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architectourism ISSN 1982-9930

Stonehenge, planície de Salisbury, condado de Wiltshire, Inglaterra. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
A cidade histórica de Goiás sediou um encontro de corais em outubro de 2010. A narrativa faz breve um histórico da cidade e os motivos do seu tombamento pela Unesco, usando recursos da literatura em diálogo com a filosofia.


how to quote

LORDELLO, Eliane. Quintais, corais, Goiás. Turismo com livros de Cora Coralina e Gaston Bachelard no bolso. Arquiteturismo, São Paulo, ano 05, n. 056.03, Vitruvius, out. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/05.056/4104>.


Rio de águas velhas.
Roladas das enxurradas.
Crescidas das grandes chuvas.
Rio do princípio do mundo.
Rio da contagem das eras.
(Rio Vermelho, Cora Coralina)

Rio Vermelho e torre da Igreja do Rosário
Foto Eliane Lordello

Seguindo o curso do Rio Vermelho, percorrendo quintais e ouvindo corais, assim foi a viagem que origina este texto, com o qual pretendendo tão somente lhe convidar a conhecer Goiás. Escrita a partir das memórias de uma viagem feita em outubro de 2010, quando a cidade sediava um encontro de corais, esta narrativa se inicia por breve um histórico da cidade. Essa síntese histórica permite expor sumariamente os motivos do tombamento internacional de Goiás pela Unesco. Exposta tal justificativa, o texto prossegue por apresentar a cidade dialogando com a literatura, em especial, com as palavras poéticas de Cora Coralina, dileta filha dessa terra goiana.

Repousando aos pés de uma serra, margeando um rio, o lugar, outrora rico em ouro, evoca forças imagéticas e literárias altamente inspiradoras. Assim sendo, convida também ao diálogo com o filósofo que tanto estudou as forças imaginantes da matéria, Gaston Bachelard. A entrada da literatura e da filosofia se dará ao longo de todo o texto, tão logo finde o histórico, doravante sumarizado segundo os referenciais da Unesco e de Silva Telles (1).

Margeando o Rio Vermelho, a cidade de Goiás situa-se nos contrafortes ocidentais da Serra Dourada, onde surgiu como um pequeno arraial primeiramente nomeado Sant’Ana. Remontando a 1727, esse arraial foi fundado por Bartolomeu Bueno da Silva, filho do bandeirante de quem herdou os mesmos nome e apelido – Anhangüera. Junto com o pai, o filho ali estivera quatro décadas antes. O lugar ainda evocava a memória do ouro dos índios Goyas, que para ali arrastava uma cópia de bandeirantes. Partindo de São Paulo, em seu percurso terra adentro esses exploradores desrespeitaram os limites do Tratado de Tordesilhas. Com tal desacato, acabaram incorporando ao território brasileiro mais de três milhões de quilômetros quadrados de terras que oficialmente pertenciam aos espanhóis.

Sendo farto o garimpo de ouro no leito do Rio Vermelho, outros arraiais surgiram nas cercanias do arraial de Sant’Ana – o da Barra, Ouro Fino, Ferreiro. Recaiu, porém, sobre o arraial de Sant’Ana a escolha do governador de São Paulo, Dom Luís de Mascarenhas (Conde d’ Alva), para sediar a comarca, instituída para melhor controle das minas, em 1739. Transformada assim em vila administrativa, o antigo arraial foi nomeado Villa Boa de Goyaz, em homenagem a Bartolomeu Bueno.

Posteriormente, em 1748, a Capitania de São Paulo foi desmembrada em mais duas – a de Mato Grosso e a de Goiás. Então recém-criada, a Capitania de Goiás foi elevada de vila a pequena capital por seu primeiro governador (1749-1755), Dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos. Noronha fez edificar a Casa de Fundição, o Palácio e o Quartel. Posteriormente, José de Almeida, o Barão de Mossâmedes, que a governou entre 1772 e 1777, restaurou estradas e pontes, construiu a Fonte da Carioca, o Chafariz de Cauda e o Teatro. Algumas dessas construções surgirão, ao longo deste texto, à medida que caminharmos juntos pela cidade. Por ora, continuemos no percurso histórico.

A estruturação da cidade, tal como hoje conhecida, é creditada a Luís da Cunha Meneses (governo 1778-1783). Responsável pela elaboração, em 1782, do prospecto da Villa Boa de Goyas, para reordenar o processo de ocupação urbana, Meneses logrou ainda arborizar a cidade, alinhar suas ruas e organizar a Praça do Chafariz.

Decaindo, porém, a partir de 1770, o ouro no Rio Vermelho, a cidade de Goiás começou a se estagnar. Deve-se a isso, no entanto, a preservação de sua fisionomia urbana, cujas feições nos alcançam com praticamente as mesmas características originais. Descrições e desenhos legados por naturalistas como Saint-Hilaire, Pohl e Burchell, que por ali estiveram nas primeiras décadas do século XVIII, permitem constatar essa permanência.

Os primeiros arruamentos do que viria a ser esse traçado, no ainda Arraial de Sant’ Ana, surgiram às margens do Rio Vermelho, na aurora da mineração, organizando-se em três sentidos: ao sudeste (rumo aos caminhos provenientes de São Paulo); em direção ao norte e a oeste (rumo a Cuiabá). As ruas e becos se implantaram sem configurar ângulos retos. Tal ausência de ortogonalidade resulta da interligação dos três largos triangulares, onde espontaneamente foram se instalando os edifícios de poder e de culto, e o casario que lhes contornou. Com seu calçamento em pedras irregulares, mantém-se íntegro esse traçado urbano. Sua autenticidade testemunha a organização de uma vila do século XVIII, ilustrando a conquista de um território colonial que infringiu as limitações tratadistas de Tordesilhas. Ademais, em sua arquitetura civil, o núcleo urbano de Goiás mantém a feição e o caráter das vilas e arraiais setecentistas do tempo da mineração, como ressalta Silva Telles.

No que tange ao conjunto arquitetônico, o Iphan atribui a austeridade dos prédios públicos e privados da cidade ao isolamento de Goiás dos principais centros culturais do período colonial. Considerando as soluções técnicas bastante particulares adotadas no seu conjunto arquitetônico, o instituto o classifica de exemplo relevante da arquitetura vernacular (2).

No período imperial, a Villa Boa de Goyas passou a se chamar Cidade de Goiás, sendo esta mudança acompanhada de relevantes melhorias urbanas, a exemplo da criação do Hospital, da Biblioteca Pública e do Liceu. Esse período foi marcado por grande ascensão cultural, malgrado a apatia econômica. A cidade é ainda considerada precursora de Goiânia e de Brasília no rompante rumo à ocupação e desenvolvimento da área central brasileira.

O reconhecimento à importância da história de Goiás e de seu legado patenteia-se no tombamento mundial do Centro Histórico da cidade, outorgado pela Unesco em 16 de dezembro de 2001. Sua inclusão na Lista do Patrimônio Mundial se deu segundo os critérios II e IV, abaixo transcritos.

"II. Ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores humanos durante um determinado período ou em uma área cultural específica, no desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, de planejamento urbano ou do desenho da paisagem, ou [...]

IV. Ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias etapas significativas da história da humanidade, ou [...]" (3).

Diversamente do que faz para as demais cidades brasileiras incluídas em sua lista, no caso de Goiás, o site da Unesco apresenta, na própria página da cidade, as justificativas diretamente relacionadas a cada um dos dois critérios. Tais justificativas são as reproduzidas a seguir.

"Critério II: Em seu traçado e arquitetura, a cidade histórica de Goiás é um excelente exemplo de uma cidade européia admiravelmente adaptada às condições climáticas, geográficas e culturais da parte central da América do Sul.

Critério IV: Goiás representa a evolução de uma forma de estrutura urbana e arquitetura características do legado colonial da América do Sul, fazendo pleno uso dos materiais e técnicas locais e conservando sua excepcional configuração" (4).

Dona de rico histórico, reconhecida pela chancela da Unesco, percorrida de modo coleante pelo Rio Vermelho, emoldurada pela Serra Dourada, cujo verdor se multiplica em quintais – eis a canora cidade de Goiás. Naquela noite enluarada do décimo mês de 2010, quando a cidade sediava um encontro de corais, ali cheguei, trilhando o curso do rio, avistando as copas dos pomares, jardins, arvoredos. Entre eles, o poético quintal de Cora Coralina, na legendária Casa Velha da Ponte. Na manhã seguinte, foi por ele que comecei o meu percurso goiano. O passeio que ali se iniciou, na cidade percorrida ao som de corais, é o que pauta esta narrativa de viagem daqui em diante.

Quintal da casa de Cora Coralina, Goiás
Foto Eliane Lordello [Fotomontagem Miguel Manhães]

Fotografado desde a ponte, o quintal da Casa Velha é aqui avistado pelo arvoredo que extrapola o seu longo muro de pedra. Mais do que uma fronteira, ou divisa, esse muro abriga toda uma colônia, e seus mais habituais habitantes foram assim, deliciosamente, descritos por Cora, na prosa Maravilhas da Casa Velha da Ponte:

“Uma velha colônia de Martim Pescador, de meu tempo de menina, vive, ainda, por aqui, bem instalada e bem governada, no muro de pedra cheio de mato da Casa Velha, na beira do velho rio. Andam fardados de uniforme azul brilhante, pala branca e capacete alto. Têm tratados de mágicas, de mergulho e técnicas em pescaria” (5).

Por justos motivos de direitos autorais, o quintal, assim como toda a casa, não pode ser fotografado por dentro (6). A interdição, no entanto, ajuda a cativar a curiosidade do visitante, dando espaço à imaginação. Como já disse Bachelard (7), “não se quer bem senão àquilo que se imagina ricamente”. Então, imagine um quintal onde você poderia deixar o seu sobrinho de um aninho ser feliz, sob a genorosa sombra de frondosas árvores, pontilhado de flores, musicado por passarinhos. Mais ainda, pense em um quintal onde uma bica deságua a sua cauda (como é usualmente chamada esta canalização).

Siga a cauda, o rabicho de madeira, e você adentrará o porão, lugar de heróicas histórias. Para contá-las, convoco a narrativa da jornalista Ana Tahan, neta de Cora, que de sua avó, originalmente Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, herdou o nome de batismo. Eis como a neta o descreve, narrando também o que ouvia de sua avó: “Cresci escavando o porão da casa velha da ponte atrás do ouro do capitão-mor – que ela contava ter sido escondido por um escravo de confiança do inconfidente” (8).

O inconfidente era Antonio Souza Telles de Menezes, capitão-mor da Villa Boa de Goyaz. Cumpre agora apresentá-lo, pelo quão atrelada a esse personagem é a história da casa, para ele edificada, por escravos, nos anos 1770. Quem o apresenta é novamente Ana Tahan, em uma síntese que não se priva ao cativante tom do relato ao pé do ouvido.

“Conta-se que o capitão foi um inconfidente, desgarrado da turma de Minas e perdido no interior de Goiás. Morreu, ou foi mandado morrer, em 1804. Entre os bens sequestrados pela Coroa portuguesa, estava a casa, comprada em leilão pelo cônego Couto Guimarães. Mais de meio século depois, em 1889, ali Ana foi gerada” (9).

Ana nasceu na Casa Velha da Ponte (Figura 3), em 20 de agosto de 1889. Foi também nesta casa que cresceu, tornando-se, aos quinze anos de idade, Cora Coralina. Com esse pseudônimo, diferenciou-se das muitas Anas da cidade que tem Sant’Ana como padroeira. Tendo vivido em algumas cidades do estado de São Paulo, foi para essa casa que a poetisa retornou, em 1956, para viver até o fim de seus dias, na sua amada terra natal. Considerado por Cora uma “volta às origens da Vida”, esse seu regresso foi poeticamente refletido em O Cântico da Volta, desde a casa até a cidade. Já em suas primeiras linhas, o cântico recende às fragâncias do quintal, evocado por suas flores, misturando-se aos aromas da cozinha que lhe é contígua.

“Velha casa de Goiás. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa.

Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedá e calda grossa – doce de figo ou caju” (10).

Casa Velha da Ponte
Foto Eliane Lordello

Ao adentrá-la, é Cora quem recebe o visitante, em imagem e som. Em sua fala inicial, a poetisa nos lega uma preciosa lição de simplicidade, ao dizer-se tão feliz em sua velhice, por dormir em um colchão de molas e possuir um ferro elétrico. Confortos jamais imaginados pela menina de infância humilde, descrita no poema Vintém de Cobre.

“Eu vestia um antigo mandrião
de uma saia velha de minha bisavó.
Eu vestia um timão feio
de pedaços, de restos de baeta” (11).

Confortos ainda ausentes de sua vida adulta, marcada por incansável trabalho de escritora e doceira na casa velha, comprada em leilão, com o dinheiro economizado da venda de doces, quando de seu regresso à cidade. Em tão precioso bem, para cuja derradeira conquista investiu todo esforço, Cora reconhece as marcas do empenho de quem lhe precedeu no tempo, enaltecendo-o em palavras poéticas, no texto O Velho Telhado.

“Tudo aqui ressalta a força muscular e bruta do escravo, tangido pelo relho do feitor, quando seus braços, seu peito, seus nervos tinham que levantar linhas e cumeeiras lavradas a machado, descomunais, encaixadas na cava, tudo acertado e ajustado nas medidas e cortes primitivos” (12).

O trecho acima transcrito ressoa reflexões filosóficas de Bachelard sobre a resistência da matéria e a duração do trabalho investido para domá-la. Deixemos, pois, que o filosofia dialogue com a prosa, evocando os pensamentos do filósofo.

“O mundo resistente nos impulsiona para fora do ser estático, para fora do ser. E começam os mistérios da energia. Somos desde então seres despertos. Com o martelo ou a colher de pedreiro na mão, já não estamos sozinhos, temos um adversário, temos algo a fazer. [...]

“Assim a luta do trabalho é a mais cerrada das lutas; a duração do gesto trabalhador é a mais plena das durações, aquela em que o impulso visa mais exatamente e mais concretamente seu alvo” (13).

Seja, como Bachelard, relacionando a força à duração, ao vincular a vigorosa arquitetura da casa à valentia do escravo, seja apelidando carinhosamente os seus cômodos (por exemplo: “Sobradinho”, para o quarto onde escrevia), os poemas de Cora ecoam por toda a casa. Leitora de longa data de seus textos, qual não foi a minha emoção ao ver, quietinho sobre um aparador, o Prato Azul Pombinho, lindamente cantado e decantado em prosa e verso. Novamente lembrando Bachelard (14), para quem “a imaginação é um princípio de multiplicação dos atributos para a intimidade das substâncias”, ao encontrar o prato, que antes tanto imaginara, senti-me dele uma íntima amiga.

O fato é que as palavras da poetisa surgem, em toda casa, tão palpáveis quanto os quatro vestidinhos seus, dependurados no cabideiro do quarto que permanece como ela deixou. Voltar ao quintal, antes de deixar a bela casa, leva a pensar no quanto Cora, dona de tão maravilhoso quinhão, soube etrapolá-lo; e, para além de suas fronteiras, descrever os quintais da sua cidade, no texto Goiás e Suas Uvas.

“Todo quintal grande ou chácara de arrabalde tem seu parreiral bem podado – em março para as uvas de julho e em agosto e em setembro para as frutas de janeiro. É a planta reverenciada de Goiás. E como produz, e como são boas, doces e perfumadas...” (15)

Deixemos, então, que suas palavras nos conduzam por outros quintais da cidade, das residências, das paróquias, das instituições mais diversas, pois soube Cora exaltá-los todos, os abastados e os humildes. Como bem prova a Oração do Milho (16), ao rezar, “Senhor, nada valho. Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres”. As palavras de Cora podem nos encaminhar, por exemplo, ao quintal da Igreja do Rosário, no final da mesma rua onde morou a poetisa. Em terreno que se estende na lateral da igreja, constituindo jardim contíguo ao pátio a ela anexo, esse quintal proporciona um refrescante passeio. É, de fato, uma felicidade para quem o descobre para além da igreja e do portal que abriga uma feira de artesanato.

Caramanchão no quintal da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
Foto Eliane Lordello

As palavras poéticas de Cora sobre sua verdejante Goiás levam-nos também ao quintal do Palácio Conde dos Arcos. Ali, parreiras, longevas mangueiras e outras árvores frutíferas, belas escadarias de pedra, lindos jardins, em diferentes níveis, e os pisos em mezanela formam um atrativo por si só. Confirmam-no como tal, o comportamento contemplativo dos visitantes ao percorrê-lo, e a interação que ali se estabelece entre turistas, funcionários e passantes.

Parreira no quintal do Palácio Conde dos Arcos
Foto Eliane Lordello

Jardins em níveis no quintal do Palácio Conde dos Arcos
Foto Eliane Lordello

O Palácio Conde dos Arcos foi construído na gestão do primeiro governador da Capitania de Goiás (1749-1755), Dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos. Em seu interior, o palácio abriga móveis franceses do século XIX, procelana alemã pintada à mão, pinturas retratando a família real portuguesa, e utensílios do passado. Até 1937, quando a capital foi transferida para Goiânia, o palácio foi a residência oficial do Governo do Estado. Entre seus dezesseis cômodos visitáveis, há um quarto com mobília nacional para o governador, que aí se hospeda entre 24 e 27 de julho, no aniversário da cidade, quando Goiás volta a ser a capital. Tradicionalmente lócus do poder, ligam-se ao Palácio várias histórias da política e da sociedade locais, algumas delas inclusive constam do repertório da visita guiada do museu ali sediado. É, porém, no imaginário popular, que se encontra uma de suas mais formidáveis histórias, a do soldado carajá, contada por Cora Coralina no poema O Palácio dos Arcos (17).

Fachada do Palácio Conde dos Arcos
Foto Eliane Lordello

Ainda seguindo as palavras poéticas de Cora, seus ecos se fazem sentir também no quintal do Museu das Bandeiras, com suas altas mangueiras, de imensas copas, sombreando um poço e uma deliciosa área de descanso. Em um passeio guiado, é aí que termina a explanação sobre a história desse edifício, que originalmente era uma Casa de Câmara e Cadeia, construída em 1761.

Nobre edificação em dois pavimentos, a Casa de Câmara e Cadeia de Goiás, como era habitual nas construções dessa função e tipologia, tinha seu primeiro piso usualmente constituído por espaços prisionais. O segundo destinava-se às audiências e às reuniões da Câmara e do Júri. Seu partido arquitetônico organiza-se de modo simétrico, tendo, ao centro, o corpo de acesso principal, com porta brasonada, culminado por um pequeno campanário (Figura 8). Segundo Silva Telles (18), a considerar o projeto original pertencente ao Arquivo Histórico Colonial de Lisboa, a Casa de Câmara e Cadeia de Goiás sofreu alteração em seu plano, por certo ainda na fase de execução. Atualmente abrigando o Museu das Bandeiras, a antiga Casa de Câmara e Cadeia exibe em seu acervo objetos e utensílios que se reportam à história do garimpo e dos bandeirantes, além de ricos mobiliário, imaginária e prataria.

Museu das Bandeiras, antiga Casa de Câmara e Cadeia
Foto Eliane Lordello

Nessa cidade que valoriza tanto os seus quintais, os jardins públicos também são muito bem cuidados, zelo que vários logradouros de Goiás testemunham, a exemplo da Praça Brasil Caiado, defronte ao Museu das Bandeiras. Também chamada Largo do Chafariz, essa praça forma um amplo jardim cingido por aleias de árvores, margeando o casario. Em seu entorno, está uma bela construção militar do século XVIII, posteriormente chamada Quartel do XX. O nome é creditado ao fato de ter abrigado o vigésimo batalhão do Exército, que lutou na Guerra do Paraguai. Atualmente, o Quartel do XX abriga uma escola.

Quartel do XX, em um trecho das aleias de árvores que circundam a Praça Brasil Caiado
Foto Eliane Lordello

Além de todos os seus já descritos atributos, é no amplo jardim que viceja na Praça Brasil Caiado, que reside, majestoso, o Chafariz de Cauda, hoje tornado apenas monumento, por não mais verter água. De formação parietal, o chafariz tem frontaria emoldurada por adornos em todo o seu contorno. Sua parede central apresenta um florão e é encimada por frontão delineado por curvas e contracurvas. Cora Coralina graceja carinhosamente com a antiguidade desse chafariz no texto No Gosto do Povo (19). Nesta crônica, que começa pela afirmação brincalhona de que “tudo em Goiás é velho”, Cora reserva ao monumento a seguinte fala: “o velho chafariz, esse então é monstro sagrado. Dito pitorescamente, Chafariz de Cauda.”

Chafariz de Cauda, vista posterior, destacando a cauda
Foto Eliane Lordello

Frontaria do Chafariz de Cauda
Foto Eliane Lordello

Outro espaço público que repercute o gosto da cidade pelo verdor dos quintais e jardins é a Praça do Coreto. Por sua centralidade e pelas atividades de turismo e lazer que em torno dela se instalaram, a Praça do Coreto é o espaço de encontro por excelência da cidade. Contornam-na construções religiosas e laicas. Entre as religiosas, estão a Catedral de Sant’Ana e a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte.

Praça do Coreto
Foto Eliane Lordello

A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (Figura 13) tem frontispício com frontão trabalhado de modo erudito, destacando-se no acervo da cidade, que, tanto no plano religioso, quanto no laico, prima pela simplificade. No interior, sua nave tem plano octogonal, e é de sua porta principal que sai, anualmente, na quarta-feira de trevas da Semana Santa, a Procissão do Fogaréu. A igreja, no entanto, desativou suas funções religiosas após incêndio ocorrido em 1921. Reaberta em 1968, passou a abrigar o Museu de Arte Sacra, cujo acervo conta com peças litúrgicas de prata dos séculos XVIII e XIX, e imagens sacras do artista José Joaquim da Veiga Valle (1806–1874). O acesso ao Museu de Arte Sacra dá-se pela lateral da antiga igreja, onde, em um jardim, desponta o belo campanário de madeira. O dobre de seu sino foi referido por Cora no texto em prosa Sinos de Goiás.

“A cidade acorda com os sinos... são as matinas. A do Rosário avisa com 23 pancadas. A Boa Morte, quando o sineiro está em dia, responde com 94 badaladas. Trindades ao meio-dia e vésperas pela tarde” (20).

Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte com seu campanário e jardim lateral
Foto Eliane Lordello

Na parte laica do entorno da Praça do Coreto destaca-se o belo casarão da antiga Real Fazenda (Figura 14). Originalmente particular, o casarão pertencia a Domingos Lopes Fogaça, de quem foi adquirido, por ordem real, no ano de 1773. Passando a funcionar como sede da Real Fazenda, abrigou as atividades de arrecadação, controle e guarda do imposto sobre a mineração. O ouro do imposto arrecadado era armazenado em seu pavimento térreo, numa sala fortificada por revestimento em pranchas de aroeira.

Casarão da Real Fazenda
Foto Eliane Lordello

Os quintais, jardins, praças, casario e igrejas antes descritos formam uma pequeníssima mostra dos vários atrativos da cidade de Goiás. Há muito mais a citar. Por exemplo, as Igrejas de São Francisco de Paula e a de Nossa Senhora da Abadia, ambas ostentando forros pintados. A de São Francisco de Paula, assente no cume de uma pequena colina, foi construída em 1761 (Figura 15). Seu forro ostenta pintura do século XVIII, na qual são retratadas 21 cenas da vida de São Francisco. Essa pintura é atribuída ao artista local Antônio da Conceição. A igreja possui também duas obras de Veiga Valle: uma imagem de São Francisco e outra de São José de Botas.

Igreja de São Francisco de Paula
Foto Eliane Lordello

A igreja de Nossa Senhora da Abadia (Figura 16), foi construída em 1790, pelo padre Salvador dos Santos Batista, com esmolas do povo, segundo consta em painel exposto em seu interior, sobre o seu mais recente restauro. A igreja foi construída com paredes externas de taipa de plião, e internas de adobe e pau-a-pique. Apresenta plano octogonal no interior da nave e teto em abóbada de berço, cuja pintura foi destacada por Silva Telles como uma das mais importantes da área goiana. Os pisos da nave e do coro são em madeira. Na capela-mor, o piso é formado por uma parte de madeira e outra de mezanela. Na sacristia e no consistório, os pisos são revestidos em mezanela. O resultado de tal combinação de materiais de piso, em conjunto com o teto em madeira ricamente pintada é um interior de tratamento cromático reconfortante, convidando a uma demorada permanência contemplativa.

Igreja de nossa Senhora da Abadia
Foto Eliane Lordello

Figura 16 – , outubro 2010
Foto Eliane Lordello

No acervo laico, entre outros atrativos, ainda há que mencionar o Mercado Municipal, o singelo casario; e, por sua excelente programação, o Cine Teatro São Joaquim, em pleno funcionamento, com agenda semanal de filmes. Mas o espaço deste texto é curto para tudo o que merece destaque nessa cativante cidade, e já é tempo de falar de corais.

O êxito de um evento de corais na cidade de Goiás é algo que já parecia ser previsto por Cora Coralina, no texto Sinos de Goiás, que enaltece a acústica da cidade. Para aquilatar o poder dessa predição, deixemos falar a poetisa.

“Na acústica poderosa da cidade – aninhada no convexo dos vales – sinos, rádios, transmissores, ampliadores e até o canto dos galos, nas madrugadas enluaradas, têm uma sonoridade maravilhosa que não pertence a nenhum outro lugar” (21).

De fato, confirmando as palavras de Cora sobre a sonoridade especial de Goiás, o evento de corais da cidade é um sucesso. Já na sua sexta edição em 2010, quando participei de sua plateia, o Encontro de Corais da Cidade de Goiás Darcília Amorim, teve extenso programa. O encontro reuniu um copioso número de corais, das mais variadas procedências, povoando a cidade de coralistas e turistas, do Brasil e do exterior. Os grupos se apresentaram em diversos espaços da cidade, tais como igrejas, adros, largos e cinema. Diante de tão vasto programa, dificílima se torna a tarefa de estabelecer um recorte para o curto espaço deste texto. Não ambicionando, portanto, abarcar o todo, tampouco visando eleger este ou aquele grupo ou performance, destacarei, aqui, apenas duas, das várias apresentações que presenciei.

Coral da Unb, no evento Coral com pôr-do-sol
Foto Eliane Lordello

A primeira delas é o memorável evento Coral com Pôr-do-sol, que, como o próprio título indica, conta com a divina participação solar. A apresentação teve por palco o adro da Igreja de Santa Bárbara. Situada no topo de um outeiro, a igreja tem em seu adro um incomparável mirante da cidade. A abertura desse programa se deu com uma declamação feita por intérpretes posicionados nas janelas da pequena igreja. O texto interpretado era uma prosa evocando tradições, costumes e personagens típicos da cidade de Goiás. Finda essa bela abertura, iniciou-se a apresentação dos vários corais, ali reunidos diante de uma reverente plateia, disposta de modo despojado em torno do adro, naquele rosado fim de tarde.

Maestro Éder Camuzis regendo o Coral da Unb no Cine Teatro São Joaquim
Foto Eliane Lordello

O evento contava com programação diurna e noturna. Tendo já destacado o Coral com Pôr-do-Sol, programa entre o dia e a noite, cumpre agora evocar uma apresentação noturna. Ocupando locais abrigados, tais como as igrejas e o Cine Teatro São Joaquim, as atrações noturnas podiam se valer também da participação de instrumentos acústicos e eletrônicos, para acompanhar os corais. Assim aconteceu na noite de 11 de outubro, quando, no Cine Teatro São Joaquim, reuniram-se diversos corais, como parte do programa intitulado Apresentações Oficiais. Nessa ocasião, os vários corais apresentaram-se com acompanhamentos diversificados, tais como percussão, piano, teclado, e cordas. O Coral da Unb, por exemplo, contou com uma participação ao piano da coralista e pianista Elisa Silveira. Em outro instante, o mesmo coral, ao interpretar a música Garota de Ipanema, teve o seu próprio maestro, Éder Camuzis, no acompanhamento ao violão.

Pianista e solista Elisa Silveira, na apresentação do Coral da Unb, no Cine Teatro São Joaquim
Foto Eliane Lordello

Um coral é um agente sonoro coletivo, constituindo, por si só, uma associação fortemente agregadora. Sediar um evento de corais, portanto, é abrigar comunidades musicais, dando-lhes visibilidade. Ao assim fazer, a cidade de Goiás fortalece, ao um só tempo, a música, o canto, e o pensamento comunitário, estendendo-o também às comunidades, agremiações e coletividades locais. Além disso, ao promover um programa como esse, a cidade dá corpo a recomendações expressas em cartas patrimoniais, pelo bem do conhecimento e da conservação de seu acervo. E é louvando a existência do Encontro de Corais da Cidade de Goiás Darcília Amorim, que mais um atrativo cria para essa já tão interessante cidade, que termino este texto. Por fim, convido a todos a, seguindo o curso do Rio Vermelho, percorrer quintais e ouvir corais (22).

notas

1
Cf. UNESCO, Patrimônio mundial no Brasil. 3. ed. Brasília: UNESCO, 2004; e ______. Historic centre of the town of Goiás. Disponível em: <http://whc.unesco.org/en/list/993>. Acesso em: 15 ago. 2011; TELLES, Augusto Carlos da Silva. Atlas dos monumentos históricos e artísticos do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/DAC, 1975.

2
IPHAN. Centro Histórico de Goiás. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12800&retorno=paginaIphan>. Acesso em 22 jun. 2007.

3
UNESCO, Patrimônio mundial no Brasil. 3. ed. Brasília: UNESCO, 2004, p. 290.

4
Tradução nossa. No original: Criterion ii: In its layout and architecture the historic town of Goiás is an outstanding example of a European town admirably adapted to the climatic, geographical and cultural constraints of central South America. Criterion iv: Goiás represents the evolution of a form of urban structure and architecture characteristic of the colonial settlement of South America, making full use of local materials and techniques and conserving its exceptional setting. Disponível em: <http://whc.unesco.org/en/list/993>. Acesso em: 15 ago. 2011.

5
CORALINA, Cora. Villa Boa de Goyaz. 2. ed. São Paulo: Global, 2003, p 31-32.

6
Para conhecer as imagens do interior do quintal e da casa, ver o site oficial da Associação Casa de Cora Coralina. Disponível em: http://www.casadecoracoralina.com.br/home.html. Acesso em: 15 fev. 2011.

7
BACHELARD, Gaston. A terra e dos devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 20.

8
TAHAN, Ana Maria. Aventureira e libertária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jan. 2002. Caderno B, p. 2.

9
Idem, ibidem, p. 2.

10
CORALINA, op.cit., nota 5, p. 105 -109.

11
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 23. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 44-48.

12
CORALINA, op. cit, nota 5, p.11-12.

13
BACHELARD, op. cit., nota 7, p. 16-19, grifo nosso.

14
BACHELARD, op. cit., nota 7, p. 21.

15
CORALINA, op. cit., nota 5, p. 27.

16
CORALINA, op. cit., nota 11, p. 120-124.

17
CORALINA, op. cit., nota 11, p. 156-157.

18
TELLES, Augusto Carlos da Silva. Atlas dos monumentos históricos e artísticos do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/DAC, 1975, p. 283.

19
CORALINA, op. cit., nota 5, p. 73-75.

20
Idem, ibidem, p. 13-16.

21
Idem, ibidem, p. 13-16.

22
Eu agradeço a Auria e ao receptivo povo de Goiás. Agradeço ao colega da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES), Miguel Manhães, pela fotomontagem da Figura 2 deste texto. Também na FAPES, agradeço de coração à Assessora de Imprensa, Ana Luiza Freitas, por todo apoio. A todos, muito obrigada!

sobre a autora

Eliane Lordello é Arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) na área de Teoria e Projeto, Doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008), na área de Conservação Urbana. Pesquisa, sobretudo, os seguintes campos: Memória e Patrimônio Urbanos; Representações Sociais de Arquitetura e Cidade; Poéticas Visuais de Arquitetura e Cidade. Atualmente é analista de projetos e pesquisas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES).

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