus pretendia desenvolver artes aplicadas que pudessem refletir o espírito da época e atender à demanda da população por uma melhor qualidade de vida. A falta de recursos era um limitador, fator que se tornou um catalisador de uma proposta mais ousada e abrangente, na qual o figurativo, por exemplo, era tido como um excesso que deveria ser evitado e quanto mais sintético fosse o design, mais eficiente poderia ser. O teatro não escapou desta filosofia, tanto que, ao assumir a direção do Teatro da Bauhaus, após a demissão de Schreyer, Oskar Schlemmer implementou estas idéias nas suas performances que acabaram por se tornar o exemplo mais claro dos conceitos da escola alemã.

“A capacidade de Schlemmer de converter seu talento pictórico (o projeto dos figurinos já se insinuava em suas pinturas) em performances inovadoras foi muito apreciada numa escola que aspirava precisamente atrair artistas capazes de trabalhar para além dos limites de suas próprias disciplinas.” (1)

O teatro e as performances da Bauhaus constituíam uma reação e uma alternativa ao teatro produzido na época. Por sua vez, a arquitetura teatral também teve um amplo espaço de discussão na Bauhaus. A estrutura do edifício segundo palco tradicional era considerada restritiva e algumas propostas foram empreendidas no intuito de modificar as formas de relação entre a cena e o público. Desde propostas que se adaptavam às novas montagens do teatro da Bauhaus até outras, mais ousadas, que buscavam uma nova relação psíquica, óptica e acústica foram apresentadas, contudo praticamente nada se concretizou. De certa forma, as propostas de arquitetura teatral da Bauhaus eram norteadas pelo conceito de “Teatro Total” concebido por Moholy-Nagy: “Nada impede a utilização de MECANISMOS complexos como o cinema, o automóvel, o elevador, o avião e outros maquinários, bem como de produzir um tipo de atividade cênica que não mais coloque as massas como espectadores impassíveis, e que [...] lhes permitirá fundir-se com a ação do palco” (2).

O exemplo mais famoso de demonstração das pesquisas em arquitetura teatral desenvolvidas na Bauhaus é o projeto de Walter Gropius para o Teatro Total (Total-Theatre) de 1927. Este surge do encontro entre o arquiteto alemão com o diretor teatral Erwin Piscator, considerado um dos pioneiros do que se chamava “arte multimídia”. O teatro proposto por Piscator possuía forte influência das idéias do encenador russo Meyerhold e a idéia principal era de um espaço de ação com um palco suficientemente flexível para abrigar o ator acrobata, permitindo a utilização de inúmeros recursos para o incremento do espetáculo. Piscator foi um dos primeiros a utilizar projeções cinematográficas, fotomontagens e esteiras rolantes na cena. Vários elementos combinados utilizando todos os recursos disponíveis – cor, luz, som, maquinaria – em um espaço flexível, preferencialmente integrando-se à platéia, produziram um teatro diferenciado, no qual o dinamismo de seu ritmo tornou-se característico. Este teatro buscou expressar preocupações comuns a todos os homens, tornando-se um instrumento de consciência de classe e inseriria o indivíduo em pé de igualdade com outros meios de informação no conjunto de elementos do espetáculo.

Gropius desenvolveu uma proposta de edifício extremamente flexível. Ligeiramente ovalado, possui auditório capaz de converter-se em três diferentes formas “clássicas”: palco italiano, arena e palco projetado. Propôs também uma espécie de palco periférico onde a ação poderia ocorrer envolvendo o público. Segundo Gropius:

“Uma transformação completa do edifício é obtida ao se fazer a plataforma do palco e parte da orquestra girar cento e oitenta graus. Em seguida, o palco italiano anterior transforma-se numa arena central totalmente cercada por fileiras de espectadores! Isto pode ser feito inclusive durante a representação. (...) Esse ‘ataque’ ao espectador, alterando sua posição quando a peça está sendo encenada e mudando inesperadamente a área do palco, transforma a escala de valores vigente, colocando o espectador diante de uma nova consciência do espaço e fazendo com que ele participe da ação.” (3)

Os múltiplos espaços que se integravam, a reversibilidade e a possibilidade de deslocamentos da cena, tornando-a cinética, além do uso de tecnologias inovadoras, funcionariam como recursos para a criação do evento, bem como proporcionariam uma experiência diferenciada tanto para atores quanto para o público. Combinados, elementos e efeitos transformariam o espaço cênico em algo de fato tridimensional e o público por vezes encontrava-se dentro ou fora da cena. Gropius pretendia eliminar o efeito de bidimensionalidade que o teatro tradicional produzia ao emoldurar a cena na caixa do palco. “O atual palco em profundidade, que leva o espectador a olhar para o outro mundo representado no palco como se olhasse através de uma janela, ou que separa dele por uma cortina, praticamente eliminou a arena central que havia no passado” (4) afirma Gropius. Para ele, esta arena promovia uma integração entre cena e público, estabelecendo uma unidade entre as esferas distintas.

A arquitetura do Teatro Total possibilitaria ao diretor um sem número de usos do espaço, reduzindo as limitações impostas pelo edifício. As mudanças poderiam acontecer durante o evento, dependendo do desejo do encenador, sem comprometer o espetáculo. Tanto espetáculos convencionais quanto experimentais poderiam ser encenados no Teatro Total, segundo Gropius. O dinamismo rítmico promovido por este espaço conversível estimularia o público a sair do estado passivo que geralmente encontra-se no edifício tradicional. As mais diversas concepções artísticas poderiam ser expressas neste projeto de parceria o qual, contudo, não conseguiu sair do papel.

O projeto do Teatro Total revelava um profundo estudo sobre os possíveis efeitos de elementos como movimento, cor e luz, dentre outros. Estas pesquisas abrangiam tanto o campo da arquitetura teatral, quanto da produção das performances da Bauhaus a qual, certamente, foi um dos mais bem sucedidos seguimentos da escola alemã. Esta forma de obra de arte viva conseguiu expandir os horizontes da obra de arte total preconizada pela Bauhaus e concretizou uma série de princípios defendidos e/ou desenvolvidos pela mesma. Menos politizada e provocativa que as performances futuristas, dadaístas e surrealistas, a Bauhaus reforçou a importância da performance como meio de expressão artística independente.

Segundo Kosovski (5), “a partir desta intensa investigação de técnicas ópticas, de expedientes cinéticos e de novos materiais para o palco, a Bauhaus tornou-se um dos primeiros núcleos de estudos a perceber a cidade como campo de aplicação dos recursos utilizados na cena, sobretudo no uso da luz como linguagem”.

De fato, o Teatro Total e, de alguma forma o teatro da Bauhaus, propôs formas diferenciadas de arquitetura teatral e mesmo maneiras de se conceber o evento. O espaço cênico, conseqüentemente, foi repensado. Contudo a aproximação entre cena e público e, desta forma, a sua relação, apesar de apontar para outras possibilidades, amadureceu de forma um pouco tímida se comparada ao que era proposto por alguns artistas contemporâneos ao projeto. O Teatro Total foi como que um dos pais das atuais arenas multiuso, tão evidentes na paisagem urbana atual. Isso revela, de certa maneira, que para promover a mudança diagnosticada por muitos na arquitetura teatral tradicional e a ampliação do lugar teatral, a problemática demanda outras abordagens.

O Teatro Oficina

A compreensão e a busca por maneiras inovadoras de estabelecimento das relações entre o indivíduo e o espaço caracterizam a produção e o pensamento sobre o teatro no pós 2ª Guerra, principalmente a partir da década de 1960. Prossegue-se com as investigações e pesquisas do início do século, passando pela Bauhaus, incrementando-as e, de alguma maneira, popularizando-as. Busca-se o entendimento do que vem a ser o teatro para cada encenador e não mais uma idéia universal do que pode ser. Percebe-se a relevância do espaço como elemento essencial para a construção da personagem. O espaço cênico deixa de ser um suporte e um elemento acessório, predominantemente vinculado à contemplação e torna-se um espaço da ação. Um espaço que acontece juntamente com o evento, que dialoga com os atores e com o público durante um determinado período de tempo. Pensar a cenografia e a arquitetura teatral torna-se uma tarefa cada vez mais complexa, porém rica.

Nesse momento, em meados do século XX, aparecem as mais variadas experiências de concepção do lugar teatral. O palco italiano é questionado total ou parcialmente, seja por modificações no espaço interno do edifício teatro, seja descaracterizando a prática tradicional, sem prender-se às limitações ou mesmo promovendo a explosão deste tipo de estrutura. O espetáculo consegue desprender-se das amarras que o teatro à italiana bem como suas práticas impunham. Isto contribuiu, de sobremaneira, para que a estrutura tradicional pudesse atualizar-se e continuar sendo utilizada, convivendo com as novas propostas que emergiam e se consolidavam, tais como o teatro urbano e o teatro de rua renovado.

Pensar o espaço cênico tornava-se um exercício cada vez mais complexo à medida que as novas propostas de arquitetura teatral e cenografia surgiam. Os paradigmas que norteavam a produção do espaço teatral e o arquitetônico atualizaram-se e deixava-se de pensá-los como um lugar da contemplação. Assim como diretores e encenadores como Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski e outros propuseram, o espaço passa por uma reconfiguração no intuito de trabalhar de forma mais íntima e profunda a relação entre cena e público. Um exemplo de possível rumo que essas propostas e discussões podem tomar é o projeto para o Teatro Oficina.

O Teatro Oficina, sede do homônimo grupo dirigido por José Celso Martinez Correa, constitui um exemplo de arquitetura teatral que busca uma consonância com as concepções de espaço cênico contemporâneas e, neste caso, promovidas pelo grupo. Pelos idos de 1958, um grupo de estudantes universitários aluga um antigo teatro para instalar sua companhia teatral. A primeira reforma seguiu o projeto do engenheiro arquiteto Joaquim Guedes que dispunha duas platéias frente a frente, separadas pelo palco central, configurando um layout tipo “sanduíche”. Esta primeira fase perdurou até que um incêndio destruiu o prédio. A reconstrução do teatro ficou a cargo do projeto dos arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefevre que dispuseram a platéia em uma arquibancada de concreto com acessos laterais e o palco, de tipo italiano, possuía um círculo central giratório, criando uma nova configuração para o teatro, bastante distinta da original. A situação político-econômica do país, ocupações irregulares e uma disputa legal levou o edifício às ruínas. Com a solução dos problemas e o tombamento do edifício pelo Patrimônio Público do Estado de São Paulo, deu-se início ao reerguimento do Teatro Oficina. Desta vez, já no início da década de 1980 (1980-1984), o projeto ficara a cargo da arquiteta Lina Bo Bardi e equipe. O conceito norteador do projeto era a idéia de rua. A forma definitiva compõe-se de um palco longitudinal, uma grande passarela, com trechos em rampa, que atravessa todo o prédio, margeado pela platéia que se dispõe em andares de galerias construídas com tubos desmontáveis, semelhantes a andaimes.

A metáfora da rua demonstra um processo de concepção de projeto arquitetônico extremamente próximo das idéias de espaço cênico propostas pelo Oficina cujo trabalho possui fundamento dionisíaco e tem fortes influências das idéias do encenador francês Antonin Artaud, fato que se torna ainda mais enfático depois do contato com o trabalho do grupo inglês Living Theatre. Busca-se uma transformação do ser humano através do mítico do teatro, abordando-se o indivíduo pela psiché, pela “possessão”, segundo José Celso (6) e não pelas vias da razão, tão somente. Para tal incorporação é fundamental a aproximação entre cena e público, um contato real entre ambos. No ritual, todos participam do evento e não existe uma separação entre os que assistem e os que tomam contato com as entidades, pois todos são participadores ativos. Certamente o espaço, fora do contexto sagrado do ritual, em que todos se relacionam e participam ativamente é a rua. A rua promove aproximações, a dinâmica espaço-temporal torna-se o meio pelo qual as relações entre homens acontecem. O Oficina funda seu teatro neste simbolismo, nesta emoção e no desejo de contato físico com o outro, buscando uma linguagem que aproxima as raízes da cultura brasileira com as informações provenientes do mundo, rompendo cânones e derrubando dogmas, uma atitude bem própria de seu tempo.

No caso do Teatro Oficina constata-se uma combinação orgânica entre o espaço cênico e a arquitetura teatral capaz de proporcionar uma experiência renovada no que tange à relação entre cena e público e que, em certa medida, modifica a própria concepção do evento. Uma tensão dialógica permanente assume o espaço e determina novos vetores de apropriação dos espaços abrindo possibilidades para experiências diferenciadas entre indivíduos, lugares e temporalidades.

José Celso Martinez Correa compreende bem qual a relação que o teatro do Oficina estabelece com a cidade, neste caso, a metrópole da capital paulista:

“O projeto de Teatro Oficina é uma pequena parte de um projeto maior [...] o objetivo é criar uma praça cultural no centro da cidade, é a agora, do nome das assembléias e dos mercados gregos.

O nosso objetivo é explodir a consciência da cidade, e também do público, que tem poder para interferir sobre os que têm poder na cidade.” (7)

Apesar de conformado em um edifício, o Teatro Oficina é muito mais próximo da rua e isso repercute na arquitetura de sua sede. A rua como experiência ontológica na qual o evento, com inscrição do extraordinário no ordinário do cotidiano, promove uma nova dinâmica na vida extraindo do seu próprio substrato a matéria prima para a reflexão, para a incorporação e para a transformação dos sentidos e das sensibilidades do espaço e do próprio indivíduo.

Ao se usar a rua como metáfora norteadora do projeto arquitetônico para o teatro Oficina, muda-se o paradigma fundamental para a concepção do espaço. Este deixa de ser calcado em uma experiência predominantemente visual, que se enfatiza na contemplação, para adentrar na esfera da ação. A rua é o espaço onde é possível encontrar o ‘Outro’ e este encontro é essencial para a construção do sujeito, do ‘eu’. Somente no diálogo dinâmico entre o ‘eu’ e o ‘Outro’ é possível realizar-se como sujeito. Se esta existência dá-se no diálogo, ela não pode ser considerada estática, pois é um processo que amadurece na medida em que se estabelecem mais diálogos.

O edifício, então, deixa de ser apenas um invólucro, um abrigo para as pessoas e torna-se, efetivamente, um espaço promotor de encontros. Seja encontro com os outros indivíduos ou encontro do ator com a personagem. O espaço arquitetônico do teatro que se tornará o espaço cênico do evento proporcionará uma vivência diferenciada da ocasião. Neste caso, tanto a arquitetura quanto o teatro tornam-se espaços ao redor de um sujeito. A experiência dá-se em um acontecimento e não simplesmente no fato de se estar naquele espaço. Sem o deslocamento, sem os encontros e desencontros o espaço não se torna um lugar teatral nem contribui para que o indivíduo torne-se um sujeito e o ator, o personagem.

A arquitetura do Oficina não é mutante e polivalente, mas contribui fundamentalmente para a montagem da cena e para a experiência do público. Define as formas de relação entre a cena e o público bem aos moldes dos espaços pensados por encenadores como Jerzy Grotowski (8) e Richard Schechner (9). Além disso, estabelece um diálogo particular com o urbano a partir do momento em que transpõe uma das experiências da rua para o lugar teatral.

O Fun Palace

O projeto do Fun Palace (1961), desenvolvido pelo arquiteto britânico Cedric Price, constitui um outro exemplo de arquitetura teatral que investiga possibilidades diferenciadas de relação entre a cena, o espaço e o público. O projeto é fruto de uma parceria entre o arquiteto e a encenadora Joan Littlewood cuja obra buscava uma postura de vanguarda, desenvolvendo propostas de caráter investigativo que agregassem outros pontos de vista na produção cênica de sua época. A demanda de Littlewood era por um edifício teatro diferente, que não fosse compartimentado em áreas distintas destinadas especificamente ao público, à cena e aos atores. A proposta consistia em um espaço de pura ação e fluidez, na qual o público pudesse experimentar as transformações dinâmicas do espaço não somente como espectador passivo, mas como ator das mesmas. O edifício, desta forma, torna-se um espaço de improviso cuja dinamicidade potencializava a participação real de todos envolvidos em um determinado evento.

Para atender a tal solicitação, Price propôs um edifício cujo programa de atividades era aberto e a forma indeterminada. A arquitetura não imporia um uso e uma postura, pelo contrário, seria processual e adquiriria configuração física e função necessárias a cada momento específico. Portanto, o Fun Palace caracterizar-se-ia por uma prática não convencional de concepção e desenvolvimento do projeto arquitetônico. Sua influência direta reside em muitas das correntes de pensamento de sua época que se baseavam nas noções de incerteza, de modelagem espontânea, indeterminação e randomização de códigos, tão presentes nas ciências e nas artes de maneira geral e, nas artes cênicas especificamente.

Price propôs um edifício em estrutura metálica cujas partes constituintes – paredes, teto, escadas, plataformas etc. – seriam estruturas pré-fabricadas montadas com o auxílio de guindastes, possibilitando que todas as partes fossem variáveis. A estrutura seria capaz de abrigar os mais diferentes usos com as mais inusitadas formas, fosse um teatro, um restaurante ou um cinema, oficinas, arena, desde que deslocadas e rearranjadas as partes. O Fun Palace, desta forma, não era somente um teatro, era um complexo de entretenimento cujo objetivo era o acesso de boa parte da população para desfrute do espaço. Entretanto, tal edifício permaneceu no projeto.

O projeto do Fun Palace pode ser analisado por várias áreas do conhecimento, segundo vários pontos de vista, pois sua complexidade foi fruto de um pensamento que abordou múltiplas esferas cognitivas, conjugando cibernética, computação, mecânica, sociologia, física, dentre outras áreas em um objeto arquitetônico. Contudo, para este estudo, o mais relevante é a abordagem que diz respeito ao espaço e, em certa medida, às relações estabelecidas entre a forma e função do edifício.

A arquitetura teatral do Fun Palace trabalha segundo um paradigma diferenciado do que normalmente se concebe entorno da idéia de edifício e isso repercute sensivelmente na constituição do espaço cênico que com ele se relacionará. A noção de público ativo e participador ultrapassa o espaço-tempo do evento em si e amplia-se para o edifício elevando exponencialmente o diálogo que se estabelece entre cena e público. A indeterminação da configuração espacial arquitetônica abre para possibilidades inusitadas de apropriação do espaço pelo artista e, conseqüentemente, de múltiplas relações entre o evento e o espectador que, conforme referido anteriormente, deixa de ser passivo. A participação do público ocorre nos mais variados níveis, pois se ele não faz algo, verá alguém fazendo e estabelecendo uma dinâmica diferenciada no espaço, a polivalência da arquitetura reduz o determinismo da experiência do indivíduo no espaço. O edifício torna-se uma espécie de interface que dialoga constante e simultaneamente com o artista e o público na definição de um espaço para o evento, sendo que este alterará a própria arquitetura à medida que se fizer necessária. O Fun Palace não é um edifício de forma fechada, é um processo que amplia as formas de se lidar com o espaço seja do ponto de vista funcional, como mesmo do ponto de vista estético e por que não do poético.

Se comparado ao Teatro Total de Gropius, o Fun Palace não determina a forma como o espectador experimentará o evento. No projeto de Gropius, por mais que os arranjos da platéia mudem, a maneira com que o espectador experimenta o evento continua a mesma. No Fun Palace não existe uma indicação clara deste tipo de determinação. A princípio, pode-se pensar em diversas formas de relação entre a cena e o público e a participação deste não depende exclusivamente do artista como é o caso do Teatro Oficina. Este parte de uma forma de relação entre espectador e espetáculo que é fixa com uma abertura para a mudança, mas que depende da iniciativa do público. Ao poder definir o espaço no Fun Palace, o público tem liberdade para estabelecer as mais variadas formas de relação com a cena. Entretanto, vale ressaltar, que o projeto de Cedric Price de fato funciona se o público compreender as regras do jogo e se dispuser a jogá-lo. Do contrário, o potencial não explorado torna-se um grande entrave. Tudo ficará dependendo da posição assumida pelo artista, que poderá impor alguma solução e aproximar-se do que é colocado no teatro tradicional, ou explorar possibilidades impares que desencadeiem um diálogo mais aprofundado com o público na produção do espaço cênico.

A discussão sobre as relações entre o espaço urbano e o cênico ainda é dispersa, se baseada nas limitações impostas pela arquitetura teatral recorrente na constituição do espaço cênico por artistas contemporâneos. Apesar disso, reunindo-se os fragmentos, é possível vislumbrar em que estágio ela se encontra. As questões históricas de superação da estrutura do palco italiano, bem como seus aspectos conceituais e estéticos já foram abordados de forma ampla. A compreensão dos caminhos de migração do edifício institucionalizado para outros lugares tem sido encarada como um dos principais focos dos estudos, carecendo ainda de um maior aprofundamento em conceitos que emergem da investigação pormenorizada de exemplos práticos desta abordagem. A arquitetura teatral, fruto de uma concepção contemporânea de espaço cênico, ainda é pouco investigada no plano teórico, contudo apresenta exemplos singulares bastante ilustrativos e que abrem uma perspectiva interessante de pesquisa. As relações entre o espaço urbano e o espaço cênico constituem um vasto campo a ser investigado já que as abordagens são inúmeras e a compreensão destas na constituição de paisagens urbanas tem se mostrado um frutífero eixo de reflexão e criação.

Experiências inovadoras resgataram a flexibilidade do espaço e consolidaram a ampliação do lugar teatral, que se incrementou em um sem número de variações, os limites passam a ser determinados pela imaginação de quem concebe estes espaços. Este caminho consolidado continua a ser trilhado nos dias atuais, que se configuram como um outro momento desta busca pela ampliação do lugar teatral e do (re) pensar e (re) articular o espaço cênico como um elemento ativo no fazer teatral. Neste momento, nos dias atuais, o que ainda era alternativo e pouco conhecido torna-se uma linguagem bem mais compreendida e acabada, na qual a experimentação predomina e buscam-se os limites do processo, havendo, conseqüentemente, um considerável incremento na qualidade dos produtos finais. A Ópera Transatlântica, Robert Wilson, os trabalhos do Teatro da Vertigem, bem como todos os experimentadores da vertente do Work in Progress constituem ótimos exemplos deste momento.

A realidade revela que o uso do espaço tem mudado com freqüência cada vez maior e que as demandas por adaptações são freqüentes. Um edifício pensado para um determinado uso com pouco tempo pode ser ocupado por outro totalmente diferente. Da mesma forma, um determinado uso pode sofrer modificações de tal escala que sua estruturação no espaço altera-se consideravelmente. Uma idéia de uso recorrente na arquitetura – a tipologia – tem de ser repensada, pois em geral utiliza uma categorização estanque, simplista e generalista, que determina o espaço que, em um futuro próximo pode abrigar outra função. Um claro exemplo disso são os antigos edifícios industriais que ocupavam zonas centrais da cidade, que tem recebido, atualmente, novas funções como espaços culturais, gastronômicos etc.

Uma das tipologias arquitetônicas mais emblemáticas e, por isso, problemáticas é o Teatro. O edifício teatro é projetado, de forma recorrente, seguindo critérios estabelecidos desde o século XVI e que foram adaptando-se com o passar dos tempos. Geralmente é pensado seguindo uma forma de se fazer teatro, cognominada à italiana, onde o palco localiza-se na frente da platéia e esta, na maioria das vezes, é disposta de forma linear e escalonada. O espectador ocupa um lugar de onde acompanhará o espetáculo durante o decorrer de sua duração. O palco dispor-se-á de forma a possibilitar a melhor visibilidade do espetáculo para a maioria do publico e oferecerá a maior infra-estrutura possível para que quem o venha ocupar possa ter recursos disponíveis para a melhor qualidade do espetáculo, bem como para a construção do espaço cênico. Assim se caracteriza a arquitetura teatral recorrente, entretanto existem outras tipologias de edifício teatro, de palco e, cada vez mais, outras maneiras de se fazer teatro e de concepção do espaço cênico.

O edifício teatro concebido segundo esta estrutura de palco italiano tem sido veementemente questionado atualmente. As formas de concepção do espaço cênico em geral são incompatíveis com o espaço arquitetônico institucionalizado uma vez que se pensa em uma outra forma de relação entre cena e público.

A maneira como esta relação estabelece-se ainda é, predominantemente, calcada pela estaticidade e por uma componente contemplativa, distanciada e visual. A quarta parede do palco continua erguida, em alguns casos é removida timidamente, em outras é radicalmente demolida, contudo essas experiências constituem-se uma exceção se comparadas, proporcionalmente, com o todo que é apresentado atualmente.

Para os críticos à forma tradicional de relação entre a cena e o público e para aqueles que propõem algo diferenciado, a relação estática e baseada na experimentação de cunho predominantemente visual é limitada e não condiz com a realidade da época. O espaço arquitetônico impõe ao espectador uma percepção de um único ângulo e distancia fixa. O indivíduo é condenado a permanecer na mesma posição do início ao fim do espetáculo, estabelecendo uma relação passiva com a cena, onde pouco pode intervir no desenrolar do espetáculo, quando muito menos buscar novos pontos de vista.

Ao se pensar um edifício segundo uma tipologia, o princípio norteador da concepção passa a ser generalizante, já que as especificidades do uso são abordadas como uma amostragem. No caso, por exemplo, do teatro, a arquitetura exige inúmeras particularidades que caracterizarão a edificação de forma marcante. As principais soluções arquitetônicas para o teatro são herdadas de épocas cujas demandas sócio-culturais eram outras e que, em alguns casos conflitam-se com as dos dias atuais. O teatro hoje é, inevitavelmente, diferente, as formas de concepção do drama, o trabalho do ator, os recursos tecnológicos etc em alguns casos evoluíram e, em sua maioria, as opções disponíveis para a confecção do espetáculo são das mais variadas. Tudo isso repercute no espaço cênico e no lugar onde ocorre a relação entre a cena e o público – o lugar teatral. A busca por uma adequação do espaço arquitetônico ao teatro e a concepção do espaço cênico foi, e ainda é, motivo para inúmeras pesquisas. Verifica-se claramente que tais pesquisas apontam para duas modificações essenciais: uma nova forma de recepção do público e a flexibilização do espaço arquitetônico.

Percebe-se ao investigar o exemplo do teatro, que a tipologia aproxima-se muito, de uma prática de trabalho do arquiteto mais próxima do que acontece nos dias atuais. Define-se a forma e estabelece-se como se dará o uso do espaço. No caso do teatro, o edifício tipo define um espaço arquitetônico que entra em conflito com o espaço cênico que tem sido concebido nos dias atuais, ou seja, as formas de ocupação e uso do teatro, em muitos casos, não condizem com a arquitetura. A demanda pela flexibilidade do espaço arquitetônico é da mesma ordem que a do espaço cênico e a do espaço artístico. O edifício teatro não escapa às possibilidades de uma arquitetura processual, de forma dinâmica, onde a presença do indivíduo seja fundamental para que o espaço aconteça. Pode-se apontar o teatro como um edifício ainda mais complexo, assim como o museu e a galeria, pois ele abriga não só o indivíduo, mas também as metáforas da relação entre ele e o mundo, é um espaço que abriga espaços, que abriga lugares, no caso, o lugar teatral.

notas

1
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p 89.

2
Idem, ibidem, p. 106-107.

3
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 167-168.

4
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance. São Paulo, Martins Fontes, 2006. p. 104.

5
KOSOVSKI, Lídia. Comunicação espacial e teatralidade: do cubo cenográfico à cidade escavada. 2000. 236f. Doutorado (Tese). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Rio de Janeiro, 2000, p. 68.

6
Idem, ibidem, p. 171.

7
Idem, ibidem, p. 172-173.

8
Para aprofundamento nas discussões de Grotowski recomenda-se o livro: GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. 4 ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1992.

9
Para aprofundamento nas discussões de Schechner recomenda-se o livro: SCHECHNER, Richard. Environmental Theater. 2 ed. Nova Iorque: Applause Books, 1994.

sobre o autorCristiano Cezarino Rodrigues, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da UFMG. Arquiteto, cenógrafo e designer. Trabalho com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos de arquiteturas efêmeras, cenografia. Atualmente investiga interfaces transdisciplinares entre a arquitetura e o teatro

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