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my city ISSN 1982-9922

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YAMADA, Ana Carolina Fackes. A alma da cidade. Personagens urbanos de Florianópolis. Minha Cidade, São Paulo, ano 05, n. 050.02, Vitruvius, set. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.050/1998>.



Ao caminhar pelo Centro Histórico de Florianópolis, em Santa Catarina, Brasil, o que mais surpreende é a forma como o espaço se encontra marcado, a diversidade de indivíduos, grupos e formas de apropriação. Neste cenário, que é para ser vivenciado, todos fazem papel de ator e espectador.

Na rua, uma das principais artérias da cidade, existe o mundo dos camelôs, vendedores ambulantes, solitários anônimos, ilustres desconhecidos, turistas, colegiais, pessoas em trânsito, estátuas, obras de arte, monumentos... Há inúmeras variedades de figuras, com vestuário, jeito, andar, rosto e expressões fisionômicas diferenciadas.

Uma multidão caminha com os olhos fixos no chão, nos ponteiros dos relógios ou nas vitrines das lojas, ou ainda correm e tomam atalhos com o objetivo de chegar mais depressa. Sempre presas a uma “ditadura” que surgiu na época do capitalismo industrial e permanece até hoje com aumento progressivo de sua intensidade.

Já a Praça XV, primeiro espaço público claramente definido de Florianópolis, diferencia-se dos outros espaços por ainda preservar o antigo conceito de praça, da sociedade tradicional, onde o espaço público é o lugar da vida coletiva, de reunião e encontro, de lazer. Os velhinhos que se divertem e passam o tempo jogando dominó, juntamente com artesãos, hippies, músicos locais e engraxates, dão vida e segurança ao local. O calçadão da Conselheiro Mafra e Felipe Schimidt e suas transversais se transformam numa segunda rua de comércio, com vendedores ambulantes, camelôs, índias guaranis, entre outros.

Estes espaços urbanos são entendidos a partir de sua localização e de seus limites, que definem sua territorialidade. A marcação desse território acontece não apenas por limites geográficos ou referenciais visuais, mas pela apropriação do espaço por um grupo que desenvolve uma atividade específica, dando-lhe uma identidade.

Contextualização do espaço privado no espaço público (1)

Todas as relações que envolvem usuário e meio, sejam estas culturais, antropológicas ou históricas, determinam a formação do espaço. Então, “os relacionamentos com o espaço estão ligados diretamente à estruturação urbana e seu processo de transformação, seja pelo desenvolvimento tecnológico, modelo cultural ou pela divisão do trabalho, uma vez que este último influi diretamente na base dos relacionamentos sociais” (2)

A natureza de um espaço determina os tipos de relacionamentos entre as pessoas, sendo, portanto, a conformação urbana um dos fatores que caracteriza a forma e o tipo de uso que o espaço adquire. Assim, o que determina se o espaço é público ou privado é o uso que se faz dele. Mesmo que um espaço seja destinado a um fim específico, nem por isso desempenhará a função para a qual foi construído. O tipo de uso ou o não-uso serão determinados pelos valores da população que o utiliza.

Na sociedade atual, o capitalismo absorve quase todo o espaço e o repensa em função da utilidade econômica. Quase toda a cidade mostra sua estrutura a partir dos locais de trabalho e de consumo (3). A vida extraprofissional é repensada em referência à vida profissional. Neste contexto, os espaços públicos, que eram em maior parte locais não-econômicos, locais de convívio, de encontro coletivo e de relação com o outro, desaparecem, são re-funcionalizados, pois são locais não econômicos, não rentáveis.

Além disso, a estruturação do espaço, concebida em função do trabalho, não considera a presença da marginalidade e da não-atividade, ou seja, só tem direito de não fazer nada quem tem um trabalho rentável e não um trabalho gratuito. Isto gera uma agressão para os grupos que não se encaixam na lógica do trabalho, como mulheres não-ativas, crianças e velhos.

Também existe, segundo Garcia (4), o caso da apropriação dirigida do espaço, que acontece em Curitiba, onde a fruição e as práticas cotidianas de apropriação social acontecem por influência da mídia. Nesta situação, a cidade é vista como cidade-modelo e assim há uma consolidação de uma identidade social-espacial positiva. O problema neste tipo de política urbana é que a cidade é vista como mercado e o cidadão como consumidor. E este anseio por consumir mostra-se como característica direta das classes média. Neste contexto não é possível saber onde se encaixam as outras classes sociais. Outra dúvida é em relação à cidade ser vista como um lugar de consumo. Como na atualidade as mercadorias são descartáveis, as intervenções urbanas feitas com este critério também podem perder seu uso e sua função rapidamente.

O espaço urbano, aberto ou fechado, público ou privado, é definido pelo uso específico do mesmo, pela atividade desenvolvida como sendo atividade social de intercâmbio humano – onde há a necessidade do encontro, do outro, do alheio ao “eu” – ou como sendo atividade particular, onde o “estar só” da intimidade demarca limites.

O grupo social ou cultura e a época influenciam nos diferentes usos que se faz deste espaço e nos diferentes sentidos que se atribuem a ele. Uma mesma disposição espacial, interior e exterior, pode ser percebida de modos inteiramente distintos por dois indivíduos de cultura e realidade social diferentes (dimensão sócio-econômica), modificando o comportamento, as expressões culturais e até provocando perturbações psicológicas nos usuários desses espaços.

A natureza de uso e de quem usa define se o espaço é público ou privado, diferenciando-se de acordo com os interesses e as necessidades daquele que, como usuário do espaço, dele se apropria.

Então, aparece em primeiro plano, o espaço aberto como sendo coletivo, como sendo espaço público, e o espaço construído, como sendo espaço privado. Mas, se for definida aqui, a rua como o espaço público por excelência, não se poderá, por isso, ignorar que “a rua pode ser privada, quando o uso privado acontece na rua”.

Assim, percebe-se que a identidade de um espaço é a identidade de seu usuário ou de seu uso, sendo portanto uma identidade social. Espaços públicos ou semipúblicos também podem se tornar privados, quando ocorre a apropriação deles, ou seja, um grupo de pessoas define e dita suas regras de uso.

Cada pessoa escolhe o espaço onde encontra tipos de representação e comportamento que são semelhantes aos seus. As pessoas que não tem nenhuma capacidade de apropriação sentem-se como estrangeiras. O espaço é uma extensão, uma projeção da personalidade e portanto deve-se respeitar este território.

As classes sociais têm interesses e necessidades diferentes, o que determina diferentes formas de apropriação de um espaço coletivo enquanto espaço público. O usufruto do espaço privado também é conseqüência da situação sócio-econômica. As classes privilegiadas não têm fronteiras, são uma classe internacional, com interesses e aspirações semelhantes, mesmo que sejam de origens diferentes.

Os fluxos e a circulação entre um espaço e outro determinarão rituais que permitem aproximações entre diversos grupos e realidades sociais, o que determinará os relacionamentos dentro do espaço social. A engrenagem que move a realidade urbana, portanto, é esse intercâmbio que surge através dos fluxos humanos. Assim, a rua como meio de acesso “a algum lugar”, segundo Nelson dos Santos (5), “é mais do que via, trilha ou caminho”. Ela possui uma hierarquia, uma vocação, onde ocorrem eventos e as relações entre veículos e transeuntes provocam encontros, e o “ir ao trabalho” e os tradicionais acontecimentos da vida de convívio social cedem lugar aos jogos, festas, devoções... Tudo isto demarca um território, uma ocupação variada do espaço rua e uma especialização de seu uso (pelo modo de apropriação). Deste modo, ela aparece como o “microcosmo real” do espaço de relações.

A rua como espaço público é um espaço para ser vivenciado, para “ver” e para “ser visto”. O indivíduo deve assumir na rua, comportamentos impostos por um padrão determinado pela sociedade e deve representar seu papel segundo sua função social.

Quanto mais é vivenciado o espaço público, mais este tende para o doméstico (o privado), no entanto, se acontece o oposto, mais o espaço público é excluído, havendo, não apenas, uma alienação, mas uma distorção na percepção de suas realidades. Isto acontece de tal modo que permite que a violência e a degradação dominem, pois não há controle do que acontece no espaço externo (desprotegido) e nem são conhecidas suas rotinas e faces próprias.

Neste espaço, nenhum fato é suspeito e ao mesmo tempo, todos são suspeitos, o que gera, ainda que inconscientemente, uma posição de defesa, por vezes, meio agressiva em relação ao que é do outro, ou se falamos de espaços, em relação ao público.

Na medida em que há vários grupos que utilizam um espaço, há em certas situações uma concorrência pelo uso do espaço, o que torna necessário a existência de certos limites ou regras de utilização. São acordos permanentemente em construção e acontecem, a partir deste conjunto de relações sociais.

E mesmo, com os conflitos que as relações sociais podem propiciar, pode-se perceber, então, que “a rua é um espaço vital no conjunto social, sendo ela, mais que uma via ou um caminho de circulação. Ela aparece neste contexto, quando há integração social, como extensão do convívio doméstico e familiar para grande família social”. (6)

Estas “novas relações na rua criam novas relações nos espaços contíguos” (7). Um exemplo disto é a calçada e seu uso. A priori, o passeio é o lugar das pessoas na rua. Se definir o lugar das pessoas, estabelecem-se neste espaço valores e atividades bem específicas, embora não determinemos o uso. O uso é restrito ao pedestre, embora o repertório de uso seja amplo. A calçada, assim, em sua ligação social pode abrigar usos tais que aparece como segunda rua de comércio. Um exemplo disso são os “hippies” e camelôs. E neste exemplo encontra-se inclusive, o domínio de uma área pela especialização de uma atividade.

Continuando a análise, percebe-se que, dependendo do referencial adotado, um mesmo espaço pode ser público ou privado. Enquanto para o “hippie”, o espaço chega a assumir a idéia de doméstico, pela relação que tem com o mesmo, do ponto de vista dos passantes, o espaço é totalmente público, ao qual todos tem acesso. Pode-se observar, então, que posturas e comportamentos diferentes constroem diferentes signos e valores na consciência das pessoas, dependendo da função desempenhada.

Assim, segundo Santos, “cada sistema é um palco, tem um suporte material, um tipo de valorização no “consciente” social, script, texto ou ação, onde atores desempenham papéis de acordo com o referencial que adotam. Um sistema de espaços só existe em conexão com um sistema de valores” e estes valores surgem de acordo com a visão e a relação que se tem do espaço dentro do próprio espaço como usuário ou apenas como observador deste.

Quem usa o espaço, habita no mesmo, pois este é parte de seu contexto, ao contrário de quem observa, assumindo uma posição dentro do espaço que é, na verdade, “o outro”, alheio e sem vinculação direta à realidade específica do espaço. Este tipo de relação dentro de um espaço essencialmente público poderá determinar seu caráter como exclusivamente público ou transformá-lo num espaço privado.

As ligações e divisões espaciais estabelecem preferências e valores e como conseqüência diferentes eixos de percepção. A assimilação do espaço e a personalização de seus signos dependem e são definidas pelas relações humanas que atuam no mesmo. Essa questão está diretamente ligada à questão social e as implicações que esta provoca na morfologia espacial.

Apreender os significados do espaço público e do espaço privado depende não apenas do contexto de espaços construídos ou não, mas do contexto de percepção dos limites através da vivência social.

Por conseqüência, o espaço e seu caráter dependem da posição que assumem os usuários entre si e em relação aos seus respectivos espaços. E os espaços, portanto, não serão jamais singulares, mas passíveis de absorver uma nova função.

Conclusão

Caminhar, assumindo o movimento da alma, como dizia o filósofo Plotino, com um olhar sensível como a luz, captando imagens, apresenta-se como a melhor maneira de entender a cidade.

Já que elas são ruas, avenidas de troca e comércio, o aglomerado físico de pessoas, uma multidão caminhando nas calçadas movidas por curiosidade, surpresa, pela possibilidade do encontro, a vida humana não acima da confusão, mas no meio dela. (8). Por isso, é necessário que os planejadores urbanos vejam a cidade através dos pés, e não de cima de uma prancheta.

notas

1
O espaço privado visto não como propriedade privada, mas como uma forma de apropriação do espaço público, que o torna de certa forma privado.

2
REMY, Jean; VOYÉ, Liliane. La ciudad y la urbanización. Instituto de Estudios de Administracion Local. Madrid, 1976.

3
Segundo Karl Marx, o trabalho e o consumo são indissociáveis, gerando a mercantilização do espaço, que se torna mercadoria. Um exemplo claro da privatização do público, são os shoppings centers. “Contribuição à uma economia política”.

4
GARCIA, Fernanda E. Sánchez. Curitiba anos 90: a imagem urbana revisada. In Imagens Urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano / organizada por Célia Ferraz de Souza e Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1997.

5
SANTOS, Carlos Nelson F. dos (et al.). Quando a rua vira casa. 3.ed. São Paulo: Projeto, 1985.

6
ARAÚJO, Tânia Guedes de; Yamada, Ana Carolina Fackes. O privado no público e suas relações. Trabalho desenvolvido na disciplina Teoria da Arquitetura I, ministrada por Lino Peres, no Curso de Arquitetura e Urbanismo. UFSC, Florianópolis: junho, 1997.

7
SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Op. cit.

8
HILLMAN, James. Cidade & alma. Coordenação e tradução Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

Bibliografia complementar

CORREA, J. de A.. Ética: a responsabilidade técnica e social do arquiteto. Notas do Seminário proferido no VI Congresso da ABEA. Salvador, 1993.

FERRARA, Lucrécia D’ A.Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Ed. Nobel, 1988.

_________. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

_________. Cidade: imagem e imaginário. In Imagens Urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano / organizada por Célia Ferraz de Souza e Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1997.

POE, Edgar Allan. O homem da multidão. Tradução de Dorothée de Bruchard. Edição trilingüe. Porto Alegre: Ed. Paraula, 1993.

VAZ, Nelson Popini. O Centro Histórico de Florianópolis: espaço público do ritual. Florianópolis: FCC Ed., / Ed. UFSC, 1991.

VOYÉ, L.. A cidade e a urbanização; a ordem e a violência. (entrevista); tradução Vera Helena Bins Ely. Síntese: revista de arquitetura, Imprensa Universitária – UFSC, 3, p.67-76, 1991.

YAMADA, Ana Carolina Fackes. A alma da cidade. In: CONGRESSO NACIONAL DA ABEA. (9:1999: Londrina-PR) (16:199:Londrina-PR). Anais... Londrina: UEL, 1999. p. 111.

_________. A alma da cidade. Trabalho desenvolvido na disciplina História da Arte, Arquitetura e Urbanismo I, ministrada por Lino Peres, no Curso de Arquitetura e Urbanismo e na disciplina de Fotojornalismo III, ministrada por Ivan Giacomelli. UFSC, Florianópolis:, 1999.

sobre o autor

Ana Carolina Fackes Yamada é arquiteta, urbanista, designer e fotógrafa. Graduou-se com Mérito pela Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis-SC), em 2002. Ainda cursou Desenho Industrial pelo CEFET-PR, em 1993. Atualmente atua em Curitiba no Grupo Cubo Arquitetos Associados.

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