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NAME, Leo. Apontamentos sobre a relação entre cinema e cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 037.02, Vitruvius, jun. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.037/676>.

Na última década ganharam centralidade acadêmica os estudos que associam “cultura” e “meio urbano” e, mais especificamente, “cinema” e “cidade”. Debruçar-se sobre a relação entre estes dois elementos significa não apenas pesquisar o papel, no mais das vezes não creditado, que as cidades desempenham nos filmes, mas sobretudo examinar as múltiplas e significativas interações entre a mais importante forma cultural e a mais importante forma de organização social do século XX.

Desde sua invenção, na Paris do fin-de-siècle, o cinema tem mantido intrínseca relação com as cidades. O cinema não foi apenas por excelência o grande espetáculo do século passado; também foi, desde que nasceu, uma forma de entretenimento essencialmente urbana e deve muito de sua natureza ao desenvolvimento da cidade. Criado no auge da metrópole moderna, o cinema necessitava de pronto tanto de seu aparato industrial quanto de seu adensamento, por ser uma arte de reprodução e de massa. A partir de então a cidade passou a ser, sem dúvida, um dos elementos mais filmados pelo cinema, tendo o seu desenvolvimento acompanhado de perto pela sétima arte: começando pela indústria Lumière em Lyon e pela estação de trem de A chegada de um trem a Ciotat (2), primeiro filme da História, exibida no Grand Café de Paris, os primeiros estúdios passaram a se instalar nas periferias das metrópoles. Depois, estes mesmos estúdios começaram a reproduzir partes de cidades para filmagens e, mais tarde, se tornaram eles mesmos partes das cidades, como aconteceu com Cinecittà e Hollywood.

Se nos primeiros registros cinematográficos tinha-se a ilusão de estar restituindo-se e arquivando o real, hoje se sabe que as imagens cinematográficas afastam-se da chamada “realidade concreta”, minimamente, a partir da intervenção compositiva de seus realizadores. Filmes se parecem com algo, mas não são o algo. É correto afirmar, portanto, que as cidades cinemáticas, sejam construídas ou reconstruídas em estúdio ou utilizadas como locação, são uma representação. Podem apresentar-se sob espectros de cores diversas, em preto e branco, sob efeitos de luz e sombra, com um caráter edênico ou infernal, festivo ou sombrio, revelando-se utopias ou distopias do espaço urbano. Mas isto é o mínimo que uma representação pode pretender e conseguir.

A maneira como os espaços são usados e lugares são retratados nos filmes lhes dá significados que podem contribuir, intencionalmente ou não, para a difusão de um conjunto de crenças e valores muitas vezes ligados a estruturas de dominação cultural, política e econômica. É preciso, portanto, tratar os discursos e representações sobre a cidade como construções simbólicas que estão plenas de valores sociais e produzem efeitos bastante concretos na forma da cidade e na vida de seus habitantes.

Estudar o cinema e a cidade é na verdade se perguntar: quem faz o discurso, para quem, e visando o quê? Qual o papel das produções cinematográficas que enfocam cidades e culturas específicas em um mundo globalizado? De que maneira o cinema tem contribuído para a manutenção, transformação e subversão de estereótipos e clichês sobre estas cidades e seus habitantes?

O cinema veio atender uma necessidade presente desde meados do século XIX e posteriormente intensificada de forma gradual no metropolitano: uma espécie de voyeurismo cotidiano, da valorização do olhar e do instante e da espetacularização da realidade. A centralidade do olhar, que vinha consolidando-se desde o Renascimento, e a espetacularização do cotidiano, que assume contornos mais nítidos no final do século XIX, popularizam-se no gosto pelas caricaturas e faits divers na imprensa, pelos panoramas, pelas exibições de variedades nos vaudevilles, pelas exposições universais e pelos museus de cera.

A espetacularização e o voyeurismo eram parte do cotidiano da Paris dos fins do século XIX onde surgiu o cinema. A busca pela inserção do indivíduo em uma realidade simulada fazia-se presente no Musée Grévin, o museu de cera até hoje existente na capital francesa e nos Museus do Folclore do final do século anterior em lugares como a Escandinávia. Entre cenários e esculturas de cera, ao público era permitido estar em contato, por simulação, com o que lhe era de acesso restrito ou impossível na vida real: uma cena histórica, um acontecimento descrito em lendas antigas, a biblioteca do presidente, o camarim de uma dançarina, ou a vista privilegiada de Paris no momento da construção da Torre Eiffel. Este percurso pelos museus de cera guardava fortes laços com o voyeurismo e a flânerie, práticas culturais do fim-de-século que não estavam restritos à burguesia e que, mais que identificarem as origens do olhar cinematográfico, apontam para o nascimento do público, porque é necessariamente na multidão que se encontra o espectador cinematográfico.

Uma análise de catálogos da exposição universal de1900 mostrará a formação do olhar cinematográfico nos populares panoramas: além das imensas telas pintadas de paisagens distantes via-se invenções que tentavam ser ainda mais emocionantes, a partir de algum recurso técnico que desse a ilusão do movimento. O Stereorama, no pavilhão argelino, reproduzia uma viagem pela costa do Mediterrâneo, e utilizava uma tela móvel e efeitos de luz que proporcionavam ao público a sensação de movimento. Uma invenção ainda mais sofisticada, o Mareorama, consistia em um edifício em forma de navio de quarenta metros de altura, onde mil e quinhentos “passageiros” simulavam uma viagem entre Marselha e Constantinopla: dispostos em um compartimento que imitava uma cabine de navegação, os espectadores ficavam diante de uma imensa paisagem pintada numa tela, desenrolada lentamente no sentido horizontal, enquanto uma outra equipe tratava de dar movimentação ao “navio”, fazer controles de luzes que variavam de acordo com a hora do espetáculo, e movimentar uma plataforma de algas marinhas para que os espectadores tivessem a ilusão olfativa de uma brisa marítima.

O desejo de “realismo” misturava-se à visualidade, à narrativa e ao movimento do e no espaço, elementos inerentes à sétima arte. A cidade antes e logo após o cinema já era cinemática.

A arquiteta Giuliana Bruno (3) defende a idéia de que nem todas as cidades são cinemáticas. Algumas delas, por serem mais fotogênicas pela natureza, pela arquitetura ou pelo movimento perpétuo de pessoas, atrairiam e melhor responderiam à imagem em movimento. Estes argumentos parecem confundir paisagem com beleza, panorâmica com cartão postal, como se a lente cinematográfica estivesse interessada apenas nos aspectos positivos e belos dos lugares. Uma mesma cidade pode ser filmada de várias maneiras, captando seu lado belo ou feio, seus espaços movimentados ou ermos, sua densidade ou seus vazios. Tais recortes dependem do discurso inerente a estas imagens. É incalculável o número de cidades que já se tornaram locações cinematográficas: Los Angeles, Nova Iorque, Filadélfia, Roma e Nápoles, Montreal, Rio de Janeiro e Paris são alguns dos muitos exemplos cuja representação cinematográfica tem sido exibida nas telas e tem merecido atenção de estudiosos.

A paisagem é elemento intrínseco à narrativa cinematográfica e à representação das cidades. É a partir dela que, por meio de ícones – construções, acidentes naturais, monumentos, edificações etc. – o meio urbano é decodificado e reconhecido pelo espectador. Mas a lente cinematográfica escolhe e dispõe os lugares de variadas maneiras, dotando-os de angulações, luz diferenciada e de uma narrativa, adquirindo assim diversas conotações.

Para o geógrafo Jeff Hopkins (4), a paisagem situa o espectador em um lugar cinemático onde espaço e tempo estão comprimidos e expandidos e onde papéis sociais e valores morais são sustentados ou subvertidos. A paisagem cinematográfica não é, então, um lugar neutro para o entretenimento ou para uma documentação objetiva, muito menos mero espelho do “real”, mas sim uma forte criação cultural e ideológica onde significados sobre lugares e sociedades são produzidos, legitimados, contestados e obscurecidos. Elemento da paisagem, a arquitetura também tem destaque nas representações da cidade. Arquitetura e cinema se aproximam a partir da manipulação do espaço e do tempo e o cinema, desde sempre, foi campo de experimentação e crítica das várias utopias e contra-utopias arquitetônicas e urbanísticas. Sejam nos filmes alemães da República de Weimar, nos filmes futuristas, nos famosos city films do início do século XX ou pela crítica à Arquitetura Moderna em filmes de Jacques Tati, o cinema tem o papel de vitrine da arquitetura e dos debates relativos ao espaço urbano.

Não só a arquitetura, mas qualquer representação da cidade no cinema, seja a real ou a cenográfica, do presente, do passado ou do futuro, de visão otimista ou pessimista, é invariavelmente um comentário sobre o presente. O filme reflete os debates da sociedade, os problemas emergentes e as novas estéticas e ideologias. A cidade do futuro em Metrópolis (5), por exemplo, é personagem central da narrativa, representada como uma entidade diabólica que sublinha a decadência dos homens, reduzidos a seres mecanizados, expressão dos receios já existentes na época em relação à cidade industrial. Já a Los Angeles de 2019 em Blade runner – o caçador de andróides (6) não é nada mais do que a total realização dos horrores distópicos que pareciam somente virtuais na década de 80. O filme apresenta uma poderosa relação entre pós-modernismo e capitalismo, particularmente na representação da decadência pós-industrial denunciada pelos edifícios de pastiche arquitetônico completamente abandonados em contraposição às ruas apinhadas de indivíduos de todo o tipo. Proliferação e desperdício servem como índice e denúncia do tempo acelerado da nova fase do capitalismo.

O cinema torna-se objeto urgente de avaliação científica ao se perceber que no contemporâneo mundo da imagem, da circulação global e da concorrência entre os lugares, muitas das cidades hoje vivem, literalmente, de suas aparências. Dentro deste contexto, ao serem captadas pela lente cinematográfica têm propaganda mundo afora, rendendo lucros. O cinema é negócio vantajoso porque é uma indústria que não gera resíduos biotóxicos, porque as filmagens têm caráter transitório e representam uma breve e dinâmica injeção de capital para freelancers, hotéis e outros serviços, e, finalmente, porque os filmes, em médio prazo, podem atrair turistas interessados em elementos aparentemente banais (um muro sem história, uma rua sem interesse particular) que adquiriram novo status ao serem vistos nos filmes. Nos EUA e na França, por exemplo, é comum que as cidades possuam escritórios ligados à administração local especializados no controle e muito mais na divulgação da cidade como locação cinematográfica: os governos locais parecem estar acreditando nas vantagens que a cidade cinemática pode oferecer à cidade concreta.

Em relação ao mesmo trinômio “cinema, cidade e negócios”, pode-se apontar a influência dos filmes em um novo movimento arquitetônico dos EUA: o new urbanism. O exemplo mais famoso do movimento é o da cidade de Celebration, na Flórida, inaugurada em 1996 pela Disney Corporation no simbólico 4 de julho. Antigo sonho de Walt Disney, que já a vislumbrava no projeto original do EPCOT Center, Celebration tem o simulacro como algo corriqueiro: mesmo sendo recentes, as edificações de caráter historicista projetadas por famosos arquitetos pós-modernistas podem exibir na fachada uma placa dizendo terem sido construídas no início do século XX; detalhes que aparentam ser de mármore são, na verdade, de plástico e músicas são executadas nas ruas em pequenas caixas de som escondidas em palmeiras de tamanho idêntico. Outro exemplo famoso é Seaside, também localizada na Flórida e inaugurada em 1981. Tal cidade, “real”, foi locação para filme O Show de Truman – o show da vida. (7) Na trama, Seaside torna-se Seaheaven, que, ao contrário, é uma cidade cenográfica onde o protagonista tem sua vida vigiada e manipulada. Uma análise minuciosa dos espaços destas cidades revela, de fato, uma hipérbole dos ideais da arquitetura pós-moderna, no que diz respeito à importância do simbolismo e do vernacular na arquitetura das massas. Ao aproximarem suas aparências à cenografia do cinema, veículo para as massas rico em simbolismos, as cidades new urbanistas tornam-se exemplos bastante contundentes daquilo que tanto admiravam Robert Venturi e Denise Scott Brown em Las Vegas: o simulacro, que no new urbanism invade o cotidiano. Afinadas com os impactos causados no mundo pelas imagens do recente atentado ao World Trade Center, confundidas e comparadas a exaustão principalmente pela imprensa sensacionalista com inúmeras seqüências cinematográficas de filmes-catástrofe (8), Seaside e Celebration comprovam que a sobreposição entre falso e verdadeiro é cada vez mais freqüente no cotidiano e que a dualidade entre os sítios e suas representações deixa marcas não só no que costuma ser chamado de “imaginário” como também no espaço urbano concreto.

Entre a lente da câmera e a retina do espectador está a tela de cinema, que desde as suas origens expõe imagens das cidades com significados muitas vezes contraditórios. Se o cinema de ontem era restrito à sala de exibição, o de hoje tem circulação bem mais livre e invade residências em todo o mundo, seja pela televisão, a partir do videocassete ou do DVD, por meio de brinquedos, roupas, trilhas sonoras, videogames etc. Sua penetração na sociedade, se não é mais forte, é mais evidente.

Filmes e cidades têm lugares onde ocorrem vivências – respectivamente mentais e empíricas – das quais emanam representações em que se configuram sentimentos positivos ou negativos. Viver na cidade implica fazer-se várias perguntas. Que cidade se quer? Que paisagem se vê? Que espaço se tem? Para quem pesquisa o urbano, a temática da inter-relação entre “cinema e cidade”, muito rica, em andamento e aqui apenas esboçada, é campo fértil para a investigação destas e muitas outras questões.

notas

1
Este texto é um resumo da comunicação oral feita em 29 de maio de 2003 no X Encontro Nacional da ANPUR. O artigo completo está em: NAME, Leonardo. O espaço urbano entre a lente e a retina: imersão nos escritos sobre cinema e cidade. Anais no X Encontro Nacional da ANPUR. ST 7.5, Temas emergentes. Belo Horizonte, ANPUR, 2003 (cd-rom).

2
L’arrivée d`un train à la Ciotat
, Auguste Lumière e Louis Lumière, França, 1895.

3
BRUNO, Giuliana. City views: the voyage of film images. In: CLARKE, David B. (ed.). The cinematic city. London: Routledge, 1997, p. 46-51.

4
HOPKINS, Jeff. Mapping of cinematic places: icons, ideology and the power of (mis)representation. In: AITKEN, Stuart C.; ZONN, Leo E. Place, power, situation and spectacle. A geography of film. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 1994, p. 47-65.
5
Metropolis
, Fritz Lang, Alemanha, 1927.

6
Blade runner
, Ridley Scott, EUA, 1982.

7
The Truman Show
, Peter Weir, EUA, 1998.
8
Sobre o assunto ver: NAME, Leonardo. O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência. http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq033/arq033_02.asp.

sobre o autor

Leonardo dos Passos Miranda Name (Leo Name) é arquiteto-urbanista (FAU-UFRJ), especialista em Sociologia Urbana (IFCH-UERJ), mestrando em Geografia (PPGG-UFRJ), Bolsista do CNPq.

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