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LARA, Fernando Luiz. Vizinhos do Pateta. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 011.02, Vitruvius, abr. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.011/899>.

Até bem pouco tempo atrás a Disneylândia era tratada na bibliografia do urbanismo pós-moderno como metáfora de uma assustadora projeção, de que nossas cidades se transformariam em parques de diversão ou cenários perfeitamente controlados para o deleite de uns poucos privilegiados que poderiam pagar o ingresso. David Harvey (2) chamava a atenção para o consumo da imagem enquanto Fredric Jameson (3) usava a metáfora da Disnenylândia para explicar as dinâmicas do capitalismo tardio.

Cidades, reais ou fictícias, sempre foram espelho de seu tempo. O surgimento da cidade moderna coincide com o início do Renascimento e traz consigo os valores de liberdade, individualização e auto-regulamentação. Não que as cidades sejam por definição democráticas ou nunca tenham servido a ditaduras opressivas (muito antes pelo contrário), mas o conceito de urbe sempre tendeu mais para livre-arbítrio que para o despotismo, mais para a garantia dos direitos individuais que para a supressão desses. Claro que a contrapartida dessa identificação entre cidade e liberdade inspirou mitologias diversas que vão de Sodoma e Gomorra ao desprezo norte-americano pela pulsação concentrada de vida na urbe. Puritanos de origem, a intelectualidade norte-americana, de Thomas Jefferson a Frank Lloyd Wright sempre viu com desconfiança esse ajuntamento de pessoas num mesmo espaço chamado cidade, e inventou diversas formas de neutralizar o poder subversivo dessa aglomeração, entre as quais figuram algumas de suas marcas registradas, como o automóvel e a suburbanização.

Eis que em 1997, em comemoração aos seus 25 anos, a Disney Corporation, dentro do mais puro espírito americano e talvez não satisfeita em ser usada como exemplo sombrio de futuro urbanístico, resolve satisfazer as previsões apocalípticas de Jameson e Harvey, construindo uma cidade inteira sobre um pedaço de terreno pantanoso da Flórida. Celebration, dimensionada para 20 mil habitantes, já conta com cerca de 500 famílias que escolheram satisfazer ali seu sonho dourado de morar na Disneylândia. Até ai a estória seguiria tranqüila, com mais um grupo de famílias de classe média alta americana morando em mais um empreendimento suburbano (ou new urbanista), se não fosse por alguns detalhes que deveríamos examinar mais de perto.

Em Celebration, como em qualquer outro parque de diversões da Disney, tudo foi cuidadosamente planejado, projetado e executado para a satisfação dos visitantes, ou no caso, residentes. Cada visada de rua foi pensada para que a distância entre as casas seja perfeitamente agradável, nem tão perto que pareça uma vila operária, nem tão longe que dê a impressão de isolamento e dispersão tão comuns às cidades americanas, já não valorizadas atualmente pelo mercado imobiliário.

Aliás, mercado imobiliário parece ter sido o eixo central do projeto de Celebration, onde tudo foi calculado com base nas mais precisas tendências de opinião ou consumer behavior. Os problemas realmente começam quando a Disney Corporation resolve planejar, além do cenário, o script de todos os atores, ou no caso, moradores. Celebration não tem prefeitura nem qualquer outra forma de organização político-democrática. Um acordo especial com o governo da Flórida transfere para a Disney Corporation todos os direitos administrativos de suas propriedades, que no caso de Celebration não são repassados aos proprietários de cada residência. Um administrador, funcionário da Disney nomeado para tanto, exerce as funções de autoridade administrativa, legislativa e, se deixarem, judiciária também. Ao morador, resta agir em concordância com o script determinado, já que não lhe cabe escolher a cor das próprias janelas nem plantar uma árvore no seu próprio jardim sem autorização da administração da cidade, leia-se Disney Corporation.

Agora vem uma pergunta das mais intrigantes: Porque cidadãos de classe média alta americana, profissionais liberais qualificados que poderiam morar em qualquer ponto do país ou do mundo, resolvem investir uma bolada de dinheiro para morar em Celebration, abrindo mão de direitos básicos como votar para prefeito ou construir um laguinho no próprio jardim? A resposta possível, apesar de insuficiente, se apoia na falência do modelo de subúrbio americano, que de sonho dourado dos baby-boomers recém casados na década de 60 e 70, passou a pesadelo, em menos de 30 anos.

Para retratar a tragédia da suburbanização, nada melhor que a televisão e o cinema americanos. Nos anos 60 seriados como A Feiticeira ou Jeannie é um Gênio, espelhavam a família ideal. Enquanto o marido sai para trabalhar dirigindo uma enorme banheira, a mulher cuida das crianças e da casa, que fica num subúrbio arborizado e tranqüilo. Abandonado, o centro das cidades viu sua população de maioria negra ser marginalizada e deixada a própria sorte. O quadro que parecia harmônico nos anos 60 não resistiu ao desencanto dos anos 70 e muito menos ao conservadorismo dos anos 80, dando lugar a uma realidade de isolamento e alienação que se revela no consumo altíssimo de drogas ou nos índices alarmantes de gravidez na adolescência. No híper-centro, um pequeno conjunto de edifícios pós-modernos (subsidiados sob a desculpa de revitalização) é cercado por alguns muitos quilômetros quadrados das chamadas inner cities, onde se amontoam os excluídos, os rejeitos do american-way-of-life.

O cinema continua pródigo em retratar esta realidade, ainda que tangencialmente, com Quentin Tarantino e Spike Lee, entre outros. Da última safra de filmes que deve estar em cartaz agora no Brasil, Ice Storm descortina tragicamente a decadência do modelo suburbano americano que já dava sinais de exaustão desde os anos 70. No embalo da revolução sexual, que no caso do filme em questão é tratada com cuidadoso moralismo, duas famílias vizinhas encenam uma relação de proximidade que transborda em sexo. O resultado é inevitavelmente frustrante para todos, sem distinção entre os filhos pré-adolescentes ou os pais quarentões, que aliás tem comportamento deliberadamente iguais. O interessante é examinar a mensagem moralista/arquitetônica por detrás da trama. Enquanto a família retratada como normal (ou mais próxima da média americana) mora numa casa tradicional em que o adúltero é o marido; a família disfuncional mora numa casa modernista, tem a mulher como adúltera e, como que em pagamento por esses pecados capitais, perde no final. Cenas da casa modernista, cúbica, branca e sem telhado, são escolhidas de modo a reforçar a idéia de estranhamento, de desconforto.

A arquitetura moderna, que nunca foi popular nos Estados Unidos, sempre representou uma ameaça aos valores da família americana, e pragmaticamente adaptada, serviu muito bem para reforçar o poderio das grandes corporações impresso em seus arranha-céus de vidro, ou para alojar em apartamentos apertados a massa de excluídos, seja em Chicago, no Bronx ou em Detroit. A trama de Ice Storm levanta a idéia de que há algo de disfuncional no subúrbio americano, mas o moralismo desloca mais uma vez a culpa para o modernismo e mulher, na falta de outras ameaças como comunistas, estrangeiros ou psicanalistas.

Os profissionais liberais que vão aos poucos se mudando para Celebration buscam justamente um script qualquer, na impossibilidade de escreverem suas vidas por eles mesmos. Pretensamente protegidos pela Disney Corporation, abrem mão de seus direitos políticos ou de suas liberdades em nome de uma promessa glamorosa de harmonia que confunde tragicamente a vida real com os contos de fadas. Já não basta o isolamento conservador do subúrbio, é preciso que alguém lhes proteja das tentações e disfunções ameaçadoramente cotidianas como as muralhas e a ponte levadiça protegiam os camponeses que viviam ao redor do castelo. Qualquer semelhança com o antigo feudalismo não é mera coincidência no momento em que, insistindo em não tentar melhorar as condições de vida dos bárbaros que vivem bem ali, do outro lado do rio ou da avenida, talvez só nos reste correr para o castelo e ir morar com o Pateta.

notas

1
Este texto foi publicado anteriormente na Revista AQUI, do IAB-MG, de outubro de 1999, p. 48-49.

2
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity, Cambridge, MA, Basil Blackwell, 1989.

3
JAMESON, Fredric. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, Duke U. Press, 1991.

sobre o autor

Fernando Lara é arquiteto, professor da PUC-Minas, doutorando pela University of Michigan, EUA onde é atualmente pesquisador residente do Institute for the Humanities.

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