Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architectourism ISSN 1982-9930

Casa da Dona Veridiana, sala de visita com escultura de Victor Brecheret, Avenida Higienópolis, São Paulo. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Nádia Mendes de Moura nos convida a deambular pelas ruas da Goiás antiga, se perder pelos logradouros, descobrir becos e calçamentos, fazer parte do seu cotidiano, imaginar como as coisas funcionavam em outros tempos.


how to quote

MOURA, Nádia Mendes de. Um passeio pela Goiás de outros tempos. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.02, Vitruvius, fev. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6401>.


Vila Boa é fruto do ouro, no ciclo que se iniciou na primeira metade do século 18. Em seus tempos de arraial, foi batizada como Santana e elevada ao status de vila em 1739, ocasião em que ficou conhecida por Vila Boa. Cerca de dez anos depois, ganhou ares de capital por ser sede da Capitania de Goiás – que havia se desmembrado de São Paulo. Em 1782 recebeu, no governo de Luís da Cunha Meneses, o Prospecto de Villa Boa, que orientaria e reordenaria a ocupação urbana daquele núcleo. Ao longo de tantos anos, a cidade acabou se moldando por vontade própria, mas nada que tirasse o charme típico de Goiás Velho (a propósito, cuidado ao se referir à cidade dessa forma – há quem goste, mas alguns vilaboenses torcem o nariz).

Faço aqui um convite. Deixem o carro para trás. Vamos passear pelo centro conhecendo suas pedras, sentindo o calor típico de Goiás. Para aliviar, um picolé de cajazinho no Coreto ou um banho refrescante de rio nos arredores da cidade. Feche os olhos. Sinta o cheiro do torresmo fritando, o carro de som da pamonha e o barulhinho bom que vem das árvores do quintal ao sabor do vento. O vento pode chegar quente, é verdade. Mas vale a pena. Levante a cabeça, abra os olhos e veja o céu mais azul que você já viu. Ao descer o olhar, certamente vai se deparar com uma igrejinha caiada de branco, contrastando com esse anil sem fim – ou ainda, com a beleza neogótica do Rosário, em sintonia com o exuberante verde dos morros que emolduram a cidade.

Pelos quintais de Goiás, 2015
Foto Nádia Mendes de Moura

Siga à deriva pelas ruas. Permita-se. Perca-se. Descubra os becos. Tropece no calçamento, faz parte. Tente imaginar como as coisas funcionavam em outros tempos. Que tal acompanhar uma festa no século 18 junto ao governador da capitania? Lendo o Diário de viagem do Barão de Mossâmedes 1771-1773 (organizado e publicado em 2006 por Antônio César Caldas Pinheiro e Gustavo Neiva Coelho), é possível imaginar como foram as comemorações da chegada de José de Almeida Vasconcellos Soveral e Carvalho em Vila Boa (o título de Barão veio depois). A festança emendou com os festejos em homenagem à padroeira da vila, que se seguiram ao longo do mês de julho a agosto de 1772, contando com cavalhadas, danças na praça, queima de fogos no dia de Santana e um “grandioso sarau” no Palácio.

Lendo assim, dá até para pensar num suntuoso palácio, mas nesse quesito, vamos combinar, o Palácio Conde dos Arcos deixa muito a desejar. Trata-se de uma adaptação de quatro casas, localizadas na Praça do Palácio (atual Praça do Coreto). No início do século 20, sua fachada adquiriu referências neoclássicas, mas não deixou de lado o ar brejeiro, com sua pequena varanda próxima à Catedral. Desde 1961, uma vez por ano o governador volta a utilizar o palácio como sede provisória do governo estadual, em homenagem ao aniversário da cidade, no dia 25 de julho. No resto do ano, funciona como museu.

Igreja de Nossa Senhora da Abadia em primeiro plano e Igreja de Nossa Senhora do Rosário ao fundo, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Se essa conversa de festa bateu fome, que tal uma pausa para um café acompanhado de bolinho de arroz, lá no mercado? Fica logo ali, às margens do Rio Vermelho. A construção atual é do início do século 20, como revelam as platibandas trabalhadas ao gosto eclético, assim como os elementos decorativos presentes nas colunas, compondo as arcadas. Ampliada ao longo dos anos, contou com remodelação recente, entregue à população, há poucos dias, pelo Iphan.

Ao percorrer a cidade, novas lembranças são evocadas – como aquelas eternizadas pela poetiza mais conhecida de Goiás. Tudo bem, sabemos que Cora Coralina viveu grande parte de sua vida longe da cidade, mas nem por isso seus versos perdem força, rememorando as lembranças de Aninha, a “menina feia da Ponte da Lapa”. Lá pelos seus vinte e poucos anos, seu talento já tinha sido identificado por Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, no Annuario Historico, Geographico e Descriptivo do Estado de Goyaz para 1910. Segundo o escritor, Cora já era a “maior escriptora do nosso Estado”, época em que ela ainda não se aventurava pelos versos, mas contava, “na prosa animada, tudo que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil, harmoniosa, ao mesmo tempo elegante”. E por que não deixar que Cora nos conduza pela cidade da sua infância? Vamos perambulando pelos becos “pecaminosos”, “mal assombrados” ou simplesmente “românticos”...  quase que nos guiando pelas mãos, Cora vai mostrando as “casas encostadas, conversando umas com as outras”, o Rio Vermelho, “vidraça do céu/das nuvens e das estrelas”, e os “morros revestidos/enflorados/lascados a machado/ lanhados, lacerados/queimados pelo fogo”.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário foi edificada na década de 1930, no mesmo local onde ficava a igreja de irmandade negra do século 18, 2000
Foto Nádia Mendes de Moura

Ao ler sua obra, chega uma hora que começamos a achar que Cora vai nos oferecer um doce de figo, feito no tacho de cobre. Bom, sabemos que isso já não é mais possível, mas como sua casa se transformou em museu há alguns anos, podemos tomar uma água fresquinha no porão. Atenção! Cuidado com a cabeça, a viga é baixinha! O madeiramento secular não nega a idade, como a de tantas outras casas implantadas parede-meia, quintal generoso, portas e janelas coloridas obedecendo a um ritmo constante. Ritmo de outros tempos.

Na companhia de Cora, podemos até mesmo adentrar no interior dessas casas, como naquela situada à Rua Direita, onde funcionava a Escola da Mestra Silvina:

Porta da rua pesada,
escorada com a mesma pedra
da nossa infância.

Porta do meio, sempre fechada.
Corredor de lajes
e um cheirinho de rabugem
dos cachorros de Samélia.
À direita – sala de aulas.
Janelas de rótulas.

Veja bem, Cora teve o privilégio de conviver com as janelas de rótulas. Herança moura, trazida à colônia pelos portugueses, resguardava o ambiente interno com seu treliçado de madeira, permitindo a ventilação e a entrada da luz do dia. Pena que não temos mais desses exemplares genuínos do século 18 na cidade (originais, só em Pilar de Goiás). Burchell retratou um belo conjunto de casas com rótulas ao ilustrar a Praça do Palácio em 1828. Casas com as rótulas fechadas, preservando a intimidade da família – que era reforçada pela porta do meio, que dava para o estreito corredor que levava às alcovas e à varanda.

Conjunto da Rua do Carmo, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Noutros tempos, era comum nomear os logradouros de acordo com sua vocação em função da predominância de certas atividades (como na outrora Rua dos Mercadores) ou homenageando determinados personagens locais (caso da antiga Rua do Marinho). Poucos nomes originais resistem, a exemplo do Largo do Rosário e do Beco do Mingu; em outros casos, a nomenclatura antiga se mantém popular, mesmo com a substituição do nome do logradouro, caso da Rua da Cambaúba (atual Rua Bartolomeu Bueno) e da Rua da Abadia (Rua Senador Eugênio Jardim).

Analisando a legenda do Mapa de Vila Boa de 1782, bem como a localização das vias na planta, a toponímia também nos remete aos principais equipamentos localizados nos logradouros, caso da Praça do Palácio (atual Praça do Coreto), Rua da Fundição (Rua Luís do Couto), Praça do Paceyo Publico (Praça Brasil Caiado) ou da Rua Nova do Theatro (Rua do Carmo). Aqui cabe uma observação: o Teatro em questão infelizmente não existe mais, assim como o Passeio Público, que era composto por uma alameda de árvores, em frente ao Chafariz de Cauda. Nomes misteriosos, recorrentes em outros arraiais mineradores goianos, também se fazem presentes na Vila Boa de anos passados, como a Rua do Jogo de Bolla (atual Rua Professor Ferreira). A experiência de transitar pelas vias seria muito mais rica se os nomes antigos também estivessem sinalizados.

A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte sedia o Museu de Arte Sacra. Ao lado, Palácio Conde dos Arcos, também aberto à visitação, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Vamos lá, o tempo é curto e ainda não passamos pelo largo mais grandioso da cidade, capaz de arrancar suspiros até dos mais insensíveis. Assim como os demais largos do centro histórico, a Praça Brasil Caiado (ou Largo do Chafariz, como é mais conhecido) possui planta em formato triangular. Entretanto, nesse largo em especial, o Barroco dá as caras, valendo-se da topografia para criar efeitos cênicos com os principais equipamentos que lá se encontram.

Moradores do quintal do Palácio, 2011
Foto Nádia Mendes de Moura

No ponto mais alto reina absoluta a Casa de Câmara e Cadeia, edificada em 1761. A edificação colonial se distribui em dois pavimentos e, ao que tudo indica, foi um dos poucos projetos da Capitania de Goiás vindos diretamente da Metrópole. No pavimento inferior, estão as janelas gradeadas das antigas enxovias, revestidas internamente com pranchões de madeira, visando dificultar a fuga de presos que por ventura poderiam se aventurar a cavar as grossas paredes de taipa de pilão. O pavimento superior é alcançado por meio de uma suntuosa escada de madeira e nele sediavam-se as reuniões e audiências dos membros da câmara e do juri. O acesso dos presos às celas, por sua vez, dava-se por meio de alçapões no pavimento superior, com escadas retráteis. Tais elementos podem ser observados no edifício, que abriga, desde a década de 1950, o Museu das Bandeiras. O museu comporta ainda um precioso arquivo histórico, com documentos do período colonial e imperial, parada obrigatória de pesquisadores. Em função dos novos usos, a edificação passou por algumas alterações, mas nada que interfira significamente no entendimento da obra original.

Rua da Cambaúba, 2005
Foto Nádia Mendes de Moura

Pensa que acabou? É só olhar para o lado e se deixar arrebatar pelo Chafariz de Cauda, ornado por volutas, pináculos e uma rocaille rococó com uma inscrição apontando o responsável por sua construção, o governador José de Almeida de Vasconcellos Soveral e Carvalho (isso mesmo, aquele do diário que descreveu a festança em Vila Boa em 1772). Esse não era o único chafariz local. Outras fontes também abasteciam Vila Boa, como o Chafariz da Carioca, implantado na outra extremidade do núcleo.

Chafariz de Cauda e Casa de Câmara e Cadeia, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Curioso observar que essa obra suntuosa foi construída em 1778, período em que o ouro já não ditava a economia da Capitania. Por que obras desse vulto – como as igrejas da Boa Morte (1779), do Carmo (1786) e da Abadia (1790), que possuem um elevado padrão artístico, se comparadas às demais igrejas da vila – foram concluídas num período considerado decadente pela historiografia goiana? É um caso a se pensar, concorda? Estou discorrendo sobre essa e outras questões em minha tese de doutorado, que está em curso junto ao programa de pós graduação da FAU USP.

Passagem da Procissão do Fogaréu, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Configurando o espaço de poder por meio de importantes equipamentos – além do harmonioso casario colonial – o Largo do Chafariz ainda comporta o antigo quartel. Assim como ocorreu com o Palácio, o Quartel é fruto de obras de adaptação de diversas casas ocorrida em meados do século XVIII. Ao longo dos anos, passou por usos variados, que acarretaram em transformações no edifício. Todavia, o antigo quartel apresenta atualmente sua fachada “original” militar, composta por um volume central em dois pavimentos, ladeado por volumes horizontais cobertos com telha cerâmica. Destaque para o pátio interno, circundado por agradável varanda.

Vista do pátio interno do antigo Quartel, 2011
Foto Nádia Mendes de Moura

Paulo Santos fez um relato emocionado do Largo do Chafariz em seu estudo Formação de Cidades no Período Colonial. Seguindo na contramão de quem sobe o largo e avista a Casa de Câmara e Cadeia ao fundo do conjunto, o testemunho de Santos (p. 74-75) é de quem está descendo e apreende a paisagem de outro ângulo:

"o piso desce fortemente, da entrada da praça para os fundos; à esquerda fica a casa da Câmara, de aspecto singelo e saborosas proporções; de repente, o espectador depara com um monumental chafariz de formas alentadas, barrocas, e motivos rococós, dos mais grandiosos do Brasil! O choque do contraste é violento: de um lado, o traçado ingênuo do conjunto; do outro lado, a opulência aparatosa do chafariz, que sacode a quietude e placidez do lugar e cria ressonâncias que jamais desaparecem da lembrança de quem uma vez os tenha contemplado".

Igreja de Santa Bárbara e Chafariz de Cauda, 2002
Foto Nádia Mendes de Moura

Esse conjunto é, sem sombra de dúvidas, um dos panoramas mais significativos do Brasil colonial. E a cereja do bolo, claro, fica para o final. Continue descendo a praça e olhe um pouco além, tendo como fundo o Morro do Cantagalo. Lá, distante, caiadinha de branco a contrastar com o verde do morro, avistamos a Igreja de Santa Bárbara. Trata-se da única edificação construída em alvenaria de pedra sabão que se tem notícia. Implantada no alto do morro, as obras foram iniciadas em 1775, e seu acesso se dá por uma escadaria de tirar o fôlego. O templo, de traços singelos, fica a maior parte do ano fechado. Certeza mesmo é que a igreja abre no dia de Santa Bárbara, 4 de dezembro, com direito a missa e quermesse.

Escadaria da Igreja de Santa Bárbara em dia de festa, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Mesmo que a igreja esteja fechada, a subida vale a pena. O adro onde está implantada é um convite para curtir a vista da cidade – e viajar na imaginação. Quantos encontros amorosos essa igrejinha já não presenciou em seu adro? Quantos grupos de amigos já não subiram a escadaria, na calada da noite, munidos de mutamba e violão, e lá ficaram até o sol raiar? Goiás é assim mesmo, as lembranças afloram a cada passo, pelos becos, pelas ruas, pelos adros.

Igreja de São Francisco de Paula na Semana Santa, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

Há quem diga que Goiás parou no tempo, mas a cidade patrimônio da humanidade tem suas fronteiras alargadas para além da zona de amortecimento e dos limites do tombamento federal, revelando uma outra cidade, que carece de atenção. Este artigo se propôs a uma breve volta ao tempo. No entanto, estendo o convite para conhecermos essa outra cidade, contemporânea, tão cidade de Goiás como aquela retratada no centro histórico. Mas esse é um novo passeio, com novas discussões, não menos importantes.

Procissão do Cristo Morto pelas ruas de Goiás, 2008
Foto Nádia Mendes de Moura

sobre a autora

Nádia Mendes de Moura é arquiteta e urbanista, graduada na PUC-GO. Especialista pelo CECRE (UFBA) e mestre pelo PPG.FAUFBA em Conservação e Restauração. Atualmente é doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo na FAU USP, com bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

comments

119.02 viagem cultural
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

119

119.01 ministério do arquiteturismo

Ministério do Arquiteturismo adverte...

Abilio Guerra

119.03 fotonovela

O portão azul

Michel Gorski and Abilio Guerra

119.04 viagem do passado

Biombos Namban do Museu de Arte Antiga de Lisboa

Victor Hugo Mori

119.05 literatura

Rosalina, a florista ambulante

Luís Antônio Jorge

119.06 paisagem natural

Carretera Austral, o caminho das águas

José Tabacow

119.07 crônica

Professoras

Milton Hatoum

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided