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architectourism ISSN 1982-9930

Agra Fort, Agra, Uttar Pradesh, Índia. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Texto registra visita feita por Guto Lacaz e Takashi Fukushima ao professor Flávio Motta (02/10/1923 – 08/07/2016) no dia 9 de abril de 2004. Sua publicação é uma homenagem ao intelectual, falecido recentemente, aos 92 anos de idade.


how to quote

LACAZ, Guto. O professor Flávio Motta e a Coca-Cola. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 112.06, Vitruvius, jul. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.112/6114>.


Guto Lacaz e sua poderosa Lança de Ogum contra o cavaleiro Flávio Motta e sua bengala encantada
Foto Paula Motta

Há muito ouvia falar do professor Flávio Motta, de sua sabedoria, do encanto que exercia sobre seus alunos e da forma pessoal como abordava os assuntos e citava fontes. Primeiro, foi na década de 1970, quando eu cursava a Faculdade de Arquitetura de São José dos Campos e ele pintou os pilares do Minhocão com Marcello Nitsche.

Depois, na década de 1980, através de Rafic Jorge Farah, ex-aluno do professor na FAU USP. Farah me narrou uma emblemática passagem com o mestre. Estava ele parado na rampa da FAU, observando grande manifestação no salão Caramelo em oposição à ditadura militar vigente no país. O professor passa e para ao lado dele, observa a cena e diz: “Farah... a maior subversão é ser”. Em seguida continua sua caminhada (isso é com o Farah; não me lembro). Mas, convenhamos, é uma tirada aceitável, vide Hamlet.

Na década de 1990 quem narrou seus encontros com o professor foi o colega Marcelo Cipis. Flávio Motta contou para ele uma passagem ocorrida na casa de Lina e Pietro Maria Bardi no Morumbi. O casal recebia o artista Saul Steinberg, em visita ao Brasil (com a chuva, os vidros da casa embaçaram e se transformaram em efêmero suporte para Saul Steinberg realizar um desenho com o dedo indicador, a figura de uma mulher nua, junto a uma coluna grega; devido ao calor da lareira, na “Casa de Vidro”, o desenho começou a escorrer, verteu-se em lágrimas. Foi a maior tristeza daquela noite inesquecível. Choramos de rir).

Agora, uma garrafa de Coca-Cola realiza o antigo sonho de conhecer o professor... O filho de Takashi Fukushima me convida para a festa surpresa que organizou para o aniversário de seu pai. Durante a festa, Takashi me mostra uma garrafa de Coca-Cola que havia ganho, vinda do Egito. Me fala de sua admiração pelo produto e de sua coleção de garrafas e latas. Logo me lembro de uma garrafa que tinha recebido para fazer um stand, que nunca saiu do papel. Era uma edição especial em plástico prateado. Antes de dizer que possuía tal raridade e que iria presenteá-lo, tomo o cuidado de localizá-la. Uma vez encontrada, ligo para o Takashi e deixo recado dizendo que a garrafa era dele.

Dias depois ele me liga agradecendo e disse estar vindo do ateliê de Luiz Paulo Baravelli, onde realizou entrevista para sua tese sobre o ensino de desenho. Me diz também que a próxima entrevista agendada era com o professor Flávio Motta. Logo me adianto dizendo que queria aproveitar a oportunidade para conhecê-lo. Takashi gentilmente aceita minha intromissão e comunica ao professor minha presença no encontro e ele responde que eu seria bem-vindo e que conhecia meu pai.

Quando chegamos, o professor ainda não havia retornado do almoço e quem nos recebe é sua filha Gule, que eu conhecia de passagens pela Pinacoteca e pelo MAC. Começamos a observar as muitas pinturas, desenhos e objetos na casa neocolonial na rua Bartira, próxima à PUC, onde mora.

Logo chega o professor e nos cumprimenta sorrindo. Carrega uma pequena sacola feita com um pedaço de manga de camisa, onde leva seus remédios e utensílios para sua higiene pessoal, e se queixa do desconforto pós-operatório. Takashi o presenteia com o belo livro que fez por ocasião da exposição de seu pai Tikashi Fukushima na Pinacoteca, em 2001.

Flávio Motta pega o volume com carinho e nos sentamos para que ele o observe. O professor começa a folheá-lo, do final para o começo, e chega às reproduções das fotografias de eventos artísticos. Com rapidez, identifica Tomie Ohtake, Walter Zanini, Renina Katz, Takaoka e outros contemporâneos. Admira outras reproduções e mesmo nas pinturas abstratas consegue ver montes, neve e água corrente típicos da paisagem japonesa.

Takashi pergunta sobre a xerox colorida sendo montada em partes sobre a mesa. Ele responde que é uma colagem com retalhos de costura que pegou de uma das filhas. Takashi comenta um certo retrato e ele lembra da história envolvendo Quentin Metsys e Erasmo de Roterdã; este, ao saber que o primeiro comentou ter feito o melhor retrato de si, replicou dizendo que seu melhor retrato eram seus próprios textos! (mas não podemos descartar a possibilidade de estar reproduzido, no Elogio da loucura, uma edição com o retrato feito por Hans Holbein).

O professor pergunta então o que o convidado quer. Takashi fala da tese que está fazendo sobre ensino de desenho e comenta que está entrevistando antigos mestres para uma reavaliação de suas aulas e de seus métodos. Flávio Motta diz que a questão é oportuna e cita o pequeno livro Pincelada Unica, de Shitao, que está lendo no momento.

Traz uma cópia presenteada pelo colega Ferez Koury. Lê pausadamente uma página onde se lê que o pincel é Yin e a tinta Yang. Juntos, quando desenham, colocam ordem no caos. Yang (masculine): tempo. Yin (feminine): espaço (1).

Fala da concentração e da atenção necessárias para desenhar e dos muitos movimentos que o corpo, o braço e a mão podem fazer para descrever trajetórias no papel ou no espaço. Conta a história onde o mestre pede ao discípulo para traçar uma linha entre dois pontos. Feita a linha o mestre diz ao discípulo que ele não havia vivido a linha, que ela carecia de expressão. Falamos da palavra desenho e sua origem, designio, dar nome, designar, ou destino, direção, desejo. Design, draw e draft.

Lê um trecho de Saramago, em A caverna: “toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez” (2).

A seguir, lê citação de Goethe no livro Esboço para um auto-retrato, de Bernard Berenson, que diferencia desejo e vontade. Fala que hoje já se pode realizar o sonho dos alquimistas de transformar mercúrio em ouro (vide Plank). Fala do conceito metafórico de alquimia onde pode se transformar, pelo pensamento, a qualidade das escolhas. Diz que química quer dizer suco, em grego.

Da sala vamos para a salinha. Ali ele tem seu lugar predileto, encostado na parede repleta de pinturas. Diz que se o achássemos feio, poderíamos olhar os quadros. Fala da aula de física, onde seu professor mostrava um raio de luz mudar de cor ao atravessar um celofane. Mais um celofane, uma nova cor. Pede para que o lembrássemos de falar sobre a torção no raio de luz...

Repentinamente, nos sugere desenhar uma estrela de sete pontas. Estudamos sua construção, divisão da circunferência, movimentos, trajetórias, ângulos, formas ocultas e outras estrelas – de quatro, cinco, seis pontas. Com sua lapiseira, nos mostra a construção, o peixe e o vaso nela ocultos.

Desenhamos outras possibilidades de alfabetos e falamos sobre o código binário. Nos conta de um congresso de comunicação na Itália onde representou o Brasil. Nos conta dos livros de Bruno Munari, que apresentam a laranja como se fosse um produto desenhado por designers, e do filme que apresentou no congresso, onde um atleta dá um salto mortal filmado em hiper câmera lenta, acompanhado de trilha sonora (som puro) e quase enervante.

Diz que no congresso – onde estavam Humberto Eco, Abraham Moles, Giulio Carlo Argan, entre outros – só os europeus falavam e que a comissão brasileira resolveu se pronunciar. Flávio Lúcio Lichtenfelds Motta então se apresentou para fazer um pronunciamento sobre comunicação e informação. Disse que comunicação é a ponte entre dois extremos, inclusive fisiológicos, o que arrancou sorrisos na plateia (vide Lógica da vida, de François Jacob).

Apresentando ou comentando um assunto acolhedor em seguida a outro, nos fala do livro de Saramago que conta a história de uma tradicional família de artesãos portugueses, acostumados a uma rotina secular de produzir e vender potes. Até que um dia a loja recusa novas encomendas, pois haviam chegado os novos potes de plástico. O poteiro tem então que decidir por outro produto para manter o negócio. Decide produzir figuras, bonecos...

Nos conta que em estacionamento do bairro soube de um pintor que escreveu LAVA-SE CARRO enorme. Compara a dificuldade e determinação do pintor ao tempo levado para “dar o salto mortal” no filme de Bruno Munari e reproduz lentamente a possível trajetória do pincel, acompanhado de um fiiiiiiiiiiii semelhante à trilha sonora original.

O professor ia ligando uma história em outra, uma citação em outra, de forma poética e anárquica.

Takashi lhe conta de uma biblioteca que visitou na China, onde os livros eram lâminas de pedra gravadas e o frequentador podia imprimir o que desejasse. Diz que sua filha gostaria de escutar essa história e logo vem Paula, que diz já ter conhecimento do fato pelo Rubens Matuck.

Com a presença de Paula, o professor procura o editor do livro Pincelada única. Encontramos na ficha o nome de uma cidade que todos desconheciam. Logo pensamos: trata-se de uma edição portuguesa. O professor sai e logo volta trazendo um grande livro de capa vermelha e apontando nos diz: “cidade portuguesa e também brasileira...”

Enquanto Takashi conversa com Paula, o professor me faz um sinal. Percebe que eu não o acompanho, retorna e toca meu braço para acompanhá-lo. Retira um volume da biblioteca e me mostra uma gravura de Dürer, onde ao fundo da cena aparece um incomum sólido geométrico (a pedra filosofal da “Melancolia”). Pede-me que o identifique, mas não consigo. É um sólido irregular. Flávio me diz: “é um cubo sem dois vértices opostos”. Na mesma imagem, à direita, está o quadrado mágico 34. Ao cortar dois vértices opostos de um cubo veremos dois triângulos invertidos. Disse ele a Mario Schenberg que se um raio de luz entrar no cubo pelo primeiro triângulo, fará um giro de 180º para sair pelo outro. Mario Schenberg sorriu (3).

Ao nos despedirmos, o professor me abraça e diz: “Guto, você já é de casa”.

Nos acompanha pelo jardim, até o portão.

Digo que gostamos muito da conversa e ele retruca: “conversa, sim; não gosto de bate-papo!”

Aconteceu na sexta-feira, dia 9 de abril de 2004, das 16 às 19h.

Guto Lacaz
posted by Takashi Fukushima

Post scriptumA foto foi tirada por sua filha Paula em uma das visitas posteriores. Sempre bem humorado, Flávio Motta me propôs uma luta de espadas – ele com sua bengala, eu com a Lança de Ogum que me presenteou, tirada de seu jardim, plantada por Roberto Burle Marx. Hoje, no meu jardim, protege minha casa.

notas

NA – Este texto foi originalmente escrito a pedido de Takashi Fukushima, para registrar nossa visita a Flávio Motta e anexá-lo a seu trabalho acadêmico. Posteriormente o enviou ao professor para que fizesse a primeira revisão. Sua publicação agora no portal Vitruvius se dá em homenagem ao grande intelectual Flávio Lúcio Lichtenfelds Motta (02/10/1923 – 08/07/2016).

1
Verbete Yin-Yang. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles. Paris, Segners, 1974, p. 414. Ver também: VON FRANZ, Marie-Louise. Time: Rhythmand Repose. London, Thames and Hudson, 1972.

2
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo, Companhia das Letras, p. 84.

3
Foi intensa a troca de correspondência entre nós. Em uma delas encomendei a um maquetista o sólido de Dürer em acrílico e o presenteei. Ganhei dois cadernos de desenhos e muitas mensagens entusiasmadas na secretária eletrônica. Uma delas dizia: “os humoristas atiram mas não é para matar! Millôr Fernandes”.

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112.06 visita inesquecível
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