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my city ISSN 1982-9922

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VIEIRA, Mariana Dias. Achados tempos perdidos. Feira da Prata em Campina Grande, Paraíba. Minha Cidade, São Paulo, ano 05, n. 049.03, Vitruvius, ago. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.049/2001>.



Breve história de uma visita

Um momento em que descemos do carro e, ainda desorientados, nos posicionamos na abertura da calçada que indica um acesso ao grande vão livre de uma quadra. Sobre o saibro, ali está uma multidão de homens, mulheres, crianças e bananas – muitas bananas! A comoção desse instante, preenchida de muita cor e bravura, repetiu-se durante toda a feira e assumiu o papel revelador do filme que estávamos assistindo. Ao mesmo tempo em que percebíamos cada detalhe, a singularidade de cada barraco, de cada feirante, todos aqueles elementos da cena fundiam-se no mesmo e, a cada minuto passado, se fazia mais difícil separar o momento do gesto, o gesto do produto, o produto da feira.

A primeira imagem dessa cena multicolorida é sempre fantástica. No momento em que o olhar descortina o limite entre o urbano e o acontecimento, surge a cena. Nesse primeiro momento, aí estão reunidas as principais questões: a surpresa do olhar, o olhar em movimento e a imaginação do olhar. Para Merleau-Ponty (1) não existe visão sem movimento. Nem pensamento sem visão. Para ele, a descrição pura exclui tanto o procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação cientifica o que não nos convém. Sobre essas questões, e considerando sempre a irredutibilidade dos gestos e das cenas às palavras, ensaiaremos um relato mais imagético que descritivo, tentando dar a ver a realidade pela imaginação e possibilitando divagações livres sobre imagens reais. Para tanto, nos utilizaremos entre outros conceitos, do fenômeno da imagem poética de Gaston Bachelard (2), emergindo da consciência como um produto direto do coração; e da fenomenologia da percepção de Merleau Ponty (3), enfatizando nosso contato ingênuo com o mundo, nossa experiência, por ela mesma, sem deferências psicológicas, sociológicas ou históricas que possam fornecer explicações a despeito de sua causalidade.

Esse momento primeiro, descrito anteriormente, que marca de maneira muito especial o nosso primeiro contato com a feira, é pintura, é dança, é poesia e fotografia. É o que nos prepara, nos consola da paisagem cinzenta; é como um carinho, um colo, um alento – para, no momento seguinte, nos conduzir ao êxtase, a empolgação, ao desatino. Esse momento nos faz perceber a textura da paisagem que as palavras não podem descrever. Dessa limitação surge a poesia, da “compreensão da incapacidade das palavras darem conta da paisagem (...) é a escrita da descrição impossível” (4). Mesmo assim, continuamos esmerando nosso olhar e organizando melhor as palavras para que elas pudessem dar a ver (sentir) as emoções e os sentimentos. Sobre as feiras, festas populares e sobre o cotidiano fica o belo exemplo dos versos do Rei do Baião – Luiz Gonzaga (5) – O candeeiro se apagou / O sanfoneiro cochilou / A sanfona não parou / E o forró continuou; nas descrições de José Lins do Rego (6) – “Procurávamos a sombra dos cajueiros para os nossos colóquios. Havia folhas secas pelo chão, como um grande tapete cinzento, que rangiam nos pés. E o cheiro gostoso da flor do caju chegava até longe”;ou ainda a delicadeza e a doçura da poesia de Manoel de Barros (7) – “Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos”.

O olhar ingênuo acompanha a multidão de movimentos e os arquiva para sempre – é o olhar do qual fala Nelson Brissac Peixoto (8), aquele que trava um embate com a paisagem de diversas camadas, no afã de decodificá-la. Numa seqüência desenfreada, o olhar consegue passear por cada rosto, por cada objeto e segue colhendo símbolos e sinais. Já dentro da feira, o tempo agora é outro, as imagens estão sobrepostas umas às outras como numa tela de Picasso. A alegria, a pobreza, a sujeira, a delicadeza, a força, os sorrisos, a tristeza, os animais, a pedra, o reboco, a tinta descascada, a balança, o papel de embrulhar... Aliás, que forma teria a Feira da Prata pintada por Picasso? Ele, o pintor que registrou o emaranhado de acontecimentos do cotidiano em pinceladas realistas (e não destorcidas, como acreditam alguns desavisados), certamente teria muitas imagens em uma só e, em uma visita pela feira, correria o risco de se apaixonar mais uma vez. E assim, além das Doras e Jacquelines, teríamos as nossas Marias, Severinas e Franciscas retratadas nas suas diversas formas. A nossa visita e o nosso olhar “caleidoscópico” nos fez buscar, assim como Picasso, “todos os lados das caras, as figuras que existem dentro das outras, as linhas invisíveis que as ligam e o ridículo da beleza como algo sublime a se chegar.”

Uma outra pergunta ainda se repetia: Ao som de qual música dançavam esses corpos que vêm de tão longe? Assistimos atentos ao balé que se formava e dissolvia-se na nossa frente. Estávamos a um pulo para a imaginação! E assim começamos a exercitá-la. Percebemos que em cada detalhe escondia-se um segredo que aos poucos se revelavam. Podíamos imaginar como seria a performance dos mestres do Cavalo-Marinho dançando horas sobre aquele saibro ao som de tambores nada silenciosos, o Pastoril com os cordões azuis e encarnados e seus pandeiros, o Xaxado de Maria Bonita e Lampião, dançado comumente por aquele povo. Naquele instante, “meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido.” As roupas que eles vestiam transformavam-se em fantasias, os chapéus de palha em couraças armadas, e os milhares de fitas de seda coloridas cobriam-lhes os olhos. Era o encanto do movimento, transformado pelo nosso olhar – objetos e pessoas que visto dessa forma não eram incompatíveis àquele mundo mas que não se misturavam àquela realidade. A minha percepção da realidade (quase casual, sem uma tomada de posição deliberada),naquele momento, era mais um espetáculo no teatro imaginário do qual fala Merleau-Ponty.

Pouco mais adiante, quase meio dia, os fulvos raios de sol alaranjavam toda paisagem com uma intimidade sem igual. Era hora de saborear os temperos no banco da feira que freqüentávamos na infância. Uma senhora com características físicas marcantes e de grandes proporções nos recebia com a alegria de sempre – conhecida por “Zefa” que é irmã de Fátima. Um rosto alegre e um semblante tranqüilo. Uma bata branca com dois bolsos fundos na frente, um avental, típico de quem se dedica às tarefas do fogão e das panelas; um par de óculos e apenas um ajudante – Everaldo. Durante anos, Zefa ocupava um banco no centro da feira. Vendia frutas e verduras; sementes; farinha; temperos e coisas do gênero. Hoje, mudou-se para um box mais adiante, apropriou-se de uma área maior, onde trabalha com carnes e peixes e improvisa seu restaurante assim que chega o cliente. Em alguns minutos, mesas e cadeiras de plástico estão bem dispostas, forradas com uma toalha de plástico estampada em duas cores –branco e vermelho, onde repousam pratos e copos de vidro e talheres comuns. O ambiente é colorido pelos fragmentos e autêntico como toda feira popular. O cenário característico está completo mesmo faltando um reboco; uma tinta; uma pedra; um tijolo.

O espaço espacializante, discutido por Ponty, nos permite descrever essas dimensões e as características físicas em que ocorreram nossas experiências e nos faz perceber, ao mesmo tempo em que constatamos como aconteceu, que essa definição é incompleta. Por isso nos deslizamos pelo conceito de espaço espacializado, pela capacidade única e indivisível de tratar o espaço. Se considerássemos a Feira da Prata apenas como um determinado espaço ou ambiente, onde os feirantes dispõem suas barracas, excluiríamos de imediato a reflexão pessoal e individual de cada visitante ou até mesmo de cada feirante. E se, ainda de acordo com Ponty, ao invés de imaginá-la como uma espécie de éter onde as coisas, as pessoas e os produtos comercializados mergulham, considerássemos essa mesma feira como o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível, conseguiríamos nos aproximar da compreensão da infinitude da sua recriação cotidiana e os diversos sentidos que estabelecem com cada interlocutor. Por isso, a intersubjetividade e a reflexão eidética aparecem aqui como instrumentos de compreensão dessa facticidade e não como fim em si mesmas.

Mesmo nos guiando por essa deliciosa forma de ver e sentir a feira e com o firme propósito de liberar o pensamento, alguns fatos saltam aos olhos e a memória imperecível nos invade. A lembrança dos dias de criança; das brincadeiras; das visitas intermináveis sempre à espera da mãe, do pai ou da avó que sempre tinha muito a fazer por lá. A compreensão tardia de seus encantos através de paixões antigas; a vontade de voltar; percorrer outros caminhos; fazer o sentido inverso; descobrir o sentido primeiro das coisas. Tudo isso faz dessa Feira o que ela verdadeiramente é.

A Feira da Prata situa-se em Campina Grande – Paraíba, no bairro da Prata. Resiste incansavelmente ao tempo. Suas cores não desbotam e seus aromas continuam misturados e intangíveis como eram nos nossos tempos de criança. A feira ocupa a mesma área que sempre ocupou pelo menos nos últimos 50 anos. Nada mudou substancialmente. Para enfatizar ainda mais nossa intenção aqui, dizemos que para compreensão dessa realidade, tentamos buscar aquilo que Roland Barthes (9) chamou de punctum enquanto analisava as fotografias; buscamos o que era fantástico e único; aquilo que nos prendia os sentidos; que encerrava qualquer pensamento; que interrompia qualquer narração.

Uma
imagem
da feira da prata
muitas
lembranças
da feira da prata
muitas
saudades
da banana prata
da feira da prata...

notas

1
PONTY, Maurice Merleau. Signos. São Paulo, Martins Fontes, 1960.

2
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1957.

3
PONTY, Maurice Merleau. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1945.

4
PEIXOTO. Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo, Senac / Marca D’água. 1998

5
Música e Letra: Luiz Gonzaga. Forró no Escuro.

6
RÊGO, José Lins do. Menino de Engenho. 1ª ed., 1932.

7
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo, Planeta do Brasil, 2003.

8
PEIXOTO. Nelson Brissac. Op. cit.

9
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

sobre o autor

Mariana Dias Vieira, arquiteta, mestre pelo PROURB/FAU/UFRJ e doutoranda pelo PROARQ/FAU/UFRJ. Atua profissionalmente na área da arquitetura e paisagismo, é sócia da V2 arquitetos associados e professora-substituta das disciplinas de paisagismo na Escola de Belas Artes – UFRJ.

 


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