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VOLKMER, José Albano. Memória cultural e o patrimônio intangível. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 009.02, Vitruvius, fev. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.009/916>.

A política da preservação do patrimônio cultural no Brasil, tanto ao nível da União, como dos Estados e dos Municípios, tem percorrido um caminho crescentemente integrador das iniciativas públicas e particulares. Talvez lento, sob determinados pontos de vista, este processo apresenta tendências de desenvolvimento particularmente peculiar em determinados aspectos, diante de um progressivo movimento de educação e de conscientização das comunidades. Amalgamada por intenso caldeamento de culturas, a sociedade brasileira apresenta um plural mosaico de expressões e de manifestações culturais peculiares aos diferentes grupos étnicos que aportaram ao território nacional, nem sempre se ajustando e muitas vezes se contrapondo à milenar cultura pré-cabralina das nações indígenas.

Os bens de natureza material e imaterial, segundo os dispositivos da Constituição da República Federativa do Brasil, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade, constituem o patrimônio cultural, que todos têm o dever de valorizar, difundir e preservar. Protegendo as manifestações dos segmentos que participaram e participam do processo civilizatório nacional, cada um e todos devem assumir o compromisso de zelar e de promover a memória nacional. De imediato ressalta ao exame mais cuidadoso deste tema, a preocupação da Assembléia Nacional Constituinte em enfatizar claramente, quando da promulgação da nova Constituição em 1988, a identificação do caráter dos bens que são conceituados como de natureza cultural.

Não será difícil constatar, hoje, os benefícios já alcançados pelas iniciativas de valorização e proteção do patrimônio material, no contexto das diversas instâncias da administração pública e das comunidades, pelos esforços empreendidos antes e depois da nova Carta. O mesmo, talvez, não seja possível afirmar com relação ao patrimônio imaterial. Parece estar distanciado da compreensão dos mais amplos setores da sociedade, pela dificuldade de conscientização e de sua percepção por parte das comunidades. No plano educacional, o conjunto dos valores que constituem o patrimônio imaterial tem sido pouco contemplado, até por ser difícil a verificação do grau de percepção que as comunidades e os cidadãos têm a respeito de seu papel na gestão do processo de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro. As dificuldades de contemplá-lo, prioritariamente, nos planos e programas de governo, bem como nas ações da iniciativa privada, têm retardado a sua inclusão dentre as medidas de proteção do patrimônio cultural.

O tema, por ser recente a sua consideração na política cultural em nosso meio, requer um aprofundamento dos estudos, das reflexões e das práticas que vêm sendo desenvolvidas sobre o "patrimônio imaterial" ou "patrimônio intangível", pois implica no entendimento do seu significado para a "memória cultural". Para muitos certamente são imperceptíveis os aspectos relativos às formas de expressão, aos modos de criar, fazer e viver, às criações artísticas, científicas, tecnológicas, dentre outros, de acordo com os sentimentos e os seus significados, face aos valores imateriais aceitos por alguns segmentos das comunidades. Dependendo, quase sempre, dos estágios de desenvolvimento cultural e educacional de um grupo social, o patrimônio intangível, por outro lado, passa a ser de grande valor e peso nos processos de avaliação da comunidade, cumprindo um papel significativo nas políticas culturais.

Os documentos e os objetos têm uma relação direta com os interesses ligados aos sentimentos, aos significados simbólicos e aos valores não só materiais, mas intangíveis, que possam despertar nas comunidades e nas pessoas. As obras de arquitetura, de urbanismo, de paisagismo e os espaços destinados às manifestações artístico-culturais podem ganhar uma expressão menor ou maior para o povo, dependendo do ponto de vista sobre quais funções poderão desempenhar, enquanto representem símbolos ou signos idealizados já vividos, ou que possam ser vivenciados no futuro. Assim, muitas edificações e espaços abertos poderão ser considerados como passíveis de preservação, ou serem relegados à decadência física, inviabilizando-os à sustentabilidade e à sua reutilização para fins estéticos, poéticos, artísticos ou comerciais e turísticos. Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, botânico, paleontológico, arqueológico, ambiental e científico podem adquirir uma dimensão além de suas expressões puramente materiais, para se converterem em habitats que representem aspirações de poesia, de arte, de religiosidade, de contemplação, de transcendência, ou de prazer, de beleza e de emoção.

Assim os valores intangíveis podem cumprir papéis importantíssimos no processo de desenvolvimento cultural do povo, pelo significado de seus desempenhos no contexto das aspirações de grupos sociais e da comunidade. Os mitos, os sonhos, as idealizações, a sabedoria popular e o imaginário coletivo, para citar alguns exemplos, não poderão ser deixados de lado no exame das potencialidades e da riqueza do patrimônio imaterial da sociedade, pelo papel simbólico que poderão cumprir. Também outras formas de identificação dos elementos portadores de valor sensitivo, podem conduzir à percepção de signos emblemáticos, como uma paisagem em dia de tempestade ou um pôr do sol, observados por um taciturno agricultor, ou por um jovem estudante secundarista da região metropolitana de São Paulo.

Abstraindo-se a materialidade imanente aos bens culturais tangíveis, o homem tem a virtude de imantá-los de conteúdos imateriais, que não podem deixar de ser contemplados nas abordagens deste tema, por indispensáveis à política de promoção da cultura. Não devem ser excluídos, portanto, dos programas de preservação e das medidas de acautelamento na defesa e proteção do patrimônio cultural. Tais ações e iniciativas são imprescindíveis garantias para as gerações futuras, que têm o direito à fruição dos bens portadores de conteúdo emocional, estético, plástico e sentimental. Inebriados, pois, de valores intangíveis, integram-se ao patrimônio dos bens portadores de conteúdo histórico e cultural mais palpáveis e perceptíveis pela sua materialidade, suficiente para a mais simples das compreensões.

Em muitos casos, só é possível conhecer a sensibilidade das pessoas para a valorização do patrimônio intangível, quando se tem a capacidade de nelas despertar os sentimentos e sonhos fundamentais como a beleza, o encantamento e o prazer, que sem dúvida são valores universais. Desta forma, pela sensibilização dos sentimentos e pela prática educativa e cultural, a valorização do patrimônio imaterial pode transformar os bens de valor local ou regional, em bens de valor universal, dependendo da capacidade criativa de interpretá-los na ótica da universalidade de seus elementos. Assim, portanto, um mito, um ídolo, um sentimento, uma epopéia de valor peculiar à uma determinada comunidade, podem se transformar em bens de interesse supralocal, passando a se perpetuar e a se integrar ao patrimônio cultural da comunidade nacional e internacional.

Resulta, pois, a partir desta análise, destacar a importância dos estudos e das pesquisas, que permitam inventariar e registrar o conjunto dos bens do patrimônio material e imaterial, indissociáveis e indispensáveis para a coletividade. Os valores amalgamados pela aculturação dos povos indígenas com os europeus, os heróis locais e nacionais, a figuras legendárias, os sítios da colonização, das frentes pioneiras e dos quilombos, que produziram histórias do cotidiano e poemas heróicos e épicos do processo de ocupação dos novos territórios e suas manifestações culturais, constituem-se, sem dúvida, em elementos passíveis de serem incorporados aos programas e projetos da política cultural brasileira. As lendas constituem-se em temas para eventos a serem encenados, por exemplo, em espaços públicos ou em casas de cultura sediadas em prédios históricos reciclados, intencionalmente concebidos para se ajustarem às manifestações de literatura e das artes.

Os sítios históricos devem integrar o acervo patrimonial brasileiro, pela sua importância arqueológica, arquitetônica, urbanística e paisagística, como podem interessar para o cinema, para o teatro, para as artes, assim como para o turismo cultural. As experiências humanas de construção de um novo modelo contemporâneo de vida e de uma nova sociedade, do desenvolvimento científico e tecnológico, através de empreendimentos materiais como a construção de hidrelétricas, que atraem um inestimável número de empregos para migrantes, muitas vezes, de uma região para outra, de um continente para outro, são potencialmente portadoras de inestimáveis valores do patrimônio imaterial destas populações. As associações de bairro, as organizações da comunidade e as instituições da sociedade são, também, importantes segmentos sociais que trazem inumeráveis contribuições aos modos de fazer, de reunir, de produzir e de se expressar, que não podem ser excluídas das políticas de promoção e valorização do patrimônio cultural. Os sentimentos que potencializam e estimulam, por exemplo, as políticas de desenvolvimento do turismo cultural, ecológico, esportivo, de aventura e de lazer, impregnam o patrimônio material de valores intangíveis, sem os quais não seriam os bens usufruídos por contingentes cada vez mais expressivos.

O Brasil detém potencialidades inestimáveis na área do patrimônio cultural e ambiental, caracterizadas pela pluralidade das expressões mais diversificadas das manifestações dos seus diferentes grupos formadores da sociedade brasileira contemporânea. Todas as instâncias da administração pública, das universidades, das escolas, das empresas e das comunidades têm, portanto, a responsabilidade de prover pelo desenvolvimento e pela preservação da memória cultural, cujos bens precisam ser inventariados e prestigiados. O que tem sido feito talvez não seja o bastante, para o mais completo empreendimento que a todos convoca. Importa a conscientização e a tomada de posição, para que as administrações municipais, estaduais e nacional assumam o compromisso de arregimentar todos e quantos poderão se engajar neste movimento pelo resgate de muitos valores que estão sendo relegados a um segundo plano, ou estão sendo irremediavelmente esquecidos ou perdidos.

Evidentemente, as políticas de educação e cultura não poderão olvidar os aspectos que, muitas vezes por desconhecimento, desaviso ou omissão, são preteridos em diversas comunidades em suas ações de planejamento e programação cultural, tornando-as vulneráveis às influências que podem descaracterizar os valores locais, em detrimento de imposições externas. Trata-se, neste caso, da transferência de valores de uma cultura para outra, da influência que pode gerar dominação ou intromissão indevida ou das resistências às mudanças, fechando-se às benéficas contribuições da integração cultural, da sustentabilidade e do estímulo ao mútuo convívio. Por isso, devem ser estimulados os debates que conviriam ser introduzidos sobre as questões relacionadas à aculturação e à preservação do caráter peculiar da cultura local. Este tema tem sido já estudado, mas talvez não tenham sido esgotadas as avaliações dos aspectos sociológicos, antropológicos e histórico-culturais, para citar um exemplo, da transferência de valores europeus para a América, na área das letras, das artes, da tecnologia ou da arquitetura.

No caso da propaganda comercial para a expansão do turismo receptivo, muitas comunidades estimulam, em suas cidades, a produção hoje de uma arquitetura, que busca imitar, ou se identificar, com a arquitetura da região dos Alpes, por exemplo, ou da Suíça, Baviera ou da região mediterrânea na Europa. Ilusória, para uns, realista para outros, por estimular o crescimento do comércio, da indústria e do turismo receptivo, a denominada arquitetura de enxaimel de influência bávara vem sendo fomentada na região serrana do Rio Grande do Sul, no Vale do Itajaí em Santa Catarina, em Campos do Jordão em São Paulo, dentre muitos casos, como uma marca, um símbolo emblemático de um produto que está sendo vendido cada vez mais intensamente. Leis municipais de incentivos fiscais e urbanísticos têm sido aprovadas para estimular a construção de obras de arquitetura discutível, pela sua plasticidade falsificada sob a forma de pastiche. É uma verdadeira colagem, em nosso meio, de uma arquitetura que não é brasileira, nem afeita à nossa paisagem e aos nossos valores culturais. É tal a expectativa de alcançar o sucesso, através da criação de um ambiente urbano, arquitetônico e paisagístico com aparência bávara, suíça, austríaca, tirolesa, ou simplesmente alpina, que qualquer aproximação com o chamado estilo enxaimel europeu é suficiente para proporcionar a redução ou a isenção dos impostos sobre a propriedade, bem como os estímulos urbanísticos dos Planos Diretores para a intensificação da construção.

É preciso, pois, uma certa cautela e o aprofundamento dos estudos sobre a produção destes elementos ilusórios que distorcem a realidade, que geram um imaginário de contos de fadas, que produzem o pastiche. Tais fatos não ocorrem apenas na arquitetura, mas em todas as manifestações culturais. É preciso buscar a superação das contradições entre verdadeiro e o falso, entre a imitação e o autêntico, da importação de valores ou da produção local. A cópia é um gesto fácil. Indispensável é a busca da identidade própria dos valores culturais de cada região, de cada lugar, de cada sítio ou manifestação de cultura. A cultura deve ser expressão do fazer humano, diante dos valores e dos meios de produção, diante das características locais e do meio ambiente, dos modos de viver e de suas influências. Importa, todavia, a criatividade no ato de adaptar, ajustar, de gerar novas soluções peculiares, diferentes e próprias de cada lugar. É fundamental o desenvolvimento de ações específicas que resultem num esforço de integração entre as artes, da arte com a técnica, dos valores humanos com a sensibilidade plástica, dos condicionamentos ambientais com os valores locais. Podem ser aproveitadas, sim, as contribuições criativas de fora, que trazem cultura, que enriquecem o repertório, a tecnologia, o conhecimento, que estimulam o desenvolvimento, não com a simples transposição, mas com a perspicaz adaptabilidade para a produção local das novas contribuições à cultura. Também devem ser valorizadas as contribuições que podem ser levadas para fora, num intercâmbio profícuo e enriquecedor de convivência, equilíbrio, cooperação e apoio mútuo.

Os diversos órgãos da administração pública na área do patrimônio cultural detém o inestimável instrumento de congregação de técnicos, de especialistas e de dirigentes culturais. Agentes diretos dos processos de gestão do patrimônio cultural, ao nível das comunidades locais, regionais, estaduais e nacional, estas organizações e suas representações poderão fomentar a realização de inúmeros fóruns sobre estes temas relacionados aos valores materiais e imateriais, passíveis de salvamento, resgate, proteção, preservação e difusão do patrimônio cultural riograndense. Por seu turno, os municípios dispõem, basicamente, de todos os instrumentos que a administração pública pode dispor para a gestão pró-ativa da preservação do patrimônio cultural. Tal evolução coloca ao alcance das comunidades locais os mais avançados mecanismos de gestão, dentro das limitações conjunturais que condicionam a prática administrativa. Somados estes esforços aos do Estado e da União, de forma integradora e compatível com o desenvolvimento da nacionalidade, a política cultural necessitará de um esforço de complementaridade e de adoção do princípio da subsidiariedade na gestão da administração pública. Isto quer significar, noutros termos, que não deve a União fazer o que o Estado possa fazer melhor. Não deve o Estado fazer o que os Municípios puderem melhor realizar e não devem os Municípios empreender o que a comunidade e as organizações sociais puderem melhor concretizar.

Há, contudo, a necessidade de intensificar a organização e a associação das comunidades municipais e microrregionais, na área da cultura e da proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural. Tais práticas poderão ser alcançadas mais adequada e urgentemente por outras formas de organização associativa e gremial dos municípios, na medida em que o movimento de estímulo à cooperação puder promover a elaboração de um Código de Ética e de Coexistência na conservação de sítios, dos bens de valor histórico, artístico, documental e do patrimônio cultural, representativos de todas as contribuições sócio-culturais das comunidades. Coexistência, sim, das diversidades no reconhecimento dos valores de cada grupo e das exigências de compreensão, cooperação e colaboração, que a ética na política cultural requer na prática da conservação do patrimônio. Indispensável se torna, pois, o esforço dos mais amplos segmentos da representação das comunidades municipais, para a mobilização em favor do desenvolvimento de uma política de princípios e de práticas que identifiquem os valores sociais. Prioritário é o reconhecimento da valorização do patrimônio sócio-cultural na gestão do planejamento municipal e na implementação do processo de execução da política cultural, com a co-participação das comunidades, sem exclusões e estimulando o fortalecimento do caráter peculiar e o compartilhamento de todas as manifestações dos grupos formadores da sociedade brasileira, ampliando e intensificando, desta forma, a construção da memória cultural.

sobre o autor

José Albano Volkmer é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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