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architectourism ISSN 1982-9930

arquiteturismo

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português
Neste artigo, Adson Bozzi faz referência ao romance de Victor Hugo, "Os trabalhadores do mar" com a intenção de realizar uma reflexão contemporânea sobre essa categoria que nunca deixou de existir, mas cuja sorte alterou-se radicalmente


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LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Os trabalhadores do mar reloaded . Arquiteturismo, São Paulo, ano 04, n. 047-048.01, Vitruvius, fev. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/04.047-048/3764>.


"J’ai dédié ce livre au rocher d’hospitalité et de liberte, à ce coin de vieille terre normande où vit le noble petit peuple de la mer, à île de Guernesey, sévère et douce, mon asile actuel, mon tombeau probable"
Dedicatória de Victor Hugo à ilha de Guernesey e aos seus habitantes no romance Os trabalhadores do mar.

Na extensa obra de Victor Hugo há três romances maiores que são considerados, e a justo título, como uma trilogia, a saber: Os miseráveis, Notre Dame de Paris e o menos conhecido, mas não menos importante, Os trabalhadores do mar (1). Este último romance tem como enredo a tentativa de resgate do motor do primeiro barco a vapor da região da ilha anglo-normanda de Guernesey, que havia sido perdido no mar. O seu proprietário, o armador Lelhierry, havia prometido em casamento a sua sobrinha Deruchette àquele que realizasse a proeza do resgate. O pescador Gillatt, definido no romance como “selvagem e marginal”, é fortemente tentado a recuperar o motor e a conquistar, dessa maneira, o casamento com Deruchette. No fim do romance, contudo, recuperado o motor, Gillatt desiste da sobrinha do armador, uma vez que ela, na sua prolongada ausência, havia se apaixonado pelo pastor anglicano Caudray. Excetuando-se o gênio romanesco de Hugo, trata-se de uma narrativa não muito diferente de inúmeros outros romances românticos do século 19, apresentando alguns dos usuais pathos desse movimento literário: o amor não correspondido e a consequente renúncia cristã que termina com a morte – como é o caso do suicídio final de Gillatt, que se entrega, solenemente, ao “mar-matricial” (mar, em Francês, é feminino, la mer, termo que se assemelha enormemente a mère, “mãe” em Francês); a ambiguidade dos elementos naturais, que, como a água, tanto é portadora de vida e fonte de recursos como é aquela que representa, continuamente, a ameaça da morte.

Convém, contudo, acrescentar alguns dados suplementares a partir dos quais podemos perceber as particularidades desse romance. Hugo o escreveu entre os anos de 1864 e 1865, quando estava exilado na ilha, justamente, de Guerseney, que, como vimos, é o locus da narrativa. Trata-se, antes de tudo, da narrativa de um exilado político, mas é, igualmente, a obra de um escritor viajante e uma autêntica ode ao mar e, como podemos observar na transcrição da dedicatória, aos seus habitantes e trabalhadores.

Iniciamos o nosso texto com a referência ao romance de Hugo porque temos a intenção de realizar uma reflexão contemporânea sobre essa categoria que nunca deixou de existir, mas cuja sorte alterou-se radicalmente, os trabalhadores do mar. Ora, os pescadores, a despeito de algumas tentativas aqui e acolá realizadas pela mídia, não são mais compreendidos romanticamente, uma vez que em nossa era a pescaria é muito mais uma atividade industrial envolvendo a alta tecnologia que um ato solitário que o homem realiza contra os elementos da natureza. Mas, assim como existiram os trabalhadores do mar que foram magistralmente descritos pelo romancista francês, há os “novos trabalhadores do mar”, adaptados a uma nova realidade econômico-social, em que o mar continua a ser explorado, mas dessa vez a partir da indústria mundial do turismo.

Nas praias do Brasil, ou pelo menos naquelas que estão na rota do turismo nacional e internacional, há toda uma miríade de trabalhadores informais que vendem praticamente tudo o que é suscetível de ser consumido in situ: gêneros alimentícios os mais diversos (não é necessário enumerá-los, todos nós os conhecemos muito bem), além de objetos de consumo duráveis, como óculos de sol, biquínis, toalhas etc. Além disso, há, igualmente, a “prestação de serviços” (a exploração do mar entrou no “setor terciário”...), como o aluguel de pranchas de surf, de caiaques, de guarda-sol e de cadeiras de praia; e há, igualmente, serviços como passeios de barco (para pescaria ou para “ver golfinhos”) e o “serviço de bar na areia”, realizados pelos “garçons da areia”.

Ora, uma estadia na praia – realizada por uma multidão de turistas em meio a um comércio florescente e nada discreto –, não possui nenhuma relação com as evocações românticas do mar, as quais, muitas vezes, ocorriam entre um passeio solitário nas dunas e o sublime de uma tempestade que se assiste na segurança de um rochedo. Hodiernamente, o estirâncio não é mais o local de encontro entre o mar e a terra, mas o palco escaldante de inúmeras transações comerciais. Tal situação está certamente relacionada ao advento das férias pagas e à democratização do acesso aos meios de transporte e, por conseguinte, ao lazer no mar. Na Europa Ocidental, no século 18, frequentar a praia era uma exclusividade da alta burguesia e da aristocracia, mas já no século posterior a pequena burguesia, ainda que por um período de tempo mais curto, passa a frequentar os balneários marítimos. E é no século passado – pelas razões já elencadas – que vamos encontrar as raízes do turismo de massa e a consequente “secularização” do mar e da vilegiatura: não mais apenas burgueses ascendentes e aristocratas decadentes, mas, igualmente, operários, qualificados ou não, e centenas e centenas de pequenos trabalhadores.

Essa constatação da ordem tanto do social quanto do político nos leva a seguinte questão: o que, exatamente, teria mudado para os praticantes da vilegiatura e para os trabalhadores do mar, cujas relações, nos séculos anteriores, se reduziam a quase total inexistência? Aqui, refiro-me aos pescadores que nos séculos anteriores compunham apenas o pano de fundo de pitoresco que garantia alguma “autenticidade” à experiência viática dos turistas. Essas relações teriam, então, nesse século, se alterado? A esse respeito citemos o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que no ensaio O que é a literatura? refuta qualquer legitimidade tanto ao turismo de massa quanto aos próprios turistas (logo ele, que foi um empedernido turista até os últimos dias da sua atribulada vida): “o viajante é uma perpétua testemunha, que passa de uma sociedade a outra sem se deter jamais em nenhuma, e porque, consumidor estrangeiro numa coletividade laboriosa, ele é a própria imagem do parasitismo” (2). Dessa citação apreende-se um panorama no qual os turistas não são senão “burgueses parasitas”, consumidores fadados a ser sempre os estrangeiros de uma realidade que não poderão nunca partilhar – e nem, é claro, ultrapassar.

Certamente que do ponto de vista de nosso século, essas considerações, realizadas em 1946, parecem-nos exageradas, mas é mister colocá-las no seu contexto sócio-político: sabemos que Sartre escreveu essas frases desde a perspectiva do horror nuclear, da guerra fria e do seu engajamento pessoal no espectro político comunista. Diante disso, o que não seriam alguns turistas em uma praia senão e definitivamente os “estrangeiros”? “Estrangeiros” como “estranhos” que errariam despreocupados pelas ruínas de um mundo que já não existia e sem desconfiar da surpresa que o mundo do pós-guerra lhes havia preparado. Ora, esses turistas não eram, exatamente, ingênuos, talvez fossem apenas viajantes despreocupados que esperavam, como de hábito, que a última guerra tivesse sido a derradeira.

Porém, não estamos mais no século 20, no qual havia claramente uma dicotomia social entre burgueses e trabalhadores (e apenas para retornar ao nosso tema: “operários do mar”), nem no século 18, época de um lazer marítimo reservado à grande burguesia e à aristocracia; e, para concluir, nem no século 19, quando tudo começa a sofrer uma lenta e silenciosa transformação. No início desse século não é tão claro quem são os parasitas – e se parasitas há, onde se encontrariam – e não é, igualmente, claro, quem seria a imagem romântica atualizada – ou reloaded – do “nobre pequeno povo do mar” (expressão, aliás, impregnada de paternalismo cristão) –, e se nobreza há, onde esta se encontraria. De qualquer sorte, depois do fim das “grandes narrativas” (a história dita neutra, o Marxismo e a Psicanálise, entre outras) é difícil acreditar em uma nobreza inerente a uma determinada classe social.

Tudo o que podemos ter certeza é que não há mais na vilegiatura marítima o direito seguro – que sequer fora incluído no preço do “pacote promocional” – a uma contemplação romântica do mar e dos seus trabalhadores: o estirâncio é agora tão somente uma faixa de areia apinhada de turistas, e as tempestades no mar não são mais sublimes, são apenas um estorvo para turistas cujos dias na praia estão contados. E os “trabalhadores do mar” não são, definitivamente, o já aludido “nobre pequeno povo do mar” idealmente concebido e romanticamente descrito por Hugo, estes são, agora, trabalhadores informais que aproveitam a “alta estação” para, como quaisquer outros trabalhadores, realizar a função que, de alguma maneira, lhes coube na sua sociedade.

notas

1
HUGO, Victor Marie. Les travailleurs de la mer. Paris, Librairie Internationale, 1866.
2
SARTRE, Jean-Paul. O que é a literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Ática, 2004, p. 98.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor do livro Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.

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