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arquitextos ISSN 1809-6298


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FUÃO, Fernando Freitas. A casa da flor. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 012.02, Vitruvius, maio 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.012/888>.

                               I

Surpresa e excitação: sentimentos ao conhecer a Casa da Flor que me fizeram refletir sobre a poética dos pequenos espaços e sobre a grandiosidade da criação.

Os esforços da professora e pesquisadora de arte popular Amélia Zaluar, que desde 1978 luta pelo tombamento da casa, localizada perto de São Pedro da Aldeia (RJ), permitiram que sua existência fosse dada a conhecer. Hoje, juntamente com a Sociedade dos amigos da Casa da Flor, empreende uma verdadeira cruzada por sua desapropriação e restauração.

A casa da Flor, construída por Gabriel dos Santos, trabalhador das salinas, é um dos poucos exemplares nacionais que se equiparam – ainda que suas dimensões sejam reduzidas – às grandes arquiteturas fantásticas mundiais, tais como o Palácio Ideal de Ferdinand Cheval, as arquiteturas de Gaudí, Jujol, a casa de Clarence Schmidt, Raimond Isidore, as torres Watts de Simon Rhodia, etc.

Breton e Dalí, se a vissem, elevariam seus cânticos a ela, pois nela tudo é surreal. Tudo desabrocha, explodindo em flores. Pratos viram pétalas. Conchas e telhas de barro transfiguram-se em plantas e flores, revelando a estranha gênese que liga as formas da natureza à arquitetura. Nessa casa, todos os materiais, objetos – estejam eles inteiros ou quebrados – adquirem uma vida muito distinta daquela para a qual foram destinados originalmente.

Uma forte sensação de isolamento nos envolve quando chegamos na pequena elevação onde foi construída. Somos envolvidos por um desconcertante muro que faz com que percamos o sentido de comunicação exterior. Isolamo-nos e penetramos na interioridade da casa. Trata-se de uma arquitetura destinada a abrigar e exteriorizar metaforicamente o espírito, o que realmente existe de essencial. "O pessoal gosta porque é coisa do espírito. A casa depende do espírito, é uma casa espiritual".

Gabriel sabia que corpo e casa são metáforas da mesma coisa, ainda que a história da civilização moderna nos tente eludir constantemente essas relações. Durante anos, ele bordou e bricolou sua casa, começando internamente e dedicando-se depois ao seu exterior: "Faço folhas de cimento, faço bordados, mas precisa que eu tenha lembrança e aquela força de idéia pra fazer essas coisas. E eu sou governado pra fazer essas coisas por pensamento e sonho."

As fundações de pedra, desproporcionais em relação ao corpo da casa, fazem com que ganhem ares de um pequeno castelo ou de um templo colocado no alto de um morro. Uma casa que se erige aos céus. Talvez por isso não seja tão difícil imaginá-la ou recordá-la envolta por nuvens, pela vaporosidade da criação.

Essa intencionalidade de viver nas nuvens, ainda que inconsciente, existe. E é exatamente na escadaria das pedras flanqueada por grandes jarras com flores de cacos de pratos que assinalam os níveis da escada, do caminho ascendente.

Um museu em cujas paredes grudam-se milhares de imagens dispostas num contínuo floral. Um rendez-vouz alucinante de fragmentos: telhas de barro, pratos, garrafas, conchas, ossos, pedaço de vidro, espelhos, azulejos, lajotas, cerâmicas, conchas, mexilhões, ralos de chão... Em meio à festa de objetos surgem até flores feitas de argamassa, características das ornamentações das casas antigas, remetendo um pouco às flores de glacê dos bolos de festas.

Não por esse fato, mas pela profusão de fragmentos, a casa se avizinha à imagem da casa comestível e surrealista da bruxa malvada da história de João e Maria. Gabriel coloca-nos no mesmo jogo de sedução e fantasia provocado pela doçura da ornamentação. Uma surpreendente história, um diário de estranhas letras, de metáforas perfumadas, petrificadas, prontas para atrair e cativar qualquer passante.

O muro, sem dúvida, é o elemento totalizador do conjunto. Reforça e prolonga o espaço da casa. Recorda a idéia de primeira morada, a idéia perfeita de proteção e isolamento, de retorno à vida uterina... Elemento de proteção e moldura da casa. Envoltura corporal. Barricada.

Uma gigantesca collage trabalhada dentro de uma ordem compositiva semelhante a uma fotomontagem dadaísta, ou a um mosaico. Os fragmentos foram colocados aparentemente sem ordem, aleatoriamente, como se fossem atirados e colocados ao acaso. Entretanto, essa desordem obedeceu à ordem do tempo, das peças disponíveis, da simpatia de uma pela outra.

No muro e na casa estão presentes os mesmos princípios compositivos que aparecem em algumas photocollages, tais como a acumulação e a utilização de objets-trouvés, objetos encontrados ao acaso, que são "redesloucados" para um outro contexto.

Gabriel não suportava paredes vazias e ali escreveu de forma nada convencional, sua solidão. Durante mais de 40 anos montou o mosaico, o diário de sua fantasia. Tal qual um templo da antiguidade ou da idade média fez da pequena casa o suporte da representação de sua própria história de vida. Como dizia: "a casa era uma história, onde cada fragmento guardava uma lembrança, contava uma história."

Ao longo do muro, nos fundos da casa, e exatamente defronte à porta de entrada, que fica nos fundos da casa, montou um banco de dois lugares, como um prolongamento do muro. Criou um espaço análogo a uma varanda. Para reforçar a idéia fez dois bancos, um de cada lado da porta, revestidos com pedaços de azulejos. Caco a caco, Gabriel transformava o muro em jardim; a casa em flor.

Gabriel começou a trabalhar em sua casa em 1912, justo no mesmo ano em que Ferdinand Cheval concluiu o Palácio Ideal, depois de trabalhar sozinho nele por 38 anos. Ambos começaram a construir seus sonhos, suas obras, inspirados por um objet-trouvé. Cheval por uma estranha pedra em que tropeça no caminho; Gabriel por uma flor que montou com cacos de pratos.

Arquitetonicamente, a Casa da Flor apresenta algumas semelhanças com o Palácio Ideal. Tanto em um como no outro existe uma inversão na escala: no palácio, as flores, os animais e as pessoas adquirem proporções gigantescas, enquanto que as obras clássicas da arquitetura são miniaturizadas. Na Casa da Flor, são as flores que se agigantam, e algumas composições feitas com telhas de barro também sugerem pequenos templos ou estruturas arquitetônicas.

Se no Palácio Ideal o tema do sexo se faz presente mais explicitamente, na Casa da Flor os motivos estão mascarados sob o tema floral.

Diante do requintado trabalho de Cheval, a casa de Gabriel pode parecer mais desleixada, mais naïf, mas, ao mesmo tempo, essa despreocupação lhe confere um estatuto de obra típica moderna, contendo os mesmos princípios compositivos vanguardistas desenvolvidos por Jujol. Refiro-me mais precisamente à sua intervenção na casa Torredellas, que em meio à cobertura feita de cacos de azulejo, coloca irreverentemente um prato fundo e uma jarra de vinho catalã. Gabriel ia nas casas ricas, observava tudo e fazia igualzinho na sua.Copiava com o que tinha à mão, com o que podia fazer, e a recriação era mil vezes mais bela que a beleza das casas da realeza.

Essa ausência de preocupação com o requinte do acabamento revela que a importância está na transfiguração poética da casa real, na consciência do essencial, como observou Ferreira Gullar em seu ensaio sobre a Casa da Flor, e não no barroquismo da ornamentação.

                            II

Uma casa florida por fora, inflamada por dentro.

À noite, as lamparinas de Gabriel faziam sua imaginação ferver. Idéias de cacos borbulhavam. Os mosaicos dentro da casa animavam-se em sombras e bailavam ao sabor da chama. Tudo cintilava. A tênue luz dava vida a todas as coisas no interior da casa.

"A chama determina a acentuação do prazer de ver, algo além de ser visto [...] dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não é nada, comparado como que se imagina. As mais frias metáforas transformam-se realmente em imagem.
[...] Um sonhador de lâmpadas à óleo compreenderá instintivamente que as imagens da pequena luz são lamparinas íntimas. Suas luzes pálidas tornam-se invisíveis quando o pensamento trabalha, quando a consciência está bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as imagens vigiam" (2).

Gabriel era o pensador inflamado, elétrico, cheio de malícia, construía luminárias fantásticas com lâmpadas usadas, colocava faróis de carro na parede da sala e depois do trabalho os contemplava iluminados pelo brilho da luz de vela.

A palavra lâmpada, o abajur de lâmpadas já me faz rir. Porque lâmpada elétrica não nos dá as fantasias da lamparina que, com o óleo, faz luz. Entramos na era da luz administrada.

"[...] O pavio desta noite não é em absoluto o mesmo de ontem" (3).

Ele queimava sua solidão. O cotidiano. Isolado no tempo das lamparinas e lampiões, imaginava seu espaço, pensava sua vida. Na escuridão da noite, à chama da vela sobre a mesa, preparava todas as suas fantasias, que se tornariam realidade no dia seguinte. Em seus passeios, recolhia os cacos, os pequenos sonhos, e os recolava, bordando sua casa como um floral, uma fantasia.

A criação da imagem, sua visualização, é favorecida como os olhos fechados e/ ou pouca luz. Tanto no devaneio quanto na luz fraca encontra-se o mesmo trabalho da imaginação. Bachelard e Tanizaki haviam, de uma forma solitária, observado esse fenômeno comum à imaginação.

Se existe uma arquitetura correspondente a um livro, a Casa da Flor foi criada para A Chama de uma vela de Gaston Bachelard, que descreve toda a poética desde a luz de uma vela.

Existe um parentesco entre lamparina que vela e flor exala, entre A chama de uma vela de Bachelard e a Casa da Flor.

Na flor, na vela e na imaginação tudo é efêmero. O perfume, a chama e as imagens da criação evolam-se facilmente. Para exercitar a imaginação, não se deve deixar a luz dormir, é preciso constantemente ativar a chama. Aspirar, expirar. Por fim, todas as flores são chamas querendo torna-se luz.

Metaforicamente, a cada noite, mais e mais flores brotavam do óleo que ardia na lamparina. Fica claro, agora, que as flores feitas de cacos nada são do que luzes transfiguradas. Flores que iluminam o pátio de dia, sempre vivas.

A capacidade de entregar-se, violentando a linguagem do cotidiano, é uma atitude poética que independe da habilidade em uma representação institucionalizada como a pintura.

Trabalhar com o épave, tal como um bricoleur com a matéria que vem a dar na beira da praia, transformando-a em maravilha, em flores do mal, é também uma forma de criar o poético.

Enquanto o fogo florescia, a flor se iluminava.

notas

1
Este artigo originalmente foi publicado no livro Arquiteturas Fantásticas. Porto Alegre: Editora da UFRGS / Ritter dos Reis, 1999. Veja maiores informações do livro na Livraria Virtual Vitruvius, na seção Crítica Brasil.

2
BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989.

3
BACHELARD, Gaston. idem, ibidem.
referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989.GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro, Revan, 1993.

sobre o autor

Fernando Freitas Fuão é Doutor pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona/Universitat Politécnica de Catalunya, Barcelona, professor na Faculdade de Arquitetura da UFRGS e pesquisador do CNPq. As fotografias da Casa da Flor foram cedidas pelo autor, publicadas originalmente em Arquiteturas Fantásticas (Ed. Da Universidade. Porto Alegre. 1999).

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