Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts


how to quote

COMAS, Carlos Eduardo. Lucio Costa e a revolução na arquitetura brasileira 30/39. e lenda(s e) Le Corbusier. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 022.01, Vitruvius, mar. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.022/798>.

À guisa de intróito

A revolução na arquitetura brasileira que acontece na década de 1930 dá-se em três atos, em correspondência aproximada com a ascensão ao poder de Vargas, a consolidação do regime e a formulação do Estado Novo. O primeiro ato, exploratório, dura três anos e introduz no Rio a arquitetura moderna, oposta ao nacionalismo tradicionalista do neo-colonial promovido por José Mariano. O segundo, assimilador, esboça noutro triênio uma apropriação da arquitetura moderna que frisa a sua raiz clássica mediterrânea e a analogia de seus elementos e princípios com uma tradição construtiva racional e nacional. A influência de Corbusier cresce, mas as poucas obras concluídas ainda são no Estilo Internacional, alguma escola e hospital parco se misturando às casas em maioria. O terceiro, propositivo, se viabiliza pelo apoio de setores chave do governo federal, orçamentos generosos, sítios de maior visibilidade e programas de maior porte com forte carga representativa. Resgata a feminilidade barroca antes negada e culmina no equacionamento duma arquitetura moderna de veia corbusiana e sabor brasileiro.

Dois antecedentes – 1930-32

A participação de Lucio Costa é fundamental em todos os capítulos. O impacto de projetos e obras aumenta o da reflexão escrita e vice-versa. Expoente do neocolonial, já em 1929 rejeitava o barroco associado ao mesmo em ensaio sobre o Aleijadinho (1). Ano seguinte, abraça uma materialidade chã, quase loosiana, nos riscos ditos “eclético-acadêmicos” da suntuosa casa Ernesto Fontes e da casa de campo Carneiro de Mendonça. Aquele tem inspiração erudita: a reentrância entre paredes sólidas perfuradas cada uma por janela retangular recorda, na composição, uma Villa Palladiana, como a Saraceno; na planaridade, uma casa paulista bandeirante, como a do Padre Ignácio; na proporção 2-3-2, a fachada térrea de engenho baiano setecentista, como o Lagoa. Nada palladiana ou colonial, a compartimentação com muitas simetrias parciais e corredores reduzidos ao mínimo se notabiliza, no todo, pela passagem duma quase simetria segundo o eixo longitudinal no térreo a uma quase simetria segundo o eixo transversal no andar acima. O outro risco tem inspiração vernacular: a varanda evoca o engenho fluminense, mas as venezianas, a estrutura de madeira com os pilares aparentes, a abóbada de esteira de palha e as paredes caiadas seguem as pautas de simplicidade do rancho rural. A ortogonalidade de concepção se enriquece com a operação subtrativa que reintroduz, em simetria diagonal, a reentrância entre dois sólidos (2).

Não se contentando com a nudez das paredes, Lúcio logo surpreende com alternativa moderna para a casa Fontes, preterida pelo cliente, mas tão pioneira quanto a casa Nordschild de Warchavchik. Em entrevista de 1931, diretor da ENBA no lugar de Mariano, defende a desnacionalização, simplificação e uniformização da arquitetura. Argumenta que a vida dos brasileiros tem mais a ver agora com a de seus contemporâneos que a de seus antepassados; daí a indiferença das casas feitas com Warchavchik às especificidades de sua situação. Mas educado na Beaux-Arts, Lúcio concorda com Mariano quanto à importância da “constante mesológica”, e o prova na alternativa Fontes e nas “casas sem dono” que projeta só (3). Os panos corridos de caixilharia de vidro e venezianas, em sintonia com o clima, assimilam à janela horizontal um elemento de arquitetura típico da casa brasileira colonial e imperial; janelas entre molduras salientes de alvenaria reinterpretam com proporções distintas o balcão e o muxarabi. O térreo em parte vazado gera varanda que é fragmento de pilotis e alusão ao pau-a-pique das casas das Gerais. Na alternativa Fontes, o despojamento ressalta a talha de móveis antigos. Em qualquer caso, a estrutura independente não prescinde de vigas aparentes, e a planta não é livre na acepção de independência totalmente visível de paredes e suportes.

Três indicativos – 1933/35

A parceria com Warchavchik se desfaz em 1933, quando o Salão de Arquitetura Tropical homenageia Wright e Freyre publica Casa Grande e Senzala. Em 1934, os projetos de Monlevade e da Chácara Coelho Duarte (4) visam conciliar vanguarda e tradição, afirmação nativa e inserção na cultura ocidental, na trilha da obra anterior de Tarsila e dos dois Andrades (5).

Na Vila operária e jardim, os edifícios públicos tem planta retangular simétrica e telhado de cimento amianto. Fiel ao preceito acadêmico, Lúcio atribui a cada edifício o caráter próprio à sua finalidade, mas busca manter em todos aquela unidade, aquele ar de família que caracteriza os verdadeiros estilos. A igreja se inspira em Perret; cinema e mercado compartem o seu racionalismo. A estrutura independente mista na escola e clube emula o Pavilhão Suíço. O pilotis e a grelha de vigas e lajes em balanço se prevêm em concreto. A gaiola de madeira apoiada no conjunto tem janelas corridas nas faces maiores e cobertura de duas águas. O pilotis, aberto na escola, limita-se no clube por escadas nas empenas. O vazio entalado define uma base porosa, no mesmo espírito da fachada de jardim da versão neocolonial da casa Fontes. Painéis de treliças, forro de taquaras, madeira pintada de azul e paredes caiadas de branco integram as referências vernaculares. Nas casas geminadas de uma água, similar à escola e clube na solução estrutural, a gaiola se veda com barro: a velha técnica se aprimora pela ausência de contato com a umidade do solo e pela madeira serrada e aplainada. A mescla de concreto, barro armado e pedra ecoa, em termos e desdobramento autóctones, a vizinhança de pedra e pré-fabricado metálico nas casas Loucheur. O concreto armado se assimila à taipa de mão e de pilão, a estrutura independente ao pau-a-pique, o pilotis ao pau-a-pique aparente, a janela horizontal à caixilharia corrida. Maciços de vegetação equilibram a parede de pedra e os acessos intermediários, numa variante de base porosa onde o componente paisagístico vira elemento de composição arquitetônica, conforme o risco da Liga das Nações.

A Chácara inclui casas para o sogro, o cunhado e a própria família. Estratificada, a maior tem dois andares e pérgula sobre teto-terraço. Colunas soltas e paredes unem as lajes retangulares e paralelas em balanço, animando o jogo plástico com materiais e texturas distintas. Planta e fachada livres são embrionárias, com colunas e paredes coplanares e um interior celularizado embora sem vigas à vista. Trecho aberto de pilotis numa esquina é o acesso. O biombo de sarrafos verticais de madeira e vidro que o limita é a nota oblíqua na composição ortogonal e o episódio semitransparente entre duas paredes de pedra rústica. Uma é cega e outra perfurada por janelas de rótula; ambas se prolongam além da projeção retangular, aquela em curva e esta inclinada, limitando a garagem acoplada ao volume principal. No andar superior, o balanço à esquerda é um balcão corrido contíguo ao jantar, o frontal se divide e veda com venezianas na metade à direita, ampliando os dormitórios e o salão. A articulação do salão e jantar retangulares define uma varanda sobre o acesso. A importância da oblíqua se reitera na diminuição progressiva da área de lajes e volumes reais ou virtuais. A composição é piramidal e escalonada. Parece querer insertar-se entre as caixas escavadas sobre pilotis e o tipo de composição aditiva exemplificada pela casa La Roche – que admite composição piramidal, como diz Corbusier. Em escorço, a base expandida se vê porosa, com o trecho aberto do pilotis entalado entre volumes de pedra. Acima, a simetria balanceada de cheios à volta dum foco recessivo reforça a impressão de uma emulação mais livre da composição da casa Carneiro de Mendonça, simétrica, porosa e tensa entre a diagonal implícita e a ortogonalidade real.

A interrupção dum balcão corrido por painéis de venezianas configura volume que avança até o parapeito e ecoa a casa de Eileen Gray em Roquebrune (6). As inflexões e o prolongamento virtual das paredes de pedra dão a elas uma expansividade mais próxima de Mies que da planaridade regular da casa de Mandrot. Ao mesmo tempo, na configuração, lembram os puxados típicos da construção rural; no material, as cercas de pedra comuns no campo brasileiro. Os painéis de venezianas, o biombo de sarrafos, a janela de rótula se filiam a uma tradição construtiva ibérica, como as janelas com venezianas da casa menor e intermediária, de um andar mais o teto-terraço. Cercado ao menos em dois lados adjacentes por um alpendre, o volume retangular não deixa de lembrar a casa Carneiro de Mendonça e bem poderia ser a casa do arquiteto, planejada segundo o próprio em função dos seus móveis antigos.

Os elementos de arquitetura que atualizam uma tradição construtiva racional e nacional nesses projetos não se restringem às esquadrias e aos elementos de proteção solar, incluem soluções de estrutura, vedação e cobertura. Os elementos de composição que atualizam uma tradição tipológica doméstica e local incluem edículas e espaços intermediários, balcões corridos em balanço e fragmentos de pilotis que constituem varandas e alpendres. O contraste entre exuberância exterior e simplicidade interior impressiona por inverter o costume colonial e imperial, a estratificação por disciplinar e hierarquizar a composição pitoresca eclética – incidentalmente demonstrando a possibilidade de fertilização entre a caixa corbusiana e a parede miesiana. Como a base expandida que revitaliza a composição piramidal, a base porosa amplia o repertório de tipos de composição doméstica moderna. Curiosamente, apesar da rejeição contemporânea por Lúcio do barroco, a oscilação inventiva entre percepção de simetrias diagonais e ortogonais introduz uma ambigüidade que é barroca em termos wolflinianos (7).

Em Razões da nova arquitetura (8), no fim do ano, Lúcio diz que Corbusier é o Brunelleschi do século e sustenta que a arquitetura moderna cristalizada em sua obra é o estilo verdadeiro da era da máquina, fundado como qualquer outro na repetição de formas peculiares. Tem ar fabril e despojado, mas se aplica à casa e ao palácio porque é a resposta justa ao avanço na técnica de construção. Sua base é o esqueleto independente que induz a planta e a fachada livres, onde a estrutura sem vigas à vista se configura com raciocínio primariamente geométrico e unitário, a vedação leve com raciocínio primariamente topológico e não forçosamente igual em andares diferentes. Diversa de arquiteturas do passado em sentido e forma, guia-se em essência pelos mesmos princípios e leis. Não se furta à simetria na acepção original de “com medida”. Resgata a clareza e objetividade da composição arquitetônica do mundo latino em que se inclui a Iberoamérica, cujo barroco manteve compostura mesmo no delírio. Endossar herdeira legítima do classicismo defendido pela Beaux Arts e pela ENBA equivale a recuperar a tradição própria do país, valorizado o seu espírito em vez da letra morta. Lucio aponta a irrelevância do antagonismo entre modernidade e tradição, nação e comunidade internacional. Insinuando que a arquitetura moderna constitui uma renovação compositiva motivada pelo desejo legítimo de caracterização da época distinta, enfatiza uma continuidade disciplinar e mostra perceber tanto as raízes acadêmicas da obra corbusiana quanto às inflexões que começavam a distanciá-la do Estilo Internacional (9).

Quatro exemplos – 1936-39

Planta e fachada livres se elaboram plenamente a partir de 1936. Na série de realizações exemplares se destacam, em ordem cronológica de conclusão do projeto executivo, as sedes da Associação Brasileira de Imprensa e do Ministério de Educação, o Museu das Missões e o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939. Os irmãos Roberto assinam o primeiro. Lúcio responde pelos outros três e pelo projeto não executado da Cidade Universitária do Brasil, liderando equipe no Ministério e na Cidade, sozinho no Museu e em parceria com Oscar Niemeyer no Pavilhão. A reconciliação com o barroco se registra na memória da Cidade Universitária, após a revisão internacional estimulada pelo Du baroque de Eugenio d’Ors, lançado em 1935. Lúcio diz agora que a arquitetura moderna possibilita a co-existência da concepção de espaço de um eixo gótico-oriental onde a beleza desabrocha como uma flor, abarcando tacitamente o barroco e o expressionismo, e um greco-latino , onde a beleza se contém como um cristal, correspondente à arquitetura clássica. O peso do caráter tipológico se reitera na memória do Ministério, quando a rejeição da persiana se faz por sua associação com prédio vulgar de apartamentos. Parafraseando Quatremère de Quincy na memória da Cidade, Lúcio toma o caráter local (e, por extensão, o caráter nacional) por qualidade a obter, como o caráter tipológico, via estratégias de projeto rememorativas e atributivas- dentro do quadro duma renovação compositiva fundamental e universal, pois fruto de técnica que desconhece fronteiras. A equação acadêmica de boa arquitetura com composição correta dotada de caráter apropriado se mantém: a sistematização de Corbusier não exclui o uso de estratégias quanto à geometria e à materialidade do edifício codificadas em 1799, a afirmação de peculiaridades de planta e elevação, a seleção de materiais e técnicas, o uso de vegetação nativa. No primeiro número da Revista do SPHAN, em 1937, “Documentação Necessária” traça um panorama da evolução da casa brasileira até o começo do século 20 (10).

O Ministério começa a despertar atenção internacional desde a sua inclusão na Œuvre Complète 1934-38 de Le Corbusier – com muita confusão deliberada sobre a sua autoria. Inaugurado em maio de 1939, concomitante à conclusão da ABI, o Pavilhão tem de imediato sua qualidade reconhecida pela crítica americana e européia. Em ambos os casos não há confusão de autoria, mesmo que, não sem razão, os autores sejam vistos como discípulos de Corbusier. O jeito brasileiro se vincula à curva livre e sinuosa de espírito barroco (suposta contribuição de Oscar) e à atualização de elementos vernaculares (suposta contribuição de Lúcio). A assertiva vira rapidamente um lugar-comum, de valor dúbio. A curva barroca não é livre e é óbvio o vínculo da rampa curva e regrada à escadaria ilustrando Documentação Necessária. Em 1944, o térreo do edifício Bristol mostra Lúcio perfeitamente à vontade com a curva livre no Parque Guinle, mesmo preferindo a oblíqua como incidente; as paredes perfuradas das casas do Instituto Tecnológico da Aeronáutica mostram Oscar nada inibido em 1947 quanto à atualização de elementos vernaculares. O jeito brasileiro tem de se explicar melhor e a precisão de Lúcio no álbum comemorativo do Pavilhão pode ajudar nesse sentido (11).

Lúcio diz aí que a curva virou o motivo básico de projeto, “dando ao conjunto graça e elegância e fazendo com que assim corresponda, em linguagem acadêmica, à ordem jônica e não à dórica, ao contrário do que sucede o mais das vezes na arquitetura contemporânea. Essa quebra de rigidez, esse movimento ordenado que percorre de um extremo a outro toda a composição tem mesmo qualquer coisa de barroco – no bom sentido da palavra – o que é muito importante para nós, pois representa de certo modo uma ligação com o espírito tradicional da arquitetura luso-brasileira”. A associação com o barroco não vem da curva, mas do movimento, diferença sutil que remete, uma vez mais, a Wölfflin e sua identificação do clássico com o princípio da autonomia formal de partes e do barroco com sua fusão.

Nessa perspectiva, o Pavilhão é a antítese do Ministério. A representação da nação pela estrutura efêmera se opõe à representação da nação através do monumento duradouro. Aquela se funda na casa grande com capela, no Columbandê descendente da casa romana e aparentado ao hôtel particulier. Esta se faz severa, dórica e clássica, metamorfoseando o pilotis em propileu e evocando nos seus adros o Campidoglio e Versailles. O “partido leve e aberto, como que rendado” do Pavilhão configura um quarteirão quase fechado, apropriando-se da massa compacta do Pavilhão Francês vizinho para precisar a configuração de adro e pátio. O partido do Ministério estipula quase aberto o quarteirão, o prisma puro que o atravessa e as alas periféricas definindo praça sombreada pelo pilotis. O Pavilhão se implanta com características de tecido construído perfurado por pátio privado, o Ministério postula nova espécie de praça edificada, pública e monumental. O biomorfismo abstrato e amebóide das curvas onipresentes do Pavilhão se tempera com a grelha de elementos fixos, muxarabi moderno frente ao comissariado. O mecanomorfismo figurativo das curvas episódicas do Ministério se dinamiza com a grelha de placas móveis quebrando o sol feito veneziana gigante. Quase doméstico, o Pavilhão tem “espírito gótico-oriental”. Quase palaciano, o Ministério tem “espírito greco-latino”. Mas a antítese deve se relativizar, para não municiar outra interpretação superficial que liga o Ministério a Corbusier e o Pavilhão a seus discípulos.

Em termos de fusão de partes, nada mais barroco que o bloco baixo do Ministério, fruto de expansão sem precedente da laje inferior do corpo principal, envolvimento do auditório pela mesma e justaposição de galeria e auditório ao vestíbulo central. Nem a autonomia de partes está ausente do Pavilhão, cujo auditório se discrimina escrupulosamente da galeria principal, mesmo articulado à frente por expansão de laje de cobertura. As duas composições constituem jogo de volumes mas insinuam operações subtrativas. A base expandida do Ministério incorpora virtualmente as bandas de vegetação frente ao núcleo de circulação que transformam o partido em T em um H; a do Pavilhão surge via as edículas que fazem do L um U. A porosidade só aumenta em Nova Iorque: o esquema do vazio entre dois sólidos transpassado por circulação pública se multiplica na base e se eleva para o andar nobre. Presente nos dois, a ordem colossal constitui exteriorização do mecanismo da planta livre, entendido como independência na configuração de suportes, lajes planas paralelas e vedações num mesmo andar, bem como independência de configuração de cada um desses elementos em andares distintos. Exacerbada até o virtuosismo no interior e exterior do Pavilhão, a independência concorre para a sensação de movimento e estabelecer com o Ministério diferença de grau, não natureza.

Do ponto de vista iconográfico, superestrutura do Ministério e mezanino do Pavilhão se servem das conotações de movimento de elementos náuticos. Coadjuvante no Ministério, a ordem colossal torna palaciana a elevação de Pavilhão para o jardim em contraste teatral com a estratificação da vista de avenida e rua. É notório que em ambos se dão paráfrases atualizadoras de elementos de arquitetura do repertório luso-brasileiro, erudito no exemplo dos painéis de azulejo e vernacular no dos painéis de proteção solar. Não observado, mas significativo e exemplificado no resgate do barro armado em Monlevade, é que o processo implica modificação de escala, material e modo de produção, neutralizado todo resíduo de nostalgia. Não menos importante mas despercebida como fonte da curva livre é a contaminação formal entre elementos de arquitetura e paisagismo, os primeiros sujeitos à estilização biomórfica, os segundos tratados da forma arquitetônica já descrita. Tímida na conflagração de tronco e chaminé na superestrutura do Ministério, no Pavilhão a estilização é franca. Sem exclusão dos elos com o expressionismo, o Dada e o surrealismo, tira partido da organicidade convencional do traçado do jardim pitoresco, introduzido aqui por Grandjean e popularizado por Glaziou. A alusão tipológica abrange precedentes com forte reverberação nativa. Os dois adros do Ministério refletem algo das duas varandas da casa bandeirante. O Pavilhão evoca o Columbandê ou o viaduto habitável para o Rio de Corbusier, tem rampa feito o forte baiano. Cuja carapaça não deixa de se invocar na ABI, surpreendentemente porosa também na base.

Porosidade, extroversão, exuberância, ambivalência e expansividade se abonam por clima e paisagem. E se oferecem, por repetição deliberada, como sinais de clima e paisagem; por metonímia, de país e nação. À essa atribuição se une a alusão rememorativa da arquitetura luso-brasileira descontaminada de pretensão eclética, do paisagismo pitoresco ingênuo aqui aclimatado. Interessa conjugar a conotação territorial à declaração de linhagem e valor, pois regiões climáticas e geográficas não batem necessariamente com fronteiras nacionais. E a credibilidade da proposta cresce porque Lúcio a compartilha com todo um grupo, cônscio que tal é pré-condição para sua eventual sanção como convenção cultural mais ampla.

Sem dúvida, o tom é epicurista e há uma utopia no ar, a da terra risonha e franca onde se pode andar despreocupado, pés descalços, peito aberto, braços nus. Afinal, o passeio que dilata a experiência arquitetônica e intensifica a consciência corporal pode aqui começar a ar livre. Contudo, a memória da Cidade sugere que, na expressão arquitetura moderna brasileira, o gentílico é o elemento subordinado, não o essencial. O mito da terra encantada não tem só o Brasil por referente. A validade dos resultados do enfrentamento com o clima transcende o país, é regional. O uso da arquitetura luso-brasileira como fonte iconográfica afirma a fertilidade da exploração do vernacular autóctone sem dissolver o elo com a máquina. Consideradas as “casas sem dono”, é paralela aos intentos análogos de Corbusier com o vernacular mediterrâneo. A revalorização de situação que este faz após 1930, balizada pela visita sul-americana e pelo estouro norte-americano, implica a aceitação da coexistência de tecnologias de distinto patamar de evolução na sociedade industrial. Antecipando ou confirmando a convicção de Lúcio quanto à natureza da arquitetura moderna a endossar, a resultante de caracterização da época deliberada e não a que se arroga expressão automática da época. Ao mesmo tempo que independiza a arquitetura moderna da industrialização plena e seus materiais.

Posta dessa maneira, a padronização da arquitetura por elementos ou tipos deixa de ser compulsão de clonagem, vira conveniência racional e trans-histórica. A mesma lógica preside o projeto da Cidade Universitária e a redução jesuítica cujos despojos constroem o Museu das Missões . Em qualquer caso, a arquitetura pressupõe a identificação e a classificação de células e órgãos. Em qualquer desses níveis, o tipo segue sendo mais importante que o modelo. É fundamental o esquema de reprodutibilidade, não a fidelidade mecânica. Não há determinismo e a idéia duma continuidade com o pensamento acadêmico se reforça. Para Guadet, o caráter era a variedade em arquitetura. Concordando, Lúcio vê na caracterização tipológica apropriada o instrumento que pode amparar e controlar uma diversificação formal da arquitetura moderna. Na refundação da linguagem da tribo detonada pela vanguarda européia, a contribuição brasileira na década de 30 vai muito além da inflexão regional ou dum tempero nacional. A atualização da ordem colossal, por exemplo, se justifica a partir do programa, do mesmo modo que a reiteração do motivo náutico. Independentemente da obrigação política comum, Ministério e Pavilhão articulam formalmente as diferenças entre pavilhão de feira e sede de instituição governamental. Ministério e ABI articulam as diferenças entre a sede de instituição governamental auto-suficiente e a de entidade corporativa que depende de aluguel para equilibrar o orçamento. E o eco no Pavilhão das obras congêneres de Melnikov, Mies, Sert, Aalto e Sakakura faz ver que a arquitetura moderna já constituiu acervo e história.

Mas a ampliação de vocabulário e repertório tipológico tampouco se anima só pela caracterização programática ou tipológica. O quarteirão se abre sem prejuízo de sua figuratividade. A abertura se reduz ao vestíbulo permeável e sem portas na ABI, demonstrando não haver incompatibilidade entre a arquitetura moderna e as prescrições de continuidade, alinhamento e gabarito do tecido edificado. O Pavilhão rendado usa a continuidade virtual para concretizar um quarteirão quase fechado. O Ministério propõe quarteirão aberto em três lados que vira praça edificada. A ocupação de esquina basta para que o Museu restitua a praça frente a catedral. O desafio que vem da pré-existência significativa não se evita. A rusticação e o arredondado da Biblioteca Nacional reverberam atenuados na ABI mais alta e menos longa. Se o Pavilhão vira renda perto do vizinho gordo, o Museu é laço que recorta a catedral empregando a mesma pedra. O vidro liso do Ministério emoldura e espelha a capela trabalhada e mate. A viabilidade cabal de convivência entre o novo e o antigo se demonstra sem o mínimo de concessão e com o máximo de sensibilidade, em dose que não tem precedente.

De outro lado, a coluna colossal já fala da ambição de cooperar na fatura de linguagem mais rica e versátil que a gerada pelo ocidente antes do crepúsculo eclético. Na ABI, Ministério e Pavilhão, as distinções entre pilastra, meia coluna, coluna de três quartos, coluna aplicada e coluna solta ressurgem via as variações de distância entre suporte e parede independizados no pilotis. No Museu, a independência entre suporte e parede se mostra como justaposição de sistemas construtivos ensejando um debate entre elementos de composição: a caixa murária roça a colunata, a casa-pátio introversa tangencia o pavilhão transparente, o telhado-plano se retrai na fímbria do telhado-volume. Não é à toa que, para Lúcio, a arquitetura moderna seja o lugar onde o espírito gótico-oriental e o greco-latino se encontram e completam. Nem que possa comentar-se em termos de dórico e jônico, clássico e barroco. Se a nova arquitetura é refundação, a multiplicação de modos compositivos dentro da unidade é também um desafio. Por isso Ministério e Pavilhão se fazem cara e coroa da mesma moeda, as variações em tom maior e menor do mesmo tema, os pólos extremos mas simbiônticos da mesma escritura. E, em retrospectiva, a opacidade fosca da ABI ganha matiz toscano.

À guisa de epílogo

A audácia da tríplice preocupação com situação, tipo e disciplina persiste na década seguinte. O Hotel de Ouro Preto grande e urbano enfrenta a convivência da obra nova com o bem tombado e combina celularização espacial e planta livre. Tanto o Hotel de Friburgo quanto o Parque Guinle se abrem à paisagem verde pitoresca, mas um é pequeno, provisório e campestre; luxuoso e citadino, o outro reinterpreta o crescente georgiano em termos duma serialidade racionalista. Mais literal na leitura do precedente, o Pedregulho proletário e subsidiado desafia a encosta onde se implanta. A stoa grega revive no interior do aeroporto de Santos Dumont. O parque de circuito revive no conjunto da Pampulha, que declina em termos coríntios o seu Cassino, em termos primitivistas a Casa do Baile e o Iate Clube. A construção abobadada enriquece a discussão na Capela retórica de São Francisco e no SOTREq utilitário. A enumeração não esgota as realizações de valor no período, mas basta para recordar a natureza coletiva e a fertilidade da proposta.

Contudo, sua densidade nunca foi apreciada por uma crítica que não quis ver na obra de Lúcio e de seu grupo mais que lirismo ou regionalismo, uma introdução fácil a Corbusier. Na revisão necessária, a corbusolatria é ponto a atentar. Depois de Le Corbusier e o Brasil que Cecília Rodrigues dos Santos, Vasco Caldeira, Romão e Margarete Pereira publicaram em 1987, e Le Corbusier e o Rio – 1929-1936, que Yannis Tsiomis organizou em 1999, não fica bem repetir que Corbusier veio Brasil por insegurança de Lúcio e equipe quanto ao projeto original do Ministério, ou que esse se construiu a partir de risco original de Corbusier. Com todo o respeito ao próprio Lúcio, que tinha seus motivos para propagar ou não desmentir essas versões. O débito brasileiro com Corbusier precisa relativizar-se. Afinal, penaliza-se Michelangelo por ter usado os mesmos elementos que Bramante? Ou Mies por ter adotado a planta livre em 1929 após Garches e Savoye? O cobogó recifense foi patenteado em 1930. O parentesco do telhado-borboleta “inventado” para a Casa Errazuris com fragmento do telhado da Casas Vinçens de Gaudí pode não ser coincidência, considerado o interesse que fez Corbusier registrar no bloco de notas em 1927 a Escola Paroquial da Sagrada Família. O brise-soleil supostamente “inventado” por Corbusier em 1933 não passava de rabisco, quer na versão fixa para Argel, quer na basculante para Barcelona. Só vai se elaborar no arranha-céu argelino não construído de 1938, já concluída a grelha fixa da ABI e em execução a grelha móvel mais sofisticada do Ministério. De fato, a influência brasileira em Corbusier e a reação de Corbusier à mesma permanece inexplorada, embora o débito óbvio do Carpenter Center ao Ministério e o ressentimento que transparece na mutilação do projeto de Lúcio para a Cidade Universitária de Paris (12).

Fossem a proposta e seu desenvolvimento tão derivativos ou idiossincráticos, não teriam exercido tanta influência no pós-guerra. Lúcio vai comparar em 1951 essa arquitetura moderna brasileira a um milagre. E sem dúvida a convergência de fatores e atores que a tornou possível foi inesperada, provavelmente irrepetível. Mas vale a pena lembrar, para uma historiografia demasiado obcecada com a conexão barroca e a curva livre, o vernacular, o telúrico, o original e a brasilidade, que nesse caso raro de santo de casa reconhecido, o santo bem preparado dominava por inteiro o seu missal.

notas

1
COSTA, Lucio, ”O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, reeditado em COSTA, Lucio. Sobre arquitetura, Porto Alegre, 1966.

2
No projeto da casa Ernesto Fontes, as dependências se organizam em dois andares à volta de um grande vestíbulo de pé direito duplo. O volume é um prisma retangular com telhado de quatro águas, acoplado num dos lados menores a uma ala curta para serviço. A fachada de acesso, no lado menor oposto, e a fachada principal, no maior adjacente, apresentam composição tripartida e simétrica. A primeira tem sacada fechada com gelosia de madeira ao centro sobre pórtico carroçável saliente. A segunda mostra ao centro sacada de jeito parecido sobre os três arcos plenos que limitam a varanda abobadada entre salão de estar e biblioteca nas pontas. A casa de campo para Fábio Carneiro de Mendonça tem planta retangular, compartimentada sobre uma trama xadrez e coberta por quatro águas de sapé. O espaço central abobado incluindo salão e corredor dos dormitórios vedado por tabique baixo é circundado pelo forro plano acima da ala de dormitórios de um lado, da garagem oposta, do serviço e da varanda em L aberta para a vista. Assim como o projeto moderno para a casa Fontes, ambos estão ilustrados com destaque em COSTA, Lucio. Registro de uma vivência, São Paulo, Empresa das Artes, 1995.

3
A entrevista foi republicada em VIEIRA, Lucia Gouvea. O salão de 1931, Rio de Janeiro, 1984. A versão moderna da casa Fontes e as “casas sem dono” aparecem em Registro de uma vivência, op. cit., embora a primeira se mostre sem plantas e cortes.

4
Ver Registro de uma vivência, op. cit.

5
O Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, 1928, interessou Le Corbusier, que o cita em Précisions, sur un état present de l’architecture et l’urbanisme, Paris, 1930, o relato de sua visita a América do Sul em 1929.

6
Assim como quase toda a produção de Le Corbusier, incluindo as casas Errazuris e de Mandrot, a casa de Eileen Gray havia sido publicada em Architecture vivante, certamente uma das fontes de informação dos arquitetos brasileiros sobre o movimento moderno europeu, junto com L’esprit nouveau, assinado por Mario de Andrade, e os tomos da Oeuvre complète, 1910-29 e 1929-34, pós-Monlevade.

7
Ver WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte, São Paulo, 1986, tradução do original alemão de 1915. Amplia Renascença e barroco, São Paulo, 2000, original de 1888. O autor desenvolveu mais o tema em Lucio Costa: da atualidade de seu pensamento, Revista AU nº 39, 1991.

8
Republicado em Sobre Arquitetura, op. cit.

9
O autor tratou do tema em “Uma certa arquitetura moderna brasileira: experiência a reconhecer”, Arquitetura revista, e em “Teoria académica, arquitectura moderna, corolario brasileño”, Anales nº 26, Instituto de Arte Americano Mario J. Buschiazzo, Buenos Aires, 1988, traduzida em Gávea nº 11, 1994.

10
Documentação necessária e as memórias do Ministério de Educação e da Cidade Universitária são reproduzidas em Sobre arquitetura, op. cit., junto com extenso material sobre o Museu das Missões. Sobre a construção do Ministério, ver: SÁ, Paulo; LISSOVSKY, Maurício. Colunas da educação. Rio de Janeiro, 1996. Sobre o Ministério, ver o texto do autor, “Protótipo e monumento, um ministério, o ministério”, Projeto nº 102, 1987, republicado em PÉREZ, Fernando (org). Le Corbusier y sud america. Chile, 1991, junto a texto de Rogério Oliveira, “Dos proyectos, una ciudad universitaria: las modernidades electivas de Corbusier y Lucio Costa”. Du baroque está presente na Biblioteca Noronha Santos do SPHAN. Sobre os Roberto e a ABI, ver a dissertação de mestrado de Claudio Calovi Pereira, PEREIRA, Claudio Calovi. Os Irmãos Roberto e a arquitetura moderna no Rio de Janeiro: 1936/1954. Rio de Janeiro, PROPAR-UFRGS 1994, orientada pelo autor.

11
A memória publicada no Álbum comemorativo do pavilhão brasileiro da feira de Nova York, New York, 1939, é mais extensa que as versões de Sobre arquitetura e Registro de uma vivência. Foi transcrita no texto do autor, “Arquitetura moderna, pavilhão brasileiro, estilo Corbu”, AU nº 26, 1989. Sobre o Parque Guinle, ver Registro de uma vivência, a nota correspondente em “Da atualidade de seu pensamento”, op. cit., a “A racionalidade da meia lua” em Arquitextos nº 10.1, mais “Os apartamentos do Parque Guinle e a cidade moderna brasileira”, ensaio do autor nos Anais do Docomomo, Viçosa, 2001.

12
Certas comparações pecam pela cronologia incorreta. Como mostrado em “Os apartamentos do Parque Guinle e a cidade moderna brasileira”, o Parque Guinle já está aprovado na Prefeitura do Rio em 1944, o projeto da Unidade de Habitação data de 1946. Logo, o balcão do primeiro não pode derivar do segundo em nenhum aspecto. Não fosse o balcão (ou varanda, loggia, sacada, etc.) um elemento de arquitetura tradicional no Ocidente, seria possível até dizer o contrário. Marcelo Puppi analisou o episódio do Pavilhão do Brasil inédito, escrito quando de seu doutoramento em Paris.

sobre o autor

Carlos Eduardo Dias Comas é arquiteto, membro da Comissão Coordenadora do PROPAR (Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura) da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e responsável pela pesquisa "Arquitetura Brasileira Contemporânea: Cidade Figurativa, Teoria Acadêmica, Arquitetura Contemporânea".

comments

022.01
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

022

022.00

136 arquiteturas brasileiras (editorial)

Fernando Luiz Lara

022.02

Arquitetura Brasileira após-Brasília: redescobertas?

Cêça Guimaraens

022.03

O projeto de arquitetura e sua inserção na pós-graduação

Edson Mahfuz

022.04

Cidade de El Alto:

uma aproximação à arquitetura e ao urbanismo da nova metrópole altiplânica

Victor Hugo Limpias Ortiz

022.05

Silêncio na paisagem: a obra de Richard Long

Ana Rosa de Oliveira

022.06

Urbis, uma estratégia de atuação

Marcelo Brito

022.07

Alma espacial

Douglas Vieira de Aguiar

022.08

Relato e reflexões sobre uma experiência de trabalho de restauro:

a intervenção no antigo Cine-Teatro Paramount em São Paulo

Haroldo Gallo

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided