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architexts ISSN 1809-6298


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Autora comenta a tradição da cantaria em Minas Gerais, que vem sendo preservada graças à atuação de artesãos e órgãos públicos


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M. VILLELA, Clarisse. Artes e ofícios. A cantaria mineira. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 041.03, Vitruvius, out. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.041/646>.

A pedra natural, enquanto material imediato e acessível, utilizada em objetos e construções, tem acompanhado o homem desde o período pré-histórico e, em sua perenidade, vem registrando a trajetória das civilizações. Inicialmente empregada na forma bruta, foi sendo, ao longo do tempo, dominada e transformada em delicado e profuso ornato.

Cantaria é a pedra que, tendo sido afeiçoada manualmente, com o uso de ferramentas adequadas, apresenta-se pronta para ser utilizada em construções e equipamentos. Atua ora como elemento estrutural, ora como ornamentação e, muitas vezes, atende às duas funções.

Presente em toda a sucessão de estilos da arquitetura ocidental, a técnica da cantaria chegou ao Brasil em meados do século XVI. Escolhido por Dom João III para ser o primeiro governador geral da colônia, Tomé de Souza trouxe, em 1549, Luís Dias, chamado mestre de pedraria. No período de colonização era comum os projetos virem já prontos de Portugal para serem aqui realizados, e o mesmo sucedia com a cantaria, principalmente as peças em calcário Lioz, que confeccionadas na metrópole, vinham como lastro dos navios e então utilizadas nas construções.

Durante a segunda metade do século XVI e pelos dois séculos seguintes, a pedra de cantaria foi amplamente empregada nas construções civis, militares e religiosas brasileiras. A arquitetura aqui realizada recebia grande influência dos modelos europeus, transpostos através de projetos, mestres construtores, materiais e das chamadas “Ordenações Reais”, que estabeleciam regras para as construções. Neste contexto, as pedras locais e também aquelas trazidas de Portugal eram um recurso essencial, tanto quanto, o trabalho dos mestres canteiros.

A descoberta do ouro na Capitania das Minas Gerais, em 1698, atraiu rapidamente para a região de Vila Rica, paulistas, portugueses e gente de diversas partes do Brasil. No início da ocupação, dificuldades de ordem material e técnica impediram a imediata reprodução dos modelos culturais portugueses, inclusive arquitetônicos, como ocorrera na região nordeste.

As construções de pedra argamassada ou seca – pedra sobre pedra, sem uso de argamassa – surgiram devagar. Nesta fase inicial foram usados, para alvenarias, blocos avulsos de canga, nome dado ao minério de ferro. Estas alvenarias, depois de erguidas, eram revestidas. As peças de canga, quando entalhadas, apresentavam acabamento rústico devido à granulação grossa da rocha.

Em seguida, viriam os quartzitos ser amplamente empregados em Vila Rica, sobretudo nas partes nobres das construções. A cantaria em quartzito Itacolomi, aparente, com acabamento refinado e união das peças feita por encaixes ou argamassa foi introduzida na arquitetura local para as obras do Palácio dos Governadores pelo engenheiro militar português José Fernandes Pinto de Alpoim entre os anos de 1735 e 1738.

A terceira fase do uso das rochas nas construções da vila teve início por volta de 1755 com o emprego do esteatito, conhecido como pedra-sabão. As ornamentações encontraram a desejável maleabilidade nesta pedra talcosa comum na região. Com ela, o Aleijadinho criou seus frontões, portadas e esculturas.

 Durante o século XVIII, o trabalho conjunto de mestres portugueses e a primeira geração de artistas mineiros, o emprego dos materiais pétreos locais e o aperfeiçoamento da arte de construir deram origem às obras de tipologias diversas que caracterizaram definitivamente a arquitetura colonial de Ouro Preto.

As alvenarias, que levam canga na alma, revestidas com a mais branca cal, fazem fundo para o quartzito rosa dos embasamentos, cunhais e cimalhas que delineiam fachadas e enquadram ornatos de pedra sabão em uma harmonia cromática ímpar, formando a mais pura expressão do barroco mineiro.

A vinda da corte de D. João VI e a chegada da missão francesa, no início século XIX, foram decisivos para o declínio da cantaria. A adoção do estilo neoclássico, o emprego de novos materiais, a preferência pelos tijolos na execução das alvenarias e o fim do trabalho escravo levaram o ofício às vias de extinção. Conseqüentemente, perdeu-se a mão-de-obra especializada em trabalhar a pedra, material agora restrito à pavimentação das ruas, pisos, degraus de escadas e revestimento de paredes, em forma de placas.

A possibilidade de preservação da técnica surgiu recentemente com a criação da Oficina de Cantaria da Universidade Federal de Ouro Preto, iniciativa do Departamento de Mineração da Escola de Minas. Responsável pela oficina, Sr. José Raimundo Pereira, “seu Juca”, trabalha com a cantaria há vinte anos. Autodidata, mestre Juca, hoje com 80 anos, vem se aperfeiçoando cada vez mais e, ao transmitir seus conhecimentos aos alunos da oficina, tem promovido o renascimento do ofício.

Na Oficina de Cantaria as pedras, em geral de quartzito Itacolomi, perdem seu aspecto bruto ao serem entalhadas e afeiçoadas por “seu Juca” e seus alunos. Com técnica e habilidade, vão surgindo os relevos e contornos das futuras peças de ornamentação.

Projeto semelhante, que traz ânimo aos profissionais envolvidos com esta arte, surgiu em Portugal há onze anos. Em 1992, foi criada a Escola Nacional de Artes e Ofícios Tradicionais da Batalha, a ENAOTB. Em tempos áureos, a Batalha foi o principal centro de cantaria de Portugal. Porém, ao limiar do século XX, a cantaria estava quase extinta e, por ocasião da fundação da ENAOTB, existia apenas um único mestre canteiro em Portugal, Alfredo Ribeiro.

Pertencente a uma família que já conta com cinco gerações de canteiros, mestre Alfredo Ribeiro praticamente já não exercia o seu ofício. Ele se tornou peça fundamental para concretizar o objetivo primeiro daquela instituição: transmitir às novas gerações os segredos de uma arte de tão difundida na arquitetura portuguesa.

Graças às atividades da Oficina de Cantaria de Ouro Preto, a pedra entalhada tem reconquistado seu espaço ao ornamentar ambientes contemporâneos. O empenho de mestre Juca alcança mérito ainda maior por abrir novos horizontes de trabalho à população local.

A manutenção da técnica, além da questão de preservação de uma técnica tradicional em si, é imprescindível para os trabalhos de restauração dos monumentos. As peças de cantaria dos prédios históricos vêm sendo avariadas desde que construídos. Sem o trabalho dos canteiros, a substituição destas peças não é possível.

Transcorridos mais de duzentos e sessenta anos de sua introdução nas construções de Ouro Preto, o quartzito tem apresentado níveis diferenciados de degradação. Algumas peças de cantaria começam a ter sua função estrutural comprometida e as que foram esculpidas, em alguns casos, encontram-se totalmente descaracterizadas.

Agentes de origem química, física e biológica, em ação isolada ou conjunta, são os que geralmente causam os maiores danos às peças. Entretanto, avarias graves têm sido provocadas pelo homem, como o acidente ocorrido com o chafariz da Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto. Em 05 de novembro de 2002, um caminhão atingiu parte do monumento, quebrando vários de seus elementos esculpidos em pedra.

Quando ocorre a perda total ou parcial de um elemento arquitetônico e uma substituição se faz necessária, o primeiro passo é determinar a natureza da pedra utilizada e a localização da jazida que forneceu o material original. Para que sejam preservadas as características da obra, deve-se procurar uma nova pedra que atenda aos requisitos de resistência mecânica, durabilidade e semelhança em termos de textura e cor.

A substituição de peças danificadas por novas, confeccionadas com material de mesma origem e usando-se a mesma técnica escultórica, desde que devidamente datada e documentada, é prática legítima, prevista nas cartas patrimoniais.

Deve-se ressaltar que a substituição de materiais em uma edificação histórica é uma atuação que ocorre em terceira instância. A primeira é detectar as causas de deterioração para eliminá-las ou minimizá-las na medida do possível. A segunda, a consolidação, é uma delicada intervenção que consiste em paralisar o perda do material. A terceira, troca-se a pedra original por outra de aspecto e comportamento adequado, pretendendo elevar a durabilidade do conjunto, conservando ao máximo o material original.

Não existem dados precisos, mas pode-se estimar que, em Ouro Preto, a cada ano pelo menos um bem é destruído, avariado ou necessita de reparos. A solução mais imediata e cômoda, geralmente apontada, é a confecção de peças em cimento.

Sem o trabalho dos canteiros, em um futuro próximo teríamos nossa arte barroca substituída por inexpressivos blocos de concreto. O quê nos restaria a apreciar nestas superfícies cinzentas e lisas moldadas por formas?

Nenhuma intervenção que tenha por finalidade salvaguardar as condições físicas de um monumento poderá ser considerada como trabalho de restauração se não proporcionar ao observador a fruição plena e legítima, que permita a leitura da mensagem histórica.

sobre o autor

Clarisse Martins Villela é engenheira arquiteta formada pela Escola de Arquitetura da UFMG em 1991. Mestre em Engenharia de Materiais pela REDEMAT (Rede Temática em Engenharia de Materiais). Ex-professora da Escola de Minas de Ouro Preto.

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