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FUNARI, Pedro Paulo. Os desafios da destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 005.04, Vitruvius, out. 2000 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.005/970>.

Os desafios da destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil são, provavelmente, pouco conhecidos do público acadêmico internacional e este artigo visa apresentar alguns aspectos dessas questões. Antes de discutir a experiência brasileira, cabe explorar os diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de "patrimônio cultural". As línguas românicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à "propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança". Os alemães usam Denkmalpflege, "o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar", enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito "àquilo que foi ou pode ser herdado" mas que, pelo mesmo processo de generalização que afetou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, "levar a pensar", presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa "pensar’) e aos antepassados, implícitos na "herança". Ao lado destes termos subjetivos e afetivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais econômica e jurídica, "propriedade cultural", comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma "propriedade". Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos atores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto, procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração. Uma abordagem antropológica do próprio patrimônio cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado. A experiência brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do patrimônio, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo.

A preservação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considerado como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indígenas, sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes excepções, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de "progresso", não por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, "ordem e progresso". Desde então, o país tem buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quaisquer que tenham sido os motivos econômicos, sociais ou geopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu patrimônio, em benefício de uma cidade sem passado (Funari, a sair).

Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Patrimônio da Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso à infra-estrutura moderna mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais podem ser completamente reaparelhados, sem danificar os prédios, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça ao patrimônio arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que os ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais. Um problema mais prosaico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manutenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (Lira 1997; Sebastião 1998). Estes três perigos para a manutenção dos bens culturais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa subjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre o povo e as autoridades, a distância que separa as preocupações corriqueiras e o ethos e políticas oficiais.

Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de "sobrados", onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as "casas" e "casebres", "mocambos" (derivado do quimbundo, mukambu, "fileira"), "senzalas" (locais da escravaria), "favelas". O resultado de uma sociedade baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. A Catedral, freqüentada pela "gente de bem", deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos "pretos da terra", não é protegida e é, com freqüência, abandonada.

Neste contexto, não é de surpreender que o povo não preste muita atenção à proteção cultural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua realidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra, com clareza, esta alienação das classes: "eles, que são brancos, que se entendam". Note-se que esta frase é usada também por brancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma distância afeta o patrimônio, pois os edifícios coloniais são considerados como "problema deles, não nosso". Poderíamos dizer, assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalternos.

O patrimônio arqueológico stricto sensu poderia deixar de ser afetado por esta falta de interesse na preservação da cultura material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de indígenas e dos humildes em geral. Entretanto, há muitos fatores que inibem um engajamento ativo da gente comum na proteção patrimonial. Em primeiro lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema. Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de História e, na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados como preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Os índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por séculos e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX, Von Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermínio dos índios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancar o progresso do país e, mesmo que tenha sido desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática da baixa estima dos indígenas, mesmo na academia.

Por fim, mas não menos importante, há uma falta de comunicação entre o mundo acadêmico, em particular a comunidade arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a comunidade, não para ela, dando ao povo uma melhor compreensão do passado e do mundo. Para atingir esses objetivos, pesquisas de largo fôlego não deveriam levar à diversão, mas à integração de processos, como é o resgate de edifícios históricos e a escavação de sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do trabalho científico por meio de diferentes media.

No Brasil, o cuidado do patrimônio sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes. Edifícios de alto estilo arquitetônico, protegidos por lei, são deixados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é amplamente tolerado. Recentemente, Christie’s vendeu uma obra-prima de Aleijadinho. A imprensa está sempre a noticiar a respeito, sem que se faça algo a respeito. A gente comum sente-se alienada tanto em relação ao patrimônio erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a tarefa acadêmica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarregados do patrimônio, no Brasil, é particularmente complexa e contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o patrimônio erudito, como popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como acadêmicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso patrimônio comum. E isto não é uma tarefa fácil.

notas

1
Este texto é parte de um paper apresentado em Brac, Croácia, maio de 1998, World Archaeological Congress Inter-Congress on the Destruction and Conservation of Cultural Property, a sair, na íntegra em inglês, em volume organizado por Robert Layton e Peter Stone (Londres, Routledge).

sobre o autor

Pedro Paulo A. Funari é Professor Livre-Docente do IFCH-UNICAMP, autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, em especial sobre o patrimônio histórico e arqueológico.

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