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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo retoma e discute os temas modernidade e memória, além de refletir sobre as representações de memória engendradas pelas novas temporalidades, inauguradas pelas novíssimas mídias


how to quote

LORDELLO, Eliane; LACERDA, Norma. A memória das cidades e a diversidade cultural nas temporalidades ciberculturais. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 083.03, Vitruvius, abr. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.083/254>.

O primeiro objetivo deste artigo é retomar e discutir os temas modernidade e memória, historicamente imbricados com a cidade. Iniciamos a argumentação interpretando as idéias de modernidade e memória que surgem nos textos de Walter Benjamin. Prosseguimos pela dialogia dos fenômenos modernos com seus correspondentes na atualidade cibercultural, referenciando-nos em Andreas Huyssen. Esse diálogo permitiu-nos cumprir o segundo objetivo: refletir sobre as representações de memória engendradas pelas novas temporalidades, inauguradas pelas novíssimas mídias. Concluímos pelas questões e desafios, engendrados na cibercultura, para a memória das cidades e a diversidade cultural.

Em artigo publicado no site Vitruvius, o professor Paulo Funari relata a reunião organizada pela International Cultural Property Society (Sociedade Internacional sobre a Propriedade Cultural). Sediado em Nova Iorque, o encontro deu-se na semana de 20 de outubro de 2005, data em que foi aprovada a Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade de expressões culturais. Conforme Funari, ali presente na qualidade de representante latino-americano, o tema geral da referida reunião foi a pergunta: “Qual patrimônio preservar”? (2)

Essa questão foi formulada numa atualidade marcada pela assunção da diversidade cultural, em uma época em que as variadas culturas são disseminadas velozmente pelas novíssimas mídias, e em que uma das acepções da memória é aquela medida em bytes. Não obstante, a pergunta ecoa, a nosso ver, aquela pioneira investida filosófica de Benjamin, ainda nas primeiras décadas do século passado, sobre o que deveria compor o conteúdo da memória. Mais ainda, ela avoca a atualidade das reflexões benjaminianas a propósito da memória na modernidade, o que nos motiva a retomá-las neste artigo.

Acreditamos que, independentemente do tempo cronológico, cada época e lugar conhecem a sua própria modernidade. Se assim se dá, parece-nos que é por uma significação muito particular com que aqui entendemos o moderno: ele é o que contém e carreia o germe do novo. Isso nos leva a compreender a modernidade como o fenômeno que propicia, de modo eviterno, o sentido da inovação.

Baudelaire, em pleno trato com a insurgente modernidade oitocentista, a relaciona com a Antigüidade, como veremos adiante. O que nos parece mais instigante nessa associação entre modernidade e antigüidade, é que o interesse pelo antigo se manifeste no seio do moderno. Assim, chegamos precisamente ao fundamento deste artigo: a convergência dos temas modernidade e memória no trato com a modernidade urbana. Nosso pressuposto é de que há um liame entre essas temáticas. Para abordá-lo, coligimos e analisamos sentidos de modernidade e de memória presentes nos ensaios de Walter Benjamin, focados na obra de dois autores nascidos no século XIX: Charles Baudelaire e Marcel Proust. Em seguida, analisamos esses dois conceitos segundo um filósofo da atualidade, o neofrankfurtiano Andreas Huyssen, que, trilhando a senda aberta por Benjamin, enfoca a sociedade atual sob a polarização memória e esquecimento. Tais correlações nos encaminham a novos desafios, postos no contexto da cibercultura, para a memória urbana e a diversidade cultural.

Modernidade

Will you tell us when to live?
Will you tell us when to dye?
I know it comes a long way,
Changing day to day
Cat Stevens, Where do the Children play?

Nosso recorte para a abordagem de modernidade e memória, segundo Benjamim, é cingido por dois dos ensaios em que Kothe (3) distingue a temática da modernidade literária. Ambos têm o seu nódulo em Baudelaire e no século XIX: Paris capital do século XIX e A Paris do segundo Império em Baudelaire.

Antes de iniciarmos a abordagem de cada texto integrante do recorte, vamos apresentar seus respectivos contextos de aparecimento, consoante as explicações dadas por Kothe. Paris Capital do século XIX foi escrito em 1935 e publicado em 1955. Endereçava-se à publicação pela revista do Instituto de Pesquisa Social (posteriormente conhecido como Escola de Frankfurt), e constitui a abertura do Trabalho das passagens. O segundo ensaio, A Paris do Segundo Império em Baudelaire, foi escrito entre abril de 1937 e setembro de 1938, também a pedido do Instituto de Pesquisa Social. No entanto, a publicação deste último deu-se por partes: O flâneur em 1967; A modernidade em 1968, e finalmente A boemia, em 1969.

Comecemos pelo texto Paris, capital do século XIX. Nele Benjamin trata da modernidade atendo-se ao aparecimento das passagens materializadas pelas galerias. Situando o aparecimento dessas nos quinze anos que se seguem a 1822, principia por esclarecer as duas condições de seu florescimento. A primeira é a alta do comércio têxtil, e a segunda é ensejada pelos primórdios da construção com ferro. O filósofo distingue alguns adventos possibilitados pelo uso desse novo material, tal como a faculdade de imitação, por exemplo: de uma casa por uma fábrica ou de uma coluna qualquer, sem estilo predeterminado, pelo modelo pompeiano.

Assim, Benjamin conclui pela capacidade de a construção em ferro desempenhar um papel memorialístico. Mais ainda: de trazer à consciência coletiva imagens “em que o novo se interpenetra com o antigo” (4). O filósofo qualifica-as de desiderativas, como imagens em que a coletividade tenta tanto superar quanto transfigurar as privações do produto social e as deficiências da ordem social de produção. Ademais, enfatiza que as imagens desiderativas deixam transparecer um afã de se distinguir do passado recente, já então considerado antiquado.

Benjamin situa a coincidência do surgimento das galerias com o apogeu da difusão dos panoramas. Define-os como “a expressão de um novo sentimento de vida”, e relembra a repetida manifestação, ao longo daqueles oitocentos, da supremacia do morador da cidade sobre o do campo. Pelas precedentes associações, correlaciona o sucesso dos panoramas com o desejo do morador da cidade de trazer, para ela, o campo. Demonstra, assim, que os panoramas ostentam uma abertura da cidade em paisagem, tal como posteriormente fará para o flâneur, o deambulador urbano. Essa correspondência nos sugere uma equiparação pelo filósofo da galeria com o panorama. É como se a penetrabilidade e transparência da galeria e as figurações do campo na cidade, propiciadas pelo panorama, fossem fenômenos de uma mesma ordem – a da visibilidade e da interação. É o mundo tornado mais próximo e mais espetacular na cidade – eis o moderno.

As galerias vendem suas mercancias, os panoramas são mercadorias, e todo esse sortimento conhece o paroxismo da visibilidade nas exposições universais. São elas mais um fenômeno de modernidade, aos olhos de Benjamin, que as define como “centro de peregrinação ao fetiche mercadoria” (5). Para o filósofo, elas transfiguram o valor de troca da mercadoria e criam uma moldura em que o valor de uso é posto em segundo plano; ademais, nelas, o próprio homem é tornado mercadoria pela indústria da diversão. O correlato imediato de tudo isso é um desfrute da alienação pelo homem, em meio aos seus semelhantes igualmente alienados.

Relacionando as exposições diretamente aos interesses do capital e do império, Benjamin compendia:

“Para a exposição Universal de Paris de 1867, Victor Hugo redige um manifesto ”Aos povos da Europa”. Os interesses deles foram defendidos antes, e de um modo mais claro, pelas delegações de trabalhadores franceses, das quais a primeira foi enviada para a Exposição Universal de Londres de 1851 e a segunda, com 750 membros, para a de 1862. Esta última foi importante, pois contribuiu indiretamente para que Marx fundasse a Associação Internacional de Trabalhadores. A fantasmagoria da cultura capitalista alcança o seu desdobramento mais brilhante na Exposição Universal de 1867. O Império está no apogeu do seu poder. Paris se afirma como capital do luxo e da moda” (6).

Além do auge das exposições universais, outro signo da modernidade que refulge nessa leitura é a propagação da novidade nos magazines, que Benjamin equipara à imprensa em seu papel de organizadora dos valores espirituais. Na contramão desse processo, protestam os defensores da “arte pela arte”. Segundo o filósofo, nessa bandeira está a gênese da concepção de obra de arte total, que visa “impermeabilizar a arte contra o desenvolvimento da técnica”. A respeito de tais fenômenos, conclui o filósofo que esse tipo de enaltecimento da arte constitui o “contrapeso da dispersão que caracteriza a mercadoria” (7).

Passagens, interiores das galerias, magazines, salões de exposições, panoramas, Benjamin os agrupa na categoria de “reminiscências de um mundo onírico”, e os associa à reflexão dialética:

“A avaliação dos elementos oníricos à hora do despertar é um caso modelar de raciocínio dialético. Por isso é que o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época não apenas sonha a seguinte, mas, sonhando, se encaminha para o seu despertar. Carrega em si o seu próprio fim e – como Hegel já o reconheceu – desenvolve-o com astúcia. Nas comoções da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem” (8).

Detectamos nesse reconhecimento mais um signo da modernidade na concepção benjaminiana: o moderno é o que profetiza a transformação. Em um romance passado no século XVIII, em que se flagram esboços da modernidade, Susan Sontag, célebre estudiosa de Benjamin, di-lo de outro modo: “Tudo deve ser compreendido, e tudo pode ser transformado – eis a visão moderna” (9).

Por fim, analisando o ideal urbanístico de Haussmann (10), das visões em perspectiva através de longas ruas, Benjamin as correlaciona à tendência oitocentista de enobrecimento das necessidades técnicas, transformando-as em objetivos artísticos, donde apreendemos outra manifestação da modernidade: o moderno é a redenção pela técnica, via processo estetizante.

O segundo ensaio, A Paris do segundo Império em Baudelaire, principia pela abordagem da popularização do folhetim, associando-a ao processo de mercantilismo da imprensa. Tal fenômeno tem estreito vínculo com a fruição da cidade oitocentista, especialmente dos seus bulevares e cafés. No horário e modo de funcionamento dos cafés é que Benjamin diz terem sido treinados os redatores para o ritmo do noticiário jornalístico, antes até que a aparelhagem desse estivesse avançada. Igualmente, demonstra como os autores de folhetins – os literatos – têm sua assimilação à sociedade de seu tempo consumada no bulevar. O filósofo reporta o costume dos literatos de passarem seu horário de lazer nos bulevares como se fosse essa folga uma parte de seu tempo de trabalho. Para explicitar a avaliação desse comportamento do literato por Benjamin, vale citá-lo diretamente.

“Comportava-se como se tivesse aprendido de Marx que o valor de toda mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Assim, o valor de sua própria força de trabalho passa a ter algo de quase fantástico, em vista do ampliado não-fazer-nada que, aos olhos do público, é necessário para o seu funcionamento. Em uma tal avaliação, o público não estava sozinho. A elevada remuneração do folhetim daquela época mostra que ela estava fundada em circunstâncias sociais. Havia, de fato, uma correlação entre a queda no preço das assinaturas, o incremento do sistema de anúncios e a crescente importância dos folhetins” (11).

Desponta aí mais uma idéia benjaminiana de modernidade: o mercantilismo do literato e de seu espaço de publicação. O que assim se opera é a reificação do literato em mercadoria. Como afirma Benjamin, Baudelaire bem percebeu o que se passava com o literato: “como flâneur ele se dirige para o mercado, achando que é para dar uma olhada nele, mas, na verdade, já para encontrar um comprador” (12). O filósofo remarca, inclusive, que sem as passagens a flânerie dificilmente teria atingido a sua importância.

Assim inserido no mercado, o literato passa a produzir uma literatura que reproduz o que no mercado se vê: uma “literatura panorâmica”, no dizer de Benjamin. Os livros sobre a capital passam a ser os fenômenos de venda naquele momento em que estavam em voga os panoramas. Dentre as formas impressas desse gênero literário, sobressaem as chamadas fisiologias, que têm seu auge nos inícios de 1840, sendo, assim como os folhetins, obra dos autores flâneurs. Em formato de cadernos do tamanho de um bolso, as fisiologias desenhavam desde os tipos populares encontrados nos mercados aos personagens elegantes do foyer da ópera. Segundo demonstração de Benjamin, a fisiologia era uma manifestação de bonomia para com a sociedade de época, chegando até, em alguns momentos, a ser panfletária do trabalho nas fábricas.

Além de autor, o flâneur é um arguto observador urbano. Assim é que ele desponta nos poemas de Baudelaire. Na posição de observador, o flâneur assemelha-se a um detetive urbano, o que lhe convém, legitimando a sua “vagabundagem” (13). Desse modo, mais uma vez surge a modernidade, dessa feita, o moderno é ser incógnito na cidade. Nas palavras de Benjamin: “O conteúdo social e originário da história de detetive é o apagar as pegadas do indivíduo na multidão da cidade grande” (14).

Descrevendo a Paris em que flanava o próprio Baudelaire, Benjamin relembra que nessa cidade ainda se transpunha o rio em barcas, em lugares onde posteriormente seriam erguidas pontes. Recorda, também, que no ano da morte do poeta (1867) um empresário ainda poderia ter a idéia de pôr em circulação quinhentas liteiras. Nessa Paris, persistia a afeição pelas passagens, onde o flâneur se evadia do olhar dos veículos. O filósofo, afinal, elucida o exercício da flânerie, expondo a peculiaridade do caminhar do flâneur e as contingências de seu desaparecimento.

“Ocioso, caminhava como se fosse uma personalidade: assim era o seu protesto contra a divisão do trabalho, que transforma as pessoas em especialistas. Assim ele também protestava contra a operosidade e eficiência. Por volta de 1840 fazia parte do bom-tom, por algum tempo, levar tartarugas a passear pelas passagens. O flâneur gostava de deixar que o seu ritmo fosse ditado por elas. Se dependesse dele, o progresso teria de aprender esse pas. Mas não foi ele quem nisso teve a última palavra: foi Taylor, que transformou em palavra-de-ordem o abaixo a flânerie” (15).

Ademais, Benjamin insiste na comparabilidade do flâneur à mercadoria pelo fato de ambos serem abandonados na multidão. Destaca, entretanto, que disso não se dá conta o flâneur, narcotizado que está pela mercadoria. Em suas palavras: “A ebriedade a que o flâneur se entrega é a da mercadoria rodeada e levada pela torrente dos fregueses.” Após recorrência a Marx, citando sua formulação da “alma das mercadorias”, o filósofo aventa que, se existisse tal alma, ela “deveria ver em cada um o comprador em cuja mão e em cuja casa ela gostaria de se aninhar” (16). Por meio dessa comparação, precisa a semelhança dos sentimentos do flâneur e da mercadoria: “A empatia é, contudo, a natureza dessa ebriedade a que o flâneur se entrega na multidão” (17).

Todavia, dirá Benjamin que, para Baudelaire, a multidão ensejava o contato com seu próprio fracasso pessoal. Por fim, o filósofo localiza a grande diferença entre o poeta e seu coetâneo, Victor Hugo (1802–1885): Hugo festeja a massa como herói moderno, nela se inserindo como cidadão; Baudelaire, ao contrário, na massa se refugia e, como herói, dela se evade. É segundo a imagem de herói que Baudelaire modela sua imagem de artista. Na concepção benjaminiana: “A flânerie faz da necessidade uma virtude, e nisso mostra a estrutura que é característica, em todos os aspectos, para a concepção de herói em Baudelaire” (18). É o herói moderno que aqui se apresenta. Segundo Benjamin, sobre o pano de fundo da multidão trabalhadora das fábricas, esse herói se destaca num quadro ao qual Baudelaire apôs a legenda: a modernidade. Como explica o filósofo:

“O herói é o verdadeiro sujeito da modernité. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma postura heróica. Esta era também a opinião de Balzac. Com isso Balzac e Baudelaire se contrapõem ao romantismo. Sublinham as paixões e a capacidade de decidir; o romantismo sublinha a renúncia e a dedicação” (19).

Esse heroísmo, Benjamin o associa à desproporção entre os homens e os obstáculos que a modernidade contrapõe ao elã produtivo natural dos humanos. Advém daí a compreensão do filósofo para o fato de que o trabalhador se refugie na morte. Para Benjamin, a modernidade parece existir sob o signo do suicídio. Quanto ao heroísmo de Baudelaire, na concepção benjaminiana, ele se aproxima do ideal clássico do herói. No dizer do filósofo, para o poeta, “na época em que ele vivia, nada se aproxima tanto da ‘tarefa’ do herói clássico, dos ‘trabalhos’ de um Hércules, quanto a tarefa que ele mesmo se impusera como sendo a sua tarefa peculiar: configurar a modernidade” (20).

Sobre essa alusão à antigüidade clássica, Benjamin assevera: “Em todas as relações em que a modernidade entre, a relação com a antigüidade é privilegiada” (21). No caso de Baudelaire, o exercício de interpenetrar manifesta-se em sua poética, e o exemplar dessa interpenetração pinçado por Benjamin na obra baudelairiana é o poema O cisne.

Cumpre-nos relembrar que nesse poema, cujos versos tão bem ilustram a rapidez da mutabilidade citadina, o poeta encontra na figura do cisne em busca de um lago perdido a alegoria para suas próprias perdas na cidade mutante. Em sua dicção poética dessa perda, Baudelaire evoca personagens da antigüidade grega marcados pelo mesmo sentimento. Contudo, essas são considerações nossas; Benjamin, por seu turno, o que remarca nessa recorrência à antigüidade é a noção de transitoriedade. A seu ver, é a transitoriedade o ponto de aproximação da antigüidade com a modernidade. Assevera ele que em todas as suas aparições em As flores do Mal Paris exibe a marca da transitoriedade: o lamento pelo que se perdeu e a desesperança quanto ao porvir. Na visão do filósofo, a gênese da perenidade dos poemas de Baudelaire sobre Paris reside no conceito de caducidade da grande metrópole.

Nessa recorrência de Baudelaire à Antigüidade, depreendemos que a modernidade instaura uma busca do original, uma arqueologia do passado, jamais uma volta a ele. Isso talvez possa estar relacionado à nova visão de tempo presente que a modernidade inaugura. Mais que uma novidade capaz de fazer rir ou chorar aos seus coetâneos, ela se afigura como uma divindade a predizer quanto viverão e quando morrerão os seus contemporâneos, ou ainda, o quanto hão de perdurar, ou o quanto sobreviverão os seus feitos, o que nos encaminha ao trato da memória.

Memória

Keep your memories,
They are all that’s left to you
Simon and Garfunkel, Old Friends

Conforme foi apontado por Jeanne Marie Gagnebin, o esquecimento é o tema-chave da leitura benjaminiana. Destarte, exemplifica que, se para Benjamin Proust “personifica a força salvadora da memória” em sua tentativa de uma rememoração integral, Kafka, ao contrário, aloja-se “na ausência de memória e na deficiência de sentido” (22) de onde a autora afirma advir, para Benjamin, a extraordinária modernidade kafkiana. Finalizando sua reflexão, cita o próprio Benjamin, que definiu Kafka como o maior narrador moderno.

Se para analisar o tema da modernidade Benjamin recorre a Baudelaire, para o trato da memória debruça-se sobre a obra de Marcel Proust, autor nascido em Paris em 1871, um ano após o final da implantação do plano de Haussmann. Proust viveu apenas 51 anos, tendo conhecido a virada do século XIX para o XX, e falecido na capital francesa em 1922. Assim, vivendo em plena vigência da modernidade, esse escritor dedicou-se a uma alentada obra memorialística, cujo título desvela seu próprio elã: Em busca do tempo perdido (23). Benjamin a esquadrinha no ensaio A Imagem de Proust (24). Principia sua análise situando as contingências do aparecimento do supracitado livro do escritor parisiense:

“As condições que serviram de fundamento a essa obra são extremamente malsãs. Uma doença insólita, uma riqueza incomum, e uma disposição anormal. Nem tudo nessa vida é modelar, mas tudo é exemplar”(25) [grifo nosso].

Sublinhamos essa última consideração, porquanto sua sensibilidade humanística transcende o próprio livro a que se refere. Na verdade, essa afirmativa, muito mais que se referir à asma nervosa do autor e às demais circunstâncias do surgimento da obra proustiana, projeta uma reflexão sobre o conteúdo que se deseja para o próprio conceito de memória. O que irá compor esse conteúdo precisará ser modelar? Mesmo não modelar, mais necessário seja, talvez, ser exemplar – poder significar uma época e, uma vez perenizado, via literatura, arquitetura ou outra criação, acolher novos significados em outro tempo.

Semelhante reflexão, encontramo-la recentemente externada em artigo que relata a reunião organizada pela Sociedade Internacional sobre a Propriedade Cultural, sediada em Nova Iorque, em outubro de 2005. Esse encontro visava debater questões atinentes à Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade de expressões culturais, aprovada pela Unesco no dia 20 de outubro de 2005. Segundo o artigo do representante latino-americano ali presente, professor Pedro Paulo Funari, seu tema geral era: “Qual patrimônio preservar?”, que muito se assemelha à questão que acima referimos. Pois bem, a propósito dela, reflete o professor:

“Como decidir sobre o que preservar? Talvez a resposta esteja na sabedoria de um rabino que, no bar-mitsvá, a cerimônia de passagem à vida adulta entre os judeus, disse a Lawrence Rosen: o que você quer manter de sua infância na vida adulta? Escolha agora. Rosen, hoje grande jurista e antropólogo, contou-nos esta história para mostrar que devemos escolher aquilo que queremos preservar, mas cabe a nós escolhermos, como indivíduos, mas também como membros de diversas coletividades. Não será o rabino (ou qualquer autoridade), a dizer o que deve ser preservado. Esta a grande mensagem da Convenção da Unesco” (26).

Ressaltamos o quanto a narrativa acima reforça a pertinência, para a atualidade, daquela reflexão quanto ao conteúdo da memória, ensejada pelo pensamento formulado, pioneiramente, por Benjamin no início do século passado.

Voltando ao ensaio sobre Proust, Benjamin lembra que esse escritor ouviu de passagem as “mais extraordinárias confidências” do já quase terminal século XIX, por ser um freqüentador dos salões. A seu ver, foi dessa forma que Proust fez dos oitocentos um século para memorialistas. Ora, insistimos, certamente nem tudo o que se ouvia nesse ambiente mundano seria modelar. Não obstante, ao trazer a lume tais acontecimentos, Proust os fez exemplares, na medida em que ilustrativos e instrutivos. Destarte, ao registrar os guardados de sua memória pessoal via literatura, transformou-a numa memória de época.

Assim como fizera em relação a Baudelaire, Benjamin identifica em Proust um caráter detetivesco, precisamente em sua curiosidade pela sociedade da qual foi coetâneo. Essa, na visão benjaminiana, surge na obra de Proust como a mais incomparável das quadrilhas: a camorra dos consumidores, que exclui os produtores. No dizer do filósofo, “o consumidor puro é o explorador puro. Ele o é lógica e teoricamente, e assim ele aparece em Proust [...] em toda a verdade de sua existência histórica contemporânea” (27). A nosso ver, a qualificação dada aos consumidores identifica, igualmente, a mercadoria como tônica da época e o consumo como sua palavra de ordem. Proust transcreve criticamente o auge da mercadoria na modernidade, assim tecendo uma memória dela. Para nós, também Baudelaire, ao inscrever em sua poesia a insurgente modernidade, urde uma memória dela – mesmo sem o intencionar.

Benjamin sublinha que “o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. [Então se pergunta:] Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?” Adiante, esboça uma tocante conclusão:

“Cada dia, com suas ações intencionais e, mais ainda, com suas reminiscências intencionais, desfaz os fios, os ornamentos, do olvido. Por isso, no final, Proust transformou seus dias em noites para dedicar todas as suas horas ao trabalho, sem ser perturbado, no quarto escuro, sob uma luz artificial, no afã de não deixar escapar nenhum dos arabescos entrelaçados” (28).

Lembramos que Penélope desmanchava de noite o tecido que confeccionava de dia, logo, Proust atuava ao contrário da personagem mitológica. Mesmo no âmago do texto dessa obra, Benjamin encontra o exercício do que nomeia lei do esquecimento e, a propósito dessa constatação, oferece uma diferença entre acontecimento vivido e lembrado:

“Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo de textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas no actus purus da própria recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação” (29) [grifo nosso].

Tais palavras nos devolvem à modernidade que Benjamin atribuía à obra de Franz Kafka, por sua “ausência de memória e deficiência de sentido”, como citamos no parágrafo que abre esse tema em nosso artigo. Ora, consoante a formulação acima referida, se Kafka não produz memória, é por ficar apenas no vivido, no que é finito, assim remetendo à noção de transitoriedade, um dos signos da modernidade em Benjamin. Sem embargo, igualmente na transitoriedade o tema da memória persiste, ainda que pela negação, vinculado ao da modernidade.

Ademais, destacamos na citação acima a assertiva que certifica ser a reminiscência o que de fato prediz o modo como será escrito o texto. Assim sendo, ela nos remete às noções de tempo e de eternidade no tecido da escrita. Sobre tais idéias na obra memorialística de Proust, argumentou Benjamin como segue.

“A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente). Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar no coração do mundo proustiano, o universo dos entrecruzamentos. É o mundo em estado de semelhança, e nela reinam as ‘correspondências’, captadas inicialmente pelos românticos, e do modo mais íntimo por Baudelaire, mas que Proust foi o único a incorporar em sua existência vivida. É a obra da mémoire involontaire, da força rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelhecimento” (30).

Com essa formulação, julgamos poder encerrar, para efeitos deste artigo, o trato da ótica benjaminiana acerca do tema da memória. Isso porque ela atinge dois importantíssimos conceitos para a compreensão dessa temática em Benjamin: semelhança e correspondência. Tais noções podem ser igualmente depreendidas do ensaio O Narrador (31), em que Benjamin se dedica à obra de Nikolai Leskov, e também das próprias memórias de infância do filósofo, narradas de modo surreal no texto Infância em Berlim por volta de 1900 (32).

Extrapolam o âmbito deste artigo esses relevantes conceitos que, por sua complexidade, constituem suficiente material para um mais longo e profundo trabalho. Não obstante, queremos apenas registrar que eles se manifestam mediante a concepção do entrecruzamento de tempos. Assim, a manifestação de outros tempos, via semelhança, por meio, por exemplo, da arquitetura, do traçado urbano, de vocábulos num texto literário, ou de frases melódicas numa música, opera a correspondência de tempos presentes e passados num mesmo instante presente. As correspondências constituem uma teoria, e nós as definiremos segundo sua acepção literária:

“Praticamente desde sempre se entendeu que as artes se assemelham na medida que resultam do mesmo processo criador, a mimese, e que, portanto, certas percepções de uma arte podem transferir-se para outra, mas apenas com o Romantismo se tomou plena consciência dessa aproximação. Conquanto a idéia vagasse no ar, Baudelaire foi o primeiro que lhe emprestou forma definida e lapidar, imediatamente adotada como fundamento estético pelos adeptos do Simbolismo. [...] Erigindo as sensações em símbolos, descobria entre elas íntimas e insuspeitadas analogias, que pressupunham “une ténébreuse et profonde unité” (33) [uma tenebrosa e profunda unidade]. Tais afinidades, facultando o livre intercâmbio das sensações, constituem a chamada sinestesia” (34).

Trazendo a acepção literária para o nosso cotidiano, podemos ilustrar as correspondências, tomando, por exemplo, o sítio histórico da cidade de Olinda como um lócus favorável ao seu sucesso. No tempo presente, em suas ladeiras de pedra permanecem erigidas igrejas de cal dos remotos tempos seiscentistas. Assim, ao percorrê-las, as ladeiras nos fazem divisar, naquelas construções, tempos passados que estão em outros espaços, e que, todavia, nos vêm na forma de correspondências com os tempos atuais. Dá-se, por essas correspondências, a sinestesia por meio de datas, tal como foi exemplificado por André Lalande: “as datas históricas ao aparecer como se ocupassem, cada uma, um lugar fixo no espaço” (35).

Feitas as conceituações tais como foram detectadas nos textos de Benjamin, passamos às considerações sobre a convergência das temáticas modernidade e memória, traçando algumas correlações com a atualidade cibercultural.

O liame entre modernidade e memória: correlações com a atualidade cibercultural

Vimos que a inscrição da culminância da visibilidade da mercadoria e de seu correlativo imediato, o consumo, aparece tanto nos textos benjaminianos referentes à modernidade, com Baudelaire, quanto nos alusivos à memória, com Proust. Essa dupla recorrência, por si só, já nos sugere um elo entre aquelas temáticas: o risco da efemeridade. Naquele momento, tudo se mostrava novo nas cidades, tudo se transformava velozmente e se reificava em mercadoria. Destarte, corria-se o risco de que tudo se tornasse obsoleto, ou, por outro lado, que, uma vez consumido, se fizesse fugaz pela instantânea saciedade. Em semelhante contexto, mais necessário se fazia encetar a urdidura de uma memória, para que aquele ambiente urbano e sua vivência não se desvanecessem num futuro próximo.

Na rápida mutabilidade urbana ali representada, ensejava-se que os acontecimentos cotidianos fossem, para sua melhor compreensão, mediatizados pela nascente imprensa que, registrando-os, permitia repetidas leituras. A cidade passa a ser representada cotidianamente e, assim, seus acontecimentos passam a ser compreendidos por meio dessas representações escritas. Hoje, além daquelas representações na imprensa, há os folhetins televisivos e, além desses, os hipertextos, os sites e os blogs, ou seja, a velocidade de registro foi potencializada. Ao mesmo tempo, e pelos mesmos meios, amplificou-se o espaço de visibilidade da mercadoria e, assim, do consumo. Nas telas dos computadores, os sites constituem a edição revista e atualizada dos panoramas, vitrines, galerias. Cidades neles se representam, vendem suas imagens turisticamente, ou reificam-se como conhecimento. Outras há que nos sites tornam acessíveis determinados serviços públicos, sendo esse o conceito das cidades digitais que, por extrapolar a alçada deste artigo, apenas registramos aqui (36).

Ademais, destacamos que Benjamin analisa a narrativa de Proust sob a ótica do entrecruzamento de tempos, o que nos levou a abordar as semelhanças e correspondências. Aquela concepção temporal e esses seus fenômenos permanecem na época hodierna. Mas são atualizados pela idéia de simultaneidade, pois a Internet, ao propiciar a comunicação online, faculta a sincronia das narrativas temporais mais diversas e provenientes dos lugares mais distantes, aproximando os errantes navegantes.

Por refletirem idéias de modernidade, consumo, visibilidade, tempo e memória, todas as considerações precedentes ensejam um diálogo com o filósofo Andreas Huyssen. Esse neofrankfurtiano considera que a atualidade no Ocidente padece de “um incoercível fascínio pela memória e pelo passado”, o que, a seu ver, acompanha a disseminação da amnésia na cultura ocidental. Mais ainda, seguindo a vereda aberta por Walter Benjamin, Huyssen acredita que a identidade ocidental é permanentemente dardejada pelos temas de “rememoração e esquecimento”.

Huyssen relembra a crescente freqüência com que os críticos acusam a cultura contemporânea da memória de amnésia, apatia, embotamento. Além disso, o filósofo assinala um paradoxo no bojo dessa focalização sobre a memória e o passado: as críticas são endereçadas sobejamente à mídia, porém, na visão de Huyssen, a despeito de ser a própria mídia que crescentemente vem disponibilizando a memória – desde a imprensa, passando pela televisão, até os arquivos digitais e a Web. Esse raciocínio leva o filósofo a questionar se tal acréscimo de memória é inevitavelmente acompanhado de um explosivo esquecimento. Mais ainda, o conduz às especulações que seguem.

“E se as relações entre memória e esquecimento estiverem realmente sendo transformadas, sob pressões nas quais as novas tecnologias da informação, as políticas midiáticas e o consumismo desenfreado estiverem começando a cobrar o seu preço? Afinal, e para começar, muitas das memórias comercializadas em massa que consumimos são “memórias imaginadas” e, portanto, muito mais facilmente esquecíveis do que as memórias vividas” (37).

Entrevemos na relação memória-comércio, acima aventada, mais um ponto de dialogia com o que outrora fora detectado por Benjamin quanto ao espaço de (auto) comercialização do literato. Isso porque, nos folhetins e nas fisiologias, literaturas denominadas panorâmicas por Benjamin, o literato moderno reproduzia o que enxergava no mercado. Ao assim escrever, tanto entretecia uma memória do que estava vendo quanto contribuía para que os seus textos, uma vez lidos, fossem modelos de imitação para aquele mercado.

A nosso ver, o fenômeno do mercantilismo do literato, moderno nos oitocentos, tem sua versão atual potencializada pelos vastos espaços de publicação na Web. Neste meio, ter um equipamento com a configuração necessária para criar um site e dominar os códigos para tanto é já o bastante para uma pessoa ter seu próprio espaço de divulgação e de suas memórias. Assim, nos sites pessoais e nos blogs, os seus detentores projetam-se em visibilidade – tal como, outrora, os impressos folhetinescos visibilizavam a figura do literato. Em ambos os casos, os próprios sujeitos são passíveis de constituir, também, corpos publicitários, e o que mais de perto nos interessa: fazer das suas memórias, ambientadas em espaços urbanos, uma memória pública, por sua acessibilidade.

Por outro lado, o criador do site pode desejar permanecer totalmente incógnito. Dessa feita, assemelhar-se-á ao flanêur moderno, que em trânsito constante observava e, por vezes, registrava a cidade. Esse flâneur cibernético poderá inserir, textual e imageticamente, em seu site, todas as suas deambulações urbanas, por sua própria cidade e pelas demais, sem jamais se identificar. Desse modo, constituirá o que – à falta de melhor terminologia – chamaremos de uma memória virtual do oculto. Um oculto que revela uma memória daquelas cidades nos vítreos écrans da Web, onde poderemos incessantemente acessá-la e, no caso de um hipertexto, até sobrepor-lhe nossas próprias memórias urbanas.

Caminhar à deriva por uma cidade e navegar pelas cidades virtuais dos sites, na Web, são hoje hábitos cada vez mais assemelhados. Como recorda Lemos (2004), referindo-se às possibilidades de navegação abertas pelo hipertexto:

“De toda forma, mesmo sem deslocamento corporal, trata-se de um deslocamento subjetivo como forma de apropriação social de informática em geral e do ciberespaço em particular [...] trata-se menos de um fenômeno técnico que de uma prática social que vem ganhando o planeta” (38) [tradução nossa].

A analogia acima referida é reforçada pela própria nomenclatura: site, sítio, identifica sua localização no universo cibernético, tal como identificamos o ambiente de implantação de nossas cidades. Novíssimos locais de memória, esses sítios cibernéticos visibilizam, inclusive, os sítios históricos de cidades das mais diversas partes do mundo.

Diante desse quadro de assimilação entre as práticas do flâneur cibernético e daquele dervixe urbano oitocentista, assoma a efemeridade. Se nos oitocentos ela já constituía um problema discutível em dialogia com a memória, pronuncia-se ainda mais nas novas temporalidades da atualidade cibercultural. Nosso tempo comunica-se com muito mais velocidade, já o dissemos, e não nos cabe destrinçar aqui os recursos tecnológicos que o possibilitam. Nesse processo, corremos, sim, o risco da efemeridade, se nos ativermos apenas ao aspecto da celeridade de sobreposição das informações. Esse é precisamente, a nosso ver, o aspecto que assoma nas falas de Huyssen, acima debatidas.

Por outro lado, como uma unidade de medida da informática é justamente a memória, ela acolhe também várias possibilidades tecnológicas de revocação do passado. Conquanto fujam ao nosso escopo as questões tecnológicas, vamos ilustrar o que precede com um único e significativo exemplo: o das possibilidades abertas pelo ciberespaço para a memória e proteção dos sítios históricos. Eis o que apresenta Zancheti (2003) a propósito da herança virtual, uma representação cibernética do patrimônio construído.

“Por exemplo, sítios frágeis podem ser protegidos dos danos causados por visitantes, através do uso de simuladores virtuais que reproduzem as condições ambientais e percepções espaciais dos sítios” (39) [tradução nossa].

Ademais, a atualidade cibercultural contempla esferas espaciais de dimensões necessariamente muito mais amplas que aquelas focalizadas por Benjamin. Cumpre-nos lembrar que nos textos benjaminianos por nós analisados, no mundo oitocentista sobre o qual se debruçou o filósofo repercutia uma balbuciante indústria da comunicação. Igualmente, que sua abordagem se limitava geograficamente ao contexto europeu e, de modo mais detido, à França. Nós a correlacionamos, aqui, à atualidade, em que veloz e intensamente se integram, via Internet, as culturas dos países mais diversos entre si. Trata-se, portanto, de dimensões temporais e espaciais que se distinguem em termos de integração.

Nesse sentido, podemos diferenciá-los evocando os versos da música Parabolicamará, de Gilberto Gil: “Antes mundo era pequeno/ Porque Terra era grande/ Hoje mundo é muito grande/ Porque Terra é pequena.” Versos simples, porém precisos no definir a especificidade da cibercultura: ela transcende as estremaduras, encolhe as distâncias físicas, torna mundo os mais recônditos rincões e aproxima os antípodas. Assim, dizer cibercultura é já falar numa cultura globalizada, em que as memórias dos mais diversos povos, que desejamos preservadas pelo bem da diversidade cultural, se firmam como problema mundial. Isso nos endereça a novas entradas no estudo de Huyssen, por sua detecção da prevalência da memória como uma das preocupações centrais das sociedades do Ocidente.

Concluindo pelo desafio: memória das cidades e diversidade cultural

Huyssen considera que a partir da década de 80 do século passado se deu o deslocamento da mentalidade de “futuros presentes”, vigente na modernidade, para a de “passados presentes”. Ressalva, contudo, que o pensamento “futuro presente” ainda se expressa com ardor no que chama de “imaginário neoliberal da globalização financeira e eletrônica”. Trata-se, em suas palavras, de “uma versão do antigo e praticamente desacreditado paradigma da modernização, atualizado para o mundo pós-guerra fria” (40).

A seu ver, o foco principal na reavaliação da modernidade ocidental é a memória do holocausto, conquanto distinga também tramas secundárias. Justamente sobre essas recai nosso interesse, porquanto grande parte delas dardeja as cidades. Eis algumas: a restauração de velhos centros urbanos; das – assim chamadas por Huyssen – cidades museus e de paisagens inteiras; empreendimentos patrimoniais e heranças nacionais; e, por fim, a voga da nova arquitetura de museus. A tudo isto Huyssen conjumina sob uma mesma época de emergência, a década de 70 do século passado. Acrescenta a esse conjunto outros fenômenos, que nomeia como segue: as modas “retro”, os utensílios “reprô”, a “automusealização” pelas câmeras de vídeo, as diversas práticas memorialísticas das artes visuais. Por tudo isso, conclui ser indubitável a “musealização” do mundo, num processo em que todos nós assumimos papéis, e cujo objetivo lhe parece ser o alcance de uma recordação total.

Defende Huyssen que, desde o ano de 1989, as questões relativas ao duo memória e esquecimento têm surgido como preocupações dominantes nos mais diversos contextos geográficos e políticos. Dentre os citados, destacamos, por sua maior proximidade com o caso brasileiro, o exemplo dos países latino-americanos e seu debate cultural e político acerca dos presos políticos desaparecidos e seus filhos. A propósito do conjunto de exemplos por ele citados, Huyssen sumariza que, conquanto pareça um fenômeno global, os vários discursos de memória permanecem, em seu núcleo, ligados às suas específicas histórias nacionais. O lugar político dessas práticas é, portanto, nacional.

Malgrado as suas diferenciações e as especificidades locais que as causam, elas sugerem ao filósofo que a globalização e a reavaliação do respectivo passado (seja nacional, regional ou local) deverão ser pensadas juntas. Precisamente esse pensamento o faz questionar se tais cultos à memória poderiam ser vistos como formações reativas à globalização da economia, o que nos devolve ao assunto com que abrimos este texto – a diversidade cultural.

Um dos signos da modernidade que assinalamos na análise benjaminiana do universo oitocentista afigura-se no fato de o mundo ser feito mais próximo e mais espetacular na cidade. Contudo, tratava-se ainda da aproximação de um mundo predominantemente ocidental. Portanto, aquele signo, embora ainda atual, contemporaneamente se multiplica. Isso porque, na cibercultura, além de muito mais próximo de nós, o mundo em si mesmo deixa de ser um, pois se difrata em um universo de mundos outros, e dos outros – eis a diversidade cultural. Com esse problema, abrimos nosso artigo e a ele retornamos, por constituir questão fundamental no hodierno debate da memória, evadindo deliberações inclusive filosóficas – como as abaixo relatadas por Funari.

“Retornando ao encontro de Nova Iorque, cabe lembrar que no mundo contemporâneo – caracterizado pela indústria cultural, pela globalização e pela internet – as culturas mostram-se em mutação rápida, com a reelaboração constante do seu patrimônio. [...] O meio digital, nos últimos anos, gerou a criação de um imenso universo cultural extremamente fugaz, que em poucos anos desaparece por tornar-se tecnicamente obsoleto. Tudo isto é patrimônio cultural, é diversidade de criação da humanidade que se perde a todo instante. Um tema de fundo de toda esta discussão, também presente na reunião de Nova Iorque, refere-se ao valor, se valor haveria, de se preservar a diversidade. A diversidade per se é um valor a ser preservado?” (41).

São questões que aguilhoam a memória urbana na atualidade cibercultural. A nosso ver, reverberam as dúvidas de um urbano multívoco, de multívia visibilidade, circulante no meio essencialmente multívago da Web. Enfim, remetem-nos a um desafio maior: como distinguir (para legitimar e preservar), na multiplicidade, o que de fato é diversidade?

notas

1
Este artigo parte das reflexões realizadas pelas autoras durante o processo de elaboração da tese de doutorado intitulada Sete Cidades: um estudo das representações sociais das cidades brasileiras patrimônio mundial na Web, que vem sendo desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco MDU/UFPE).

2
FUNARI, Pedro Paulo A. “A diversidade e o patrimônio em discussão”. Drops, n. 13.05. São Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2005. <www.vitruvius.com.br/drops/drops13_05.asp>.

3
KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin, sociologia. São Paulo, Ática, 1991.

4
Idem, ibidem, p. 32.

5
Idem, ibidem, p. 34.

6
Idem, ibidem, p. 40.

7
Idem, ibidem, p. 40.

8
Idem, ibidem, p. 43.

9
SONTAG, Susan. O amante do vulcão. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 162.

10
Paris transforma-se sob o plano urbanístico de Haussmann, entre 1851 e 1870. Baudelaire vive de 1821 a 1867; portanto, no ano em que se iniciam propriamente as obras do plano, 1859, o poeta tinha 38 anos.

11
KOTHE, Flávio R. Op. Cit., p. 64.

12
Idem, ibidem, p. 64.

13
Idem, ibidem, p. 70.

14
Idem, ibidem, p. 72.

15
Idem, ibidem, p. 80.

16
Idem, ibidem, p. 82.

17
Idem, ibidem, loc. cit.

18
Idem, ibidem, p. 95.

19
Idem, ibidem, p. 98.

20
Idem, ibidem, p. 105.

21
Idem, ibidem, loc. cit.

22
In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 16.

23
A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust Paris, 1871 – id. 1922), obra em forma de ciclo, foi publicada de 1913 a 1927.

24
BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 16, nota 20.

25
Idem, ibidem, p. 36.

26
FUNARI, Pedro Paulo A. Op. cit.

27
Benjamin, op.cit., p. 44, nota 20.

28
Idem, ibidem, p. 37.

29
Idem, ibidem, loc. cit.

30
Idem, ibidem, p. 45.

31
Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.

32
Idem, ibidem, nota 30.

33
Em francês no original, tradução nossa.

34
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 11 ed. São Paulo, Cultrix, 2002, p. 104-105.

35
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 1027.

36
A respeito de cidades digitais, cf. ZANCHETTI, Silvio. Cidades digitais e o desenvolvimento local. Trabalho apresentado na Conferência Nacional ‘Ciência, Tecnologia e Inovação’, organizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia MCT) e a Academia Brasileira de Ciências ABC). Brasília, 18-21 set. 2001.

37
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p. 18.

38
LEMOS, André. Cyber-flânerie. Salvador, UFBA, 2004. Disponível em: <www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_and2.htm>. Acesso em 2 jun. 2004.

39
ZANCHETI, Silvio. Values, built heritage and cyberspace. Recife, Conservação Urbana, 2003. Disponível em: <www.urbanconservation.org/textos/franca.htm>. Acesso em 20 jan. 2006.

40
HUYSSEN, Andreas. Op. cit., p. 38, nota 2.

41
FUNARI, Pedro Paulo A. “A diversidade e o patrimônio em discussão” (op. cit.).

42
A expedição, de mesmo nome do blog, percorreu a Cordilheira do Espinhaço (Reserva da Biosfera pela Unesco), entre as cidades de Ouro Preto e Diamantina, ambas tombadas como como Patrimônio Mundial pela Unesco.

Outros links

Porto
http://www.portoturismo.pt/a_cidade/

Old Rauma, Finlândia
http://www.oldrauma.fi/english/index.html

Ouro Preto
http://www.ouropreto.org.br/

Cuzco
http://travel.peru.com/travel/idocs/2002/9/26/DetalleDocumento_48274.asp

Quito
http://www.quito.gov.ec/

Praga
http://leonardfrank.com/WorldHeritage/Prague.html

Butão
http://72.18.135.200/dotbhutan/

Acre, Israel
http://www.akko.org.il/english/main/default.asp

sobre o autor

Eliane Lordello. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco.

Norma Lacerda. Professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco e do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada – CECI.

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