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architectourism ISSN 1982-9930

Montepulciano, Itália. Foto Victor Hugo Mori

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As experiências mais simples nas viagens podem ser as melhores? Silvia Zatz discorre sobre relações com companheiros, coisas inusitadas e inesperadas que acontecem nos passeios por aí, inclusive quando filhos que não deixam os outros dormirem, são os seus


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ZATZ, Sílvia. Memória do coração. O que torna a viagem uma experiência única e inesquecível. Arquiteturismo, São Paulo, ano 05, n. 049.04, Vitruvius, mar. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/05.049/3811>.


Viajar junto é sempre um ponto de mudança numa relação. A convivência diária, as situações inesperadas em lugares desconhecidos ou pouco conhecidos, as surpresas singulares, os encontros e desencontros.

Arriscaria dizer que, ao viajar em companhia de outras pessoas, o que torna a viagem uma experiência particular, uma vivência única e exclusiva, não é o lugar visitado, as paisagens vistas, os monumentos históricos ou os pontos turísticos, mas o vínculo que se cria entre os companheiros de viagem.  É o surgimento de um espaço de história comum.

Talvez a discussão com um porteiro de hotel cafajeste, chamado Rafaelo, seja uma lembrança mais viva do que a mais bela vista da Costa Amalfitana. Dividir um sanduíche frio numa noite gelada do inverno Londrino, tomando a cerveja deixada no parapeito da janela, pode constituir uma recordação mais forte do que a visita a museus e lugares históricos.

Me surpreendi ao perceber, numa viagem a Fernando de Noronha, que a coisa mais marcante, o ponto alto da viagem para meu filho de dois anos foi andar de buggy. Mais do que qualquer praia deslumbrante, do que os peixes nadando em água cristalina no meio das nossas pernas... Nada disso: o buggy em primeiro lugar. Entendi que se trata de uma memória que não é objetiva. É um registro emocional de um momento significativo. E me dou conta de que comigo não é muito diferente.

É curioso observar que a mudança na relação entre companheiros de viagem se dá, guardadas as proporções, com pessoas mais ou menos próximas em nosso círculo de relacionamentos. Amigos novos, amigos antigos, namorado, marido ou mesmo filhos com quem convivemos no dia a dia. A convivência se intensifica, a relação muda. Passamos a ser companheiros, vivendo uma mesma aventura, explorando juntos um lugar novo, descobrindo uma nova perspectiva. Estamos lado a lado, dois iguais, caminhando de mãos dadas em direção a algo desconhecido.

As lembranças que compartilhamos, esse futuro passado comum, às vezes se constrói a partir de coisas boas que aconteceram, outras vezes de apuros, momentos difíceis, dos quais damos risada ao nos recordarmos.

No meu caso em particular, mãe de três crianças (oito, seis e três anos), qualquer pequena viagem torna-se facilmente uma grande aventura. A começar pelo arsenal de bagagem, que independe se a viagem vai durar um fim de semana ou um mês. Além de muitas trocas de roupa (acidentes acontecem), brinquedos, livros de histórias, material de desenho, um bom suprimento de guloseimas para os momentos críticos, obviamente uma farmácia completa, vídeo games portáteis para viagens longas... Ufa! E não esquecer o indispensável DVD para acalmar a discórdia nas horas de tédio.

Não posso deixar de lembrar, por exemplo, que voltando de Orlando após divertidas e cansativas férias, chegou a hora de passar pela polícia, detectores de metais e etc. Depois de colocar todo nosso arsenal de sacolas e sacolinhas, mochilas e mochilinhas, carrinho de bebê, e outras cositas más, começamos a tirar os nossos sapatos, cintos e afins, e depois tentamos convencer os meninos a fazer o mesmo. Um bateu o pé e disse que não tiraria o sapato “de jeito nenhum!”. O segundo não queria tirar o casaco, por mais que a policial gesticulasse freneticamente, pensando que nós não compreendíamos o inglês. O terceiro se pôs a chorar, pois não permitiria de nenhuma forma que seu bichinho de pelúcia, companheiro de todas as horas, fosse colocado na cestinha para passar pelo aparelho de raio-x. No meio de todo esse movimento, a fila se formando atrás de nós, Sergio tirando o tênis de um, eu tirando o sapato do outro e... de repente o terceiro tinha sumido. Olhei em volta e comecei a gritar seu nome. Um desespero. A policial mandava deixar passar os próximos da fila. Deixamos nossas coisas de lado e nos pusemos a procurá-lo. Por sorte, nossa agonia não durou muito. O pequeno havia avistado os avós que tinham vindo se despedir através de um vidro e correra para lá, num lugar que estava fora de nosso campo de visão.

Diversos momentos de viagens com as crianças ficaram registrados na memória. Talvez seja uma sensibilidade familiar, mas o fato é que sempre pelo menos um deles passa mal no trajeto. Já fomos batizados com vomitadas homéricas no carro (inúmeras paradas no meio da estrada), no ônibus, no táxi, no avião (coitado do passageiro vizinho!), em barcos de diversas formas e tamanhos, e por aí vai.

Da primeira viagem transatlântica que fizemos com Pedro, meu filho mais velho, quando ele tinha apenas um ano e meio, tenho uma dessas lembranças inesquecíveis. Depois de uma longa preparação e muita conversa (a gente sempre acha que eles estão entendendo o que a gente fala), duas horas observando os aviões no aeroporto e repetindo a todo momento “Que legal, você vai viajar num avião desses!”, finalmente chegou a hora de embarcar. Já era tarde da noite e Pedro estava cansado, mas ao mesmo tempo excitado com a novidade. Entramos na aeronave com ele no colo “Olha que legal o avião!” e, enquanto procurávamos a localização de nossos assentos, ele fez uma cara de choro e se pôs a gritar: “pá casa! pá casa!”, querendo dizer “tudo bem, agora já vi e quero voltar para a minha casa, para a minha cama”. O que é que se faz numa hora dessas? O menino não aceitava sentar, ficava apontando desesperadamente a saída. E eu me pus a pensar em como sempre havia achado uma irresponsabilidade viajar com crianças pequenas, criticando os pais que insistiam em impor esse martírio aos filhos e sobretudo às outras pessoas que tinham comprado as passagens sem imaginar que haveria um condenado gritando a noite inteira nos seus ouvidos. Decidi que nunca faria isso novamente. No final deu tudo certo, a viagem não foi tão longa quanto parecia, todos sobreviveram e nós repetimos o “erro” muitas outras vezes.

Fazer uma trilha com os pés enterrados na lama até os tornozelos, carregando um bebê de dois anos no colo, pode não parecer uma lembrança muito divertida, mas damos boas risadas cada vez que nos lembramos disso. Ter mergulhado de snorkel pela primeira vez junto com meu filho de oito anos é uma coisa que tenho certeza que os dois guardaremos para sempre na memória.

As carinhas maravilhadas dos meus três mosqueteiros sentadinhos, vestidos com coletes salva-vidas, fazendo uma travessia de barco para uma ilha deserta, é uma lembrança que não tem preço. Pouco importa se estamos no Havaí, no Caribe ou em São Sebastião.

São essas lembranças que constroem nossa história comum e tornam as viagens que fazemos mais do que uma coleção de cartões postais animados. Paris é a mesma sempre. O Louvre está sempre lá, a Notre Dame e a Tour Eiffel, mas o vinho que lá tomei em companhia de uma certa pessoa talvez seja a lembrança mais inesquecível. Há uma Paris que, compartilhada com alguém, é exclusiva, é só nossa.

Como diria uma grande amiga, há uma memória do coração, que uma viagem em boa companhia propicia e alimenta. Enfim, não importa se o destino é um cruzeiro na Escandinávia, a Patagônia ou a Disney, vamos ter uma história para contar e nos lembrar para o resto da vida.

sobre a autora

Sílvia Zatz é escritora. Publicou mais de dez livros, a maioria para o público infanto-juvenil, entre eles O clube dos contrários, Planeta corpo e Uma peça a mais" (Companhia das letrinhas).

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