Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts


how to quote

MAHFUZ, Edson. Entre os cenários e o silêncio.. Respostas arquitetônicas ao caos do mundo contemporâneo. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 018.07, Vitruvius, nov. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.018/833>.

1.

O mundo atual é percebido por muitos como algo caótico, desordenado e mesmo hostil. Sensações de medo, desorientação e vazio parecem ser comuns a todos em algum momento das nossas vidas. Violência urbana, crises políticas e econômicas crônicas e consequente insegurança financeira e profissional são causas conhecidas de todos. Pode-se perceber também que nossa é vida é cada vez mais influenciada, se não dominada, por valores derivados de processos sobre os quais não temos nenhum controle. Um deles é a chamada ideologia do mercado, a partir da qual há uma tendência quase irresistível a tratar todos os aspectos da vida como objetos de consumo, muito bem embalados em imagens sem substância.

Não menos importante é a desorientação causada por cidades organizadas de maneira confusa, sem hierarquia clara, povoada por uma esmagadora maioria de edifícios equivocados na sua concepção, cuja aspiração à monumentalidade e notoriedade só agrava a sensação de se estar em nenhum lugar.

É claro que a maioria de nós gostaria que o mundo fosse diferente, mas a arquitetura faz parte do mundo real, com todos os seus problemas, e sua capacidade de ajudar-nos a enfrentá-los, embora limitada, não é desprezível. Este texto se propõe a apontar algumas maneiras em que a arquitetura e o urbanismo têm respondido ao caos contemporâneo.

Do ponto de vista urbanístico, uma característica marcante das últimas décadas tem sido a acelerada transferência de atividades normalmente realizadas em espaços abertos da cidade para o interior dos edifícios: das praças para os shoppings e centros culturais, ou espaços similares. O espaço aberto, por conseqüência, perde seu valor e se restringe a facilitar a circulação de pessoas e mercadorias. O espaço público deixou de ser primordialmente um local de encontro, coração da vida social e política, e passa a ser, na maioria dos casos, diretamente ligado ao consumo, à comida e à diversão paga, em lugares segregados, monitorados e controlados; local onde todos se sentem seguros e essa segurança é esperada. O próprio termo espaço público perde significado nestas condições, passando talvez a ser mais adequado falar-se em espaço coletivo.

Essa interiorização do espaço público coincide com a proliferação dos chamados “não-lugares”: aqueles pelos quais ninguém sente um apego particular e que não funcionam como pontos de encontro à maneira tradicional; são definidos pela super-abundância e o excesso --espaços relacionados com o transporte rápido, o consumo e o ócio (centros comerciais, supermercados, hotéis, aeroportos, etc.) [figura 1]. Os museus talvez sejam uma exceção entre os novos lugares do final do século XX, pois se tornam motivo de orgulho para as comunidades que os constroem e em geral sua arquitetura é de qualidade superior. Mas mesmo nesses templos da cultura se sente a penetração dos valores consumistas da época, no sentido em que muitos museus têm se tornado verdadeiros centros comerciais e gastronômicos.

2.

No que se refere às edificações em que vivemos e trabalhamos, a arquitetura tem oferecido diferentes respostas ao caos da vida contemporânea. Uma delas é a via nostálgica ou cenográfica, pela qual se constrói edificações diretamente inspiradas na arquitetura do passado, fazendo questão de que essa fonte de inspiração seja imediatamente perceptível. A idéia por trás dessa atitude parece ser a de criar um ambiente reconfortante por meio de imagens familiares. Essa prática já seria anacrônica e irrelevante mesmo que o passado evocado por essas arquiteturas fosse ligado à tradição local, mas em geral o que acontece é uma apropriação do passado de outras culturas. A conseqüência é uma “disneyficação” do mundo, onde tudo é falso e culturalmente irrelevante, além de não representar qualquer atitude positiva perante o caos exterior. Os cenários em cor pastel podem até proporcionar algum alívio temporário, mas como qualquer droga, só constituem uma fuga inconseqüente. Mas o pior desta atitude é que, sendo regressiva e antimoderna, infantiliza e corrompe os usuários, pois não os educa e os mantém num estado primitivo de cultura visual.

Criando objetos que pretendem atender de modo literal a uma suposta preferência do cliente, o arquiteto deixa de cumprir o seu papel de interpretar e qualificar as necessidades sociais e impede o desenvolvimento de uma relação ativa entre usuário e arquitetura. Uma das principais características da arte moderna, da qual a arquitetura é um caso específico, é a de apresentar uma ordem que lhe é própria, não dependente de nenhum sistema externo a ela, e isso significa que a participação do usuário é fundamental para o seu completamento. A arquitetura cenográfica retira do usuário a possibilidade de engajamento ativo com a obra de arte, e o torna um receptor passivo de imagens pasteurizadas.

A via cenográfica é originária da América do Norte [figura 2], mas sua penetração pode ser sentida em qualquer grande cidade do nosso continente. A grande maioria dos empreendimentos residenciais recentes nas capitais brasileiras segue algum estilo histórico (mal) adaptado. É comum que a propaganda desses empreendimentos fale em ‘estilo californiano’, ‘arquitetura toscana’, etc. Todas as cidades brasileiras são afetadas por esse fenômeno, mas em nenhum lugar ele é mais perceptível, na extensão da sua vulgaridade, que na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, verdadeiro circo dos horrores da arquitetura contemporânea. A falta de cultura visual da maioria das pessoas que pode contratar um arquiteto em nosso país, somado a um complexo de inferioridade perante o poder econômico das potências do Primeiro Mundo, faz dos clientes presa fácil de profissionais que não entendem o papel cultural da arquitetura, e a atrelam ao mundo da moda e da publicidade.

3.

Outra atitude corrente, especialmente no primeiro mundo, é a de tomar o caos contemporâneo como fonte de inspiração de edifícios que são propostos como representação do mundo atual. Assim, vemos proliferar nas cidades européias e americanas objetos de forma estranha, baseados em geometrias complicadíssimas, cheios de diagonais, pontas, pisos inclinados e outras complicações formais, configurando objetos que se parecem com qualquer coisa menos com um abrigo protetor. Além dos problemas práticos de realizar uma arquitetura desse tipo, o principal problema dessa atitude me parece ser o fato que sua resignação em relação ao mundo atual tem como resultado uma materialização do caos que todos percebem como problemático. Ou seja, ao caos percebido como condição cultural se soma a exacerbação da desordem visual das cidades. Todos os edifícios descritos como deconstrutivistas correspondem à essa definição. Neles, a qualidade parece ser medida pelo grau de excentricidade da sua forma, não importando a sua pertinência a uma determinada situação [figura 3].

Essa arquitetura envolve um esforço intelectual do usuário muito maior do que a discutida anteriormente. No entanto, o esforço para interpretar formas complicadíssimas não resulta na descoberta de uma lógica relacionada com os aspectos específicos do problema, pois ela nunca existe. A interpretação da ‘forma pela forma’ deixa um sabor amargo ao final do processo, pois raramente há qualquer correlação entre forma e conteúdo, para usar um termo fora de moda.

4.

É muito comum também, especialmente em nosso meio, a busca de uma arquitetura ‘interessante’ por meio de manipulações formais não relacionadas com nenhuma das condições que lhes deram origem. Assim, vemos as cidades serem crivadas de edifícios cuja forma não tem qualquer lógica visual, além de pouco terem a ver com o programa que abrigam ou os lugares onde se inserem. Programas simples como o de um edifício de escritórios terminam sendo abrigados em edifícios cujas formas complicadas e contorcidas, além de nem sempre funcionarem satisfatoriamente, criam mais confusão visual na já poluída paisagem visual de nossas cidades. A busca de uma arquitetura ‘interessante’ indica um desconhecimento de que as boas cidades do mundo apresentam uma mistura composta de uma maioria de edifícios simples e discretos, que abrigam os programas mais corriqueiros, e uma minoria de edificações com uma arquitetura mais elaborada, que abrigam os programas de maior relevância coletiva. Hoje qualquer edifício de escritórios ou apartamentos aspira à condição de monumento! Por trás de toda tentativa deliberada de obter uma arquitetura interessante há sempre decisões arbitrárias, falta de lógica e consistência (2). Sua conseqüência direta é a produção de uma arquitetura culturalmente irrelevante e a exacerbação do caos visual urbano. Como dizia Mies van der Rohe, “o objetivo do arquiteto não é fazer arquitetura interessante, mas sim fazer boa arquitetura”.

5.

A resposta arquitetônica ao caos do mundo contemporâneo mais promissora e relevante neste final de milênio é representada pelo que poderia ser chamado de arquiteturas silenciosas. A alusão ao silêncio se explica de duas maneiras. Por um lado, pelo fato de que essas arquiteturas rechaçam a concepção artística promovida pela pseudo-cultura mediática atual, que resulta em uma agressão histérica aos sentidos e, ao contrário, afirmam uma concepção de arte contemplativa em que a introspecção é o modo pelo qual nos enfrentamos com o mundo artificial e natural. Entendendo que o meio urbano já possui um excesso de formas e estímulos visuais, opta-se por uma arquitetura em que a simplicidade resulta em uma grande intensidade formal, e um conseqüente aumento de legibilidade. A falsa simplicidade dessa produção afasta aqueles que buscam gratificação imediata dos sentidos e gratifica a persistência dos que se permitem um envolvimento emocional mais prolongado com a arquitetura. Por outro lado, esse modo de projetar não trata a arquitetura como veículo de afirmação individual ou de realização de obsessões pessoais, retirando-a, ainda que em poucos casos, da esfera do espetáculo para retorna-la ao campo da cultura.

Uma das características principais da chamada arquitetura silenciosa é a abstração, no sentido em que se concentra no essencial, deixando de lado tudo o que é acessório. Para este modo de conceber a arquitetura, a forma se identifica com o conceito moderno de estrutura (disposição e ordenação geral das partes de um objeto) ao contrário das outras atitudes aqui analisadas, para as quais a forma é entendida como figura (conceito que se refere à aparência, ou conformação externa, de um objeto) (3). Deriva desse pensamento estrutural a concepção do ato de projetar como o estabelecimento de um sistema de relações entre elementos --isso vale tanto para as relações internas entre as partes de um edifício quanto para as relações desse edifício com os componentes do lugar do qual fizer parte.

Ao contrário da arquitetura pré-moderna e de certas tendências pós-modernas, a forma não deriva de nenhum sistema prévio exterior a ela; tampouco é o objetivo da atividade criadora. Na arquitetura ‘silenciosa’, herdeira direta do modernismo, o projeto é uma atividade totalizadora que sintetiza na forma os requisitos do programa, as sugestões do lugar e a disciplina da construção. Por meio da abstração, o saber disciplinar acumulado historicamente se torna parte da produção cultural contemporânea, que não se vê obrigada a abrir mão de suas raízes históricas.

Do ponto de vista da sua constituição, essa arquitetura se caracteriza por uma economia de meios que privilegia formas elementares definidas por um número reduzido de elementos, constituindo objetos enganosamente simples cuja complexidade vai sendo revelada na medida em que nos familiarizamos com eles. A precisão com que é projetada e construída, e o rigor com que se concentra no que é relevante em cada caso são também fatores determinantes da sua alta qualidade [figuras 4 a 8] (4).

6.

Das três estratégias mencionadas acima, a alternativa cenográfica é a mais popular, pela facilidade de se entender objetos que nos parecem familiares. No entanto, padece de ingenuidade e de irrelevância pois, ao se atrelar à lógica do mercado, decreta a obsolescência dos seus produtos às vezes antes de serem construídos.

A alternativa da complexidade formal pode ter o seu interesse do ponto de vista visual, como em alguns dos exemplos mais competentes, mas falha pela sua preocupação excessiva em fazer da arquitetura um meio de representação do mundo exterior e da forma o seu objetivo principal.

Já o que chamo de arquitetura silenciosa, quando autêntica (5), ao se voltar para sua própria especificidade e para uma acentuação poética da relação do homem com o mundo, parece oferecer as melhores possibilidades de intermediação positiva daquela relação.

notas

1
Baseado sobre o texto “Algumas respostas arquitetônicas ao caos contemporâneo”, apresentado no Seminário Luzes na Cidade: A arquitetura de um projeto humano, no painel A cidade, as pessoas e o caos, organizado pelo Grupo de Estudos Avançados, Porto Alegre, 23/11/00

2
Alguns instrumentos dessa busca do ‘interessante’ são: ângulos que rompem a ortogonalidade arbitrariamente, diferenças de plano (muitas vezes associadas à mudanças de cor e/ou material), adições ou subtrações volumétricas de pequeno ou grande tamanho, sobreposição de padrões abstratos ao volume do edifício, nenhum deles derivado de aspectos programáticos, construtivos ou de relação com o entorno.

3
Sobre abstração em arquitetura, ver DPA 16, junho, 2000, revista do Departamento de Projetos Arquitetônicos da Universitat Politécnica de Catalunya, especialmente “Abstracción en arquitectura: una definición”, de Carles Martí, e “Arte abstracto e arquitectura moderna”, de Helio Piñon.

4
Como representantes desse modo de fazer arquitetura pode-se citar os portugueses Eduardo Souto Moura e Alvaro Siza, os espanhóis Helio Piñon, Javier Garcia-Solera, Alberto Campo Baeza, Noguerol & Diez, Ábalos & Herreros, Bach & Mora, Victor Rahola, Tuñon & Mansilla, os suíços Herzog & De Meuron e Gigon & Guyer, os austríacos Peter Zumthor e Baumschlager & Eberle, o holandês Wiel Arets e o brasileiro Paulo Mendes da Rocha.

5
A sua autenticidade reside no fato de que sua contenção formal é uma conseqüência da aplicação de critérios como economia, precisão, rigor e universalidade ao projeto de edifícios. Quando isso se transforma em estilo, como no chamado ‘minimalismo’ ou clean, em que aquela conteção formal é um objetivo e não uma conseqüência, estamos diante de formas vazias e inautênticas.

sobre o autor

Edson da Cunha Mahfuz, arquiteto, professor de projetos da Faculdade de Arquitetura da UFRGS.

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided