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BARTALINI, Vladimir. Reabilitar nossas cidades (editorial). Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 002.00, Vitruvius, jul. 2000 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/994>.

Reabilitar: voltar a ser hábil, capaz. Verbo transitivo...Voltar a ser capaz de que? Falar em reabilitar (ou recuperar, ou revitalizar...) as cidades implica admitir que elas deixaram de estar preparadas para alguma coisa, que houve desvio de alguma finalidade. Seria mais adequado, talvez, falar em finalidades, uma vez que a história e a geografia registram diversos tipos de cidades, servindo a diferentes fins no decorrer do tempo e inscrevendo diferentes formas no espaço.

No entanto, considerando que na próxima virada de século prevê-se que 60% da população mundial estará vivendo em cidades (contra 10% no início do século 20), não é despropósito afirmar que a finalidade da cidade, genericamente falando, coincide com a própria finalidade da história humana.

É claro que sob esta generalização jazem visões conflitantes da história e da cidade. Houve teóricos que chegaram a supor que a finalidade da história, o seu enredo, seria o desenvolvimento da razão. Não de uma razão natural, e sim intrinsecamente humana, que se realizaria no Estado racional, que produziria a síntese conciliatória entre o indivíduo e a realidade social. Neste caso, se o cenário da história é um mundo urbanizado, a cidade racional seria o espaço do ser humano plenamente realizado. Outros teóricos sustentaram que o desenrolar da história não se daria pela busca de uma razão abstrata, ou de qualquer outro "fantasma metafísico", mas por uma ação puramente material, "evidenciada no próprio ato de comer, beber ou vestir-se". E cada indivíduo obterá o que comer, o que beber e com que vestir-se, com o suor do seu rosto e às custas do divórcio entre o que produz e do que se apropria. Mas estes teóricos prometeram uma redenção final quando, graças ao progresso das forças produtivas, chegaria o "reino da liberdade". Como seriam as cidades desse reino, ou antes, haveria cidades nesse reino? Em caso negativo resta-nos aguardar a consumação da História sobre as ruínas do que já foram as cidades. Em caso positivo, teremos que cruzar este vale de lágrimas antes de chegarmos à cidade dos homens, das mulheres, dos velhos e das crianças livres. Abre-se aqui o espaço para a utopia. Não a de uma cidade ideal e estática, um modelo acabado, mas a de uma cidade rica de possibilidades e de realizações, cheia de imprevistos mesmo, como num jogo, mas direcionada por uma vontade moral, que se reconheça como humana, e não entregue a forças cegas, sejam elas naturais ou do mercado.

A pauta da reabilitação das cidades deve estar inscrita numa visão da história, ainda que a relação entre história e cidade não se dê numa simples correspondência entre causa e efeito. A geografia nos ensina que as relações entre sociedade e paisagem são complexas, que as formas possuem uma inércia cujos efeitos se rebatem sobre os processos sociais responsáveis por sua existência, e que elas guardam, na sua materialidade, o "sopro de vida" que as criou e que as faz retroagir sobre aqueles processos.

A ação sobre as formas poderia assim refletir-se, ainda que transmutada por múltiplas mediações, sobre os processos do tempo histórico. É esta a suposição básica da intervenção urbanística. Tal possibilidade é levada em conta pelas mais distintas correntes do urbanismo. Mas é na prática que a questão moral se apresenta. A que, ou a quem atender prioritariamente? As cidades se transformam continuamente (com ou sem intervenções urbanísticas stricto sensu) e neste processo criam-se, adicionam-se ou subtraem-se valores ao seu espaço. Vale aqui refletir sobre a idéia de progresso proposta por uma certa teoria da história: "só há progresso se houver ganho sem perda correspondente" (1). Claro que se trata de uma idéia, talvez irrealizável concretamente, mas ela tem a virtude de não legitimar intervenções brutais, mutiladoras, feitas em nome do "progresso"; ela exige um compromisso com a qualidade, não apenas na área que sofreu a intervenção direta, mas também nos seus desdobramentos em outros setores e lugares.

Mas justo agora (ou talvez por isto mesmo) quando dizer mundo é o mesmo que dizer mundo urbano, quando dizer espaço é o mesmo que dizer espaço urbanizado –com todas implicações deste fato sobre as paisagens "natural", rural e citadina– perderam validade os discursos ou as intenções contidas nos planos e programas que entendiam (e supostamente atenderiam) o espaço urbano como um todo, como um corpo que, devidamente tratado, poderia tornar-se organizado e são.

Desde a década de 70 deste século presenciamos o progressivo esvaziamento das pretensões de agir sobre a totalidade da cidade e, em seu lugar, a criação de programas voltados à recuperação de setores urbanos julgados estratégicos. Houve igualmente um relativo fortalecimento das teses preservacionistas do patrimônio arquitetônico, paisagístico e ambiental, inclusive com a organização de associações voltadas à defesa dos valores de determinadas partes das cidades. Enquanto isto, outras partes da cidade são entregues a sua sorte.

Já se fez a necessária crítica ao modelo convencional do plano diretor, generalista e tecnocrático, que vigorou no Brasil até meados da década de 1980. Já se constatou que ele funcionou sobretudo como instrumento ideológico, como um discurso pretensamente igualitário que era desmentido na prática: os investimentos beneficiavam ainda mais as partes mais ricas da cidade, em detrimento das demais. A crítica a tal modelo foi oportuna e necessária. Planos locais, menos pretensiosos e mais comprometidos com as forças sociais presentes, foram bem vindos. Formularam-se hipóteses, entre elas a de que intervenções localizadas poderiam atuar como indutoras de transformação, irradiando seus efeitos sobre o espaço circundante e mesmo em pontos distantes.

Mesmo sem uma avaliação sistemática dos efeitos "contaminadores" das intervenções urbanísticas sobre seus arredores –evidentemente na hipótese de intervenções positivas, não depreciativas– não é difícil antever o aumento de valor do solo e a possível expulsão dos que ali estavam assentados.

A experiência, já antiga e suficientemente divulgada, de recuperação do patrimônio arquitetônico no centro histórico de Bolonha durante a década de 1970, sem expulsão dos moradores mais pobres, ainda não teve equivalente, em extensão e em complexidade, nem no Brasil e, talvez, nem em outro lugar do mundo. Pois ali, ao mesmo tempo em que a recuperação da parte histórica se efetivava, e integrados no mesmo plano, eram construídos novos espaços habitacionais populares (que nem por isso deixaram de lado a qualidade arquitetônica e urbanística) criando-se assim um estoque de moradias para não pressionar o espaço recuperado, garantindo a permanência dos moradores. O centro reabilitado foi também dotado de equipamentos coletivos correspondentes à organização social local (2).

O "progresso", neste caso, não significou a exclusão de um dos termos: ou bem se preserva o patrimônio, ou bem se mantém os moradores pobres (ou menos ricos). Na maioria das vezes ocorre o contrário, de modo que ficamos habituados ao bombardeio (e o aceitamos de maneira fatalista) de opções excludentes, dos mais diversos teores: industrialização X qualidade das águas (dos rios, dos lagos); habitação popular X qualidade arquitetônica e paisagística; fluência de tráfego X preservação dos tecidos urbanos; iluminação pública (entenda-se fiação aérea) X arborização pública; enfim, "progresso" X preservação dos valores (históricos, arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos, culturais de maneira geral).

Pode-se objetar que, na realidade, e na esmagadora maioria dos casos, é isto mesmo que acontece. Sim, mas o que preocupa é a acomodação nesta situação. Ela justifica qualquer grosseria que saia da boca não só dos políticos mas também dos técnicos. Não é admissível a perda da capacidade de ficarmos descontentes e de expressar o descontentamento.

A questão não termina aí. O que também preocupa é a facilidade com que se lança mão da idéia de intervir em pontos estratégicos das cidades – que, no bom sentido, seriam estratégicos pela possibilidade de desencadear reações em cadeia numa direção mais ou menos determinada, ou seja, com vistas a uma política propriamente dita– com uma finalidade que se esgota no marketing político.

Que se aceite o argumento de que o marketing é necessário. Ao bom governo não basta ser bom, tem também que parecer bom. Mas o que se vê, muitas vezes, é a ação pontual cosmética, no sentido negativo do termo: o de esconder o defeito e, pior ainda, de ser um disfarce de baixa qualidade. Pois se a cidade não é uma obra de arte ela possui ao menos uma dimensão estética.

Valores estéticos são eternos? Não e tampouco universais. Mas há quem abuse da "metade transitória, fugidia, contingente", da arte para intervir nas cidades de modo... deselegante. E elegância sendo sinônimo de graça, não é privilégio desta ou daquela classe, deste ou daquele grupo social, nem se confunde com afetação. Já disse o compositor-poeta que "quando esta preta começa a tratar do cabelo" ela demanda toda sutileza, toda minúcia, enfim, expressa uma graça que não vem do dinheiro, que ela não tem, mas da elegância.

O "bom gosto" é, antes de mais nada, uma atitude, e atitude se toma sobre algo que se possui de modo soberano, ainda que esse algo seja, no extremo, o próprio corpo... ou o cabelo. Há assim um perigo evidente quando, mesmo com a melhor das intenções, o "erudito" projeta visando uma "estética popular". O resultado pode ser um arremedo. Um exemplo: há alguns anos circulou por órgãos da administração municipal de São Paulo a idéia de colorir as casas dos conjuntos habitacionais populares com cores vivas, com o intuito de minorar a extrema monotonia daqueles conjuntos. Ninguém ousaria intervir de maneira tão descomedida e invasiva no Jardim América ou no Morumbi, mesmo que estes bairros fossem considerados monótonos.

Há uma dupla perversidade neste exemplo. Uma é a forma e o conteúdo (ou a falta de conteúdo) da intervenção idealizada, outra, que a antecede e possibilita, é a de banir para estas sub urbis pessoas às quais se subtraiu inclusive a possibilidade de conservar a memória dos lugares em que antes viveram; lugares que talvez tenham sido objeto de algum projeto de "reabilitação" ou de renovação urbana.

É oportuno remeter à apresentação, no Seminário Centro XXI realizado em São Paulo em 1995, da experiência parisiense de tratamento dos passeios públicos da avenida Champs Elysées, por dois motivos: num momento histórico de exaltação do efêmero, de subserviência ao descartável, chamou a atenção que um dos princípios básicos do projeto fosse o de construir algo que pudesse durar "cem anos", com materiais resistentes para tanto e com um apuro e uma discrição formais que comprovam que a intenção do projeto não era roubar a cena e sim ser o "fundo", altamente qualificado, para o desempenho dos atores, ou seja, os homens, as mulheres, as crianças, os jovens e os velhos que por ali transitam, trabalham ou moram. O outro foi o princípio defendido pelos projetistas de que o apuro do desenho e a qualidade dos materiais não deveriam ser exclusivos das áreas ricas da cidade, e sim presentes indistintamente em qualquer espaço público de qualquer parte da cidade. Mesmo que isto não tenha passado de uma boa intenção, é alentador saber que há quem defenda esta postura. Pois o mais comum é ouvirmos, dos que são responsáveis pela contratação de projetos de espaços públicos e dos que os elaboram, que os materiais devem ser resistentes, sim, mas para evitar depredação e livrar os gestores da responsabilidade de manutenção; que o desenho e os custos de execução dos espaços públicos devem ser uns para os locais de mais alta renda e outros para os locais de renda baixa ou de pouca visibilidade.

Não há dúvida de que muito do que hoje admiramos nas cidades foi fruto da violência e da injustiça. As formas, os materiais, o desenho dos espaços e dos seus equipamentos guardam a marca do momento histórico em que vieram à luz. Mas as formas têm uma duração, uma cadência diferente, mais lenta, da dos processos sociais que as criam. E elas podem ser apropriadas para outras finalidades, outros usos que não os originais. Se "a cidade é o que resiste" (3), no sentido de acolher os exilados e os perdedores de todos os tempos e espaços, esta resistência pode estar representada também nas suas formas e nos seus materiais.

A criatividade humana e urbana poderá muito bem adaptar a herança urbanística e arquitetônica às necessidades atuais, e fazê-lo muito bem. Não se trata de "engessar" as cidades, de conservar tudo indistintamente, e sim de conferir aos espaços de expressão da vida pública, da vida coletiva, uma respeitabilidade, um decoro, sem discriminação, sem distinção de lugar, que podem perfeitamente estar contidos no desenho e nos materiais utilizados. Isto vale tanto para os espaços legados pelo passado como para os novos.

E há lugar também para os monumentos, para as obras que já nasceram com tal finalidade e também para as que se tornaram monumentos. Estes têm um fim em si mesmos, não precisam se adaptar a nada. Vale aqui lembrar a postura radical, mas não indefensável, de manter a basílica projetada por Andrea Paladio, em Vicenza, não só com seu aspecto original –o que é uma obrigação– mas também na sua "inutilidade": ela prescinde de adaptações que justifiquem sua existência e sua permanência (4).

Ruínas, remanescentes de mata e cemitérios são outros elementos da forma urbana que resistem, na sua esplêndida "inutilidade", à usura, à avareza, à ganância que quer explorar à exaustão esta obra coletiva que é a cidade.

Na outra ponta da meada coloca-se a questão angustiante: como livrar a preservação de ambientes urbanos da síndrome de Disneylândia? Consomem-se centros históricos, temperados com simulacros de lampiões de gás, quiosques e demais peças do mobiliário urbano relançados em "estilo antigo", e até com serestas. Mas seria injusto negar os exemplos construtivos de valorização do patrimônio ambiental e arquitetônico que vêm ocorrendo em algumas cidades: desobstrução das fachadas dos imóveis nos centros históricos, com o controle dos anúncios comerciais; defesa dos espaços livres públicos com ações não demagógicas para devolvê-los, em bom estado, ao público em geral; adaptação conscienciosa de edifícios antigos a novos usos e funções, e mesmo intervenções mais radicais em imóveis ou ambientes tombados, sintonizadas com uma sintaxe contemporânea que deixa nítidos os limites entre o corpo original e as formas apostas, abrindo um diálogo respeitoso entre o passado e o presente.

A contemporaneidade inscreveu na agenda da recuperação ambiental também os ecossistemas naturais, não só os existentes nos grandes parques nacionais e estaduais, nos recônditos do território, mas inclusive os situados em plena área urbana. Nem se restringem às áreas de proteção ambiental – as APAs – como a do Pêssego-Carmo na região de Itaquera, em São Paulo, e nem sempre estão confinados em redomas que os isolam do mundo a sua volta. Veja-se o exemplo, pioneiro e atual, da recuperação de trechos do mangue e da restinga na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, junto aos empreendimentos imobiliários entre o centro comercial e a lagoa da Barra (5).

Mas em todos os casos persiste a pergunta: reabilitar, recuperar, requalificar para quem? Estas ações não estão imunes à ideologia, no sentido de ocultação da realidade, ou de parte dela. Sobre os centros históricos incidem, não de agora, argumentações, com fortes componentes ideológicos, apoiadas na idéia de "deterioração", ou seja, pela criação de uma "ideologia da 'deterioração', que é uma versão que 'naturaliza' um processo social" (6) ao associá-lo ao envelhecimento inevitável dos seres vivos, com vistas a ocultar o abandono a que foram entregues os centros tradicionais, na medida em que as classes dominantes criavam seus novos centros.

De igual modo, boa parte do discurso em defesa dos remanescentes do "verde" na cidade se aplica sobretudo às áreas de concentração das camadas de alto poder aquisitivo: à arborização, pública ou no interior dos lotes, dos "bairros-jardim" são dispensados os maiores zelos (estão inclusive imunes aos atentados que os podadores das concessionárias de energia elétrica e telefonia praticam nas árvores dos passeios públicos), mesmo porque cumprem uma missão que interessa a todos – e aqui está sua conotação ideológica – qual seja, a de serem os "pulmões" da cidade. Os "pulmões" periféricos, destruídos para que neles se instalassem os aterros sanitários (ou que recebem o lixo, agora sim, de toda a cidade, têm menor notoriedade.

Enquanto houver exclusão, enquanto se expulsar para fora dos muros tudo que não convier aos interesses dos grupos elitistas dominantes, a cidade não terá sido plenamente reabilitada, ou seja, não terá recobrado a sua faculdade original de receber a todos, e de recebê-los bem. Quando puseram em prática a estratégia de criar novos centros exclusivos, num movimento de auto-segregação, as elites dominantes não hesitaram em destruir, ou em deixar que fossem destruídos, espaços públicos de grande significado coletivo e de alta qualidade formal como o jardim da Luz ou o parque Dom Pedro II, no centro de São Paulo, para citar exemplos próximos. Malcheirosos e maltrapilhos não deveriam ferir apenas a sensibilidade dos grupos dominantes, mas também sua consciência porque, se os centros tradicionais são hoje lugares feios, insuportavelmente sujos, ou mesmo perigosos, isto se deve ao seu abandono por estes mesmos grupos.

Reabilitar nossas cidades inclui, além da instauração da justiça social, torná-las novamente merecedoras dos melhores cuidados estéticos. Diga-se logo que isto não significa atopetar as cidades com obras de arte, embora a arte não possa, ou não deva, estar ausente das cidades.

Da vitalidade da arte, da sua capacidade de tocar profundamente as questões urbanas contemporâneas, entre as quais se incluem as ecológicas, dá mostras a intervenção artística dos 7000 Carvalhos, levada a efeito entre 1982 e 1987 pelo artista Joseph Beuys, em Kassel, Alemanha. Descreve-a o filósofo Lucius Burckardt (7):

"Diz o dito popular, muito pertinente, que 'as árvores escondem a floresta'. De fato, não é fácil de ver verdadeiramente uma floresta: uma vez ali, nós percebemos as árvores em torno de nós, alguns troncos, os cimos reunidos sobre nossas cabeças –mas não vemos a floresta. É preciso sair dela e ganhar a planície: veremos então um pedaço de floresta, a orla, mas sem saber se se trata de algumas árvores ou se, atrás delas, a floresta continua e se ali está o começo de uma verdadeira e vasta floresta. São necessários então alguns milhares de árvores –mas pode-se vê-las? Pode-se ver 7000 árvores? Assim, a floresta é um conceito que precisamos representar mentalmente. Somente um mapa nos mostrará se estamos na borda de uma floresta, ou apenas diante de árvores alinhadas numa profundidade de alguns metros. 'Como então ver 7000 árvores, deve ter-se perguntado Beuys, ainda mais numa cidade?'. Entre as ruas, as casas e os jardins, uma floresta é simplesmente impensável. Beuys não chamou a toa sua obra Die Verwaldung von Kassel (8). Como se sabe, ao lado de cada uma destas 7000 árvores, ele fez enterrar, a meia altura, uma barra de basalto. No início deste happening, os 7000 blocos de basalto estavam amontoados, uns sobre os outros, na cidade, na Friedrichsplatz. Todos os habitantes da cidade notou-os e os viu desaparecer. À medida que as 7000 árvores eram plantadas eram também levadas as barras. Assim, em Kassel, perto de nossas casas ou dos nossos locais de trabalho, onde se ergue uma árvore flanqueada de um daqueles blocos de basalto, nós sabemos que ela é uma das 7000. 7.000 árvores, é toda uma floresta. Em Kassel, há também toda uma floresta –mas não foi plantando uma ao lado da outra que ela se tornou visível. Deu um estalo em nós: nós pensamos no número destas árvores. É uma floresta para o intelecto, uma floresta de artifício, uma floresta de arte, mas é a maneira de fazê-la aparecer no ambiente onde vivem os homens de hoje, na metrópole."

Que distância da rasteira jogada publicitária de plantar um milhão de árvores – de fanfarrice só proporcional à sua ineficiência – que há poucos anos acometeu uma metrópole do porte de São Paulo, e que oportunidade desperdiçada de trazer de volta a arte para a vida urbana!

notas

1
Ver HELLER, Agnes. Uma Teoria da História. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1993. O conceito de progresso a que a autora se refere é o formulado por R.G. Collingwood, em The Idea of History.

2
Agradeço a arquiteta Mirthes I.S. Baffi, do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da PMSP, pelas informações detalhadas sobre a experiência de Bolonha que, devido aos limites deste artigo, não foram transcritas. Pela mesma fonte fui informado que, em escala menor, experiências semelhantes foram realizadas em outras cidades italianas.

3
Entrevista ao jornal O Estado de São Paulo do professor-geógrafo Milton Santos, publicada em 22 de abril de 1997.

4
Foi esta, segundo informação da arquiteta-historiadora Donatela Calabi, em sua recente visita ao Brasil, a posição defendida por Manfredo Tafuri, quando da discussão sobre uma possível adaptação da basílica às novas necessidades da vida urbana.

5
Trata-se do empreendimento da construtora Carvalho Hosken que tem o projeto de paisagismo assinado pelo arquiteto-paisagista Fernando Magalhães Chacel. O experimento é pioneiro em vários aspectos. A recuperação do mangue e da restinga, há tempos destruídos pela desatenção secular às sutilezas dos ecossistemas mais frágeis, ensejou a reprodução em viveiros de espécies que normalmente não se encontram no mercado de plantas. O projeto do parque, de 300.000 m², desenvolve-se em faixas com graus decrescentes de permissividade à medida em que se aproxima do mangue, mas não impede que, em locais determinados, se possa atravessar a restinga e chegar à beira do mangue, e desfrutar na intimidade um ecossistema normalmente inacessível ao pedestre. Outro aspecto inusitado é que o parque foi executado antes das edificações, que até o momento não foram iniciadas, devendo estar "maduro" quando os primeiros moradores se estabelecerem.

6
Ver a respeito VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil, São Paulo, Studio Nobel, 1998.

7
BURCKARDT, Lucius. "Esthétique et écologie", in Textes Essentiels - Jardins et Paysages, organizado por Jean-Pierre Le Dantec, Paris, Larousse, 1996.

8
Em alemão, Verwaldung (arborização), remete, por aliteração: Verwaltung (administração) [nota do tradutor francês].

sobre o autor

Vladimir Bartalini é arquiteto, mestre e doutor pela FAU-USP. É professor adjunto da disciplina de Paisagismo na FAU PUC-Campinas desde 1978 e do Grupo de Disciplinas Paisagem e Ambiente da FAU-USP desde 1985. Trabalhou de 1973 a 1977 no Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura do Município de São Paulo e na Empresa Municipal de Urbanização de 1977 a 1984. Desde 1984 presta consultorias em paisagismo para planos e projetos envolvendo áreas verdes urbanas.

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