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architexts ISSN 1809-6298


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O ano 2004 foi um marco histórico da questão doutoral em arquitetura, tema de encontro em Princeton – Building the Architecture: A short History of the PHD in Architecture – e do colóquio European Symposium on Research in Architecture and Urban Design


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CHUPIN, Jean Pierre. A questão doutoral ou a globalização da epistemologia e da pesquisa em arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 059.08, Vitruvius, abr. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.059/477>.

Dois colóquios sobre o doutorado em arquitetura

Seja nos Estados Unidos, com o impressionante encontro de Princeton, na primavera de 2004, sob o tema Building the Architecture: A short History of the PHD in Architecture ou, de maneira praticamente simultânea na Europa, com o colóquio European Symposium on Research in Architecture and Urban Design – EURAU 2004, que reuniu professores pesquisadores de 25 países europeus na Escola de Arquitetura de Marselha, em maio 2004, sob o título “Considering The implementation of doctorat studies in architecture” não é exagerado considerar o ano 2004 como um marco histórico da “questão doutoral” em arquitetura.

Se o colóquio europeu pode ser compreendido no âmbito das reflexões correntes que buscam harmonizar os programas das escolas de arquitetura e introduzir o L. M. D. (Licenciatura, Mestrado e Doutorado) na continuidade dos trabalhos da Sorbonne e no que, agora, costuma-se chamar ‘acordos de Bolonha’ (2000), o colóquio americano se inscreve em uma perspectiva diferente, uma vez que os doutorados americanos existem concretamente, desde o final dos anos 1960. Para os Europeus, e mais particularmente para os franceses, a urgência em implantar sólidos programas de terceiro ciclo (2) específicos à pesquisa arquitetural explica-se pelo relativo isolamento das escolas de arquitetura em relação às universidades. Para os Norte-americanos, a urgência mira o balanço de 30 anos de pesquisas doutorais e a revisão de orientações tanto epistemológicas quanto metodológicas. De maneira característica, notar-se-á, em ambos os casos, que o debate gira em torno das inquietações e dos mal-entendidos entre a profissão e a disciplina. Inquietações na Europa, onde os profissionais temem ser afastados do ensino, num sistema universitário inflacionário, a tal ponto que as organizações profissionais mostraram-se totalmente contrárias à introdução de estudos doutorais.

A estas inquietações, amplamente infundadas, fazem eco certos mal-entendidos na América do Norte, onde os profissionais se questionam sobre a utilidade da pesquisa arquitetural, em particular daquelas com perspectivas teóricas, só reconhecendo mais freqüentemente as pesquisas com predominância tecnológica ou facilmente aplicáveis ao mercado dos serviços. Trata-se claramente de uma situação de crise paradoxal uma vez que nenhuma profissão poderia legitimar-se e renovar-se sem intensos esforços de construção disciplinar, sem sólidos fundamentos intelectuais. Como a professora finlandesa Kaisa Broner-Bauer, lembrou, no colóquio de Marselha, de forma muito simples, mas muito clara, é antes e acima de tudo porque o campo profissional da arquitetura está em profunda mutação, que a instauração ou reinstalação de um programa de doutorado em arquitetura mostra-se urgente e necessário (e que a situação é vivida desta forma pelos candidatos ao doutorado) e não pelas obscuras veleidades científicas ou acadêmicas que ignoram o mundo atual. Para melhor compreender em que os ofícios da arquitetura usufruiriam das pesquisas produzidas pelos doutorandos em arquitetura, para julgar o papel que os futuros doutores em arquitetura serão chamados a desempenhar, conviria, antes de tudo, voltar aos principais desafios temáticos que animaram estes dois colóquios.

O colóquio europeu de Marselha desenvolveu-se em quatro sessões, algumas reunindo mais de doze intervenções:

1. A pesquisa doutoral e o projeto (presidida por Constantin Spiridonidis, professor na Escola de Arquitetura de Tessalônica);

2. A arquitetura e suas disciplinas (presidida por Jean-Pierre Chupin, professor da Escola de Arquitetura da Universidade de Montreal);

3. A tese, laboratório da interdisciplinaridade (presidida por Cyrille Simmonet, professor do Instituto de arquitetura de Genebra);

4. A pesquisa científica e os desafios profissionais (presidida por Niklaus Kohler, professor da Universidade de Karlsruhe).

O colóquio americano de Princeton também se desenvolveu segundo quatro temas, mas foi organizado por convocação de pessoas que desempenharam ou ainda desempenham um papel histórico no desenvolvimento dos programas de doutorado em arquitetura:

1. Writing architecture: Architects versus Historians (com as intervençoes de Peter Eisenman, Sarah Whiting, Diana Agrest, Marc Jarzombek et Denise Scott Brown);

2. University Inscription: The Founding programs (com as intervençoes de Christian Otto, Kathleen James-Chakraborty, Sylvia Lavin, Stanford Anderson et Anthony Vidler);

3. The Gatekeepers: Archives and Distribution (com as intervençoes de Phyllis Lambert, Frédéric Migayrou, Michael Hays et Sanford Kwinter);

4. Intellectual Hospitality: The Interdisciplinary Politics of Ph.D. Programs (com as intervençoes de Hal Foster, Robert Gutman, Catherine Ingraham et Marc Cousins).

A situação americana

Uma certa defasagem cultural separa estes dois encontros, sem que haja, no entanto um oceano de diferenças entre eles. Uns atem-se em esclarecer a relação entre projeto e pesquisa, e outros a esclarecer a relação desta relação com a História (da Arte, em particular). Mas ambos questionam os limites disciplinares e o papel da interdisciplinaridade, que é compreendida como um laboratório na Europa, ou como um efeito de hospitalidade na América. Esta hospitalidade, esta generosidade e esta abertura, que muitas disciplinas tardam a reconhecer, começam hoje a causar problemas, na medida em que elas não se fazem acompanhar praticamente nunca de reciprocidade ou de equivalência, seja por parte das ciências humanas, seja pelas ciências da construção. Após anos de abertura interdisciplinar, a re-centralização disciplinar não nasce de uma ameaça nem de um autismo friorento, mas de uma decepção: por que as ciências mais próximas das questões e objetos da arquitetura são tão pouco abertas a acolher os frutos da pesquisa em arquitetura? As chamadas à abertura interdisciplinar não são uma fuga, uma escapatória para não encarar a reflexão recorrente sobre os fundamentos da arquitetura?

Os programas americanos das escolas Yvi League se ativeram durante muito tempo no desenvolvimento da relação entre história e teoria (ou história e critica) na maneira de pensar a arquitetura. Vale notar que este esforço de teorização manifestou-se numa abundante produção escrita, em grande parte alimentada pela filosofia européia, muito mais do que por uma análise sistemática de projetos e edifícios. Após duas décadas de um vívido sucesso, nos anos 1980 e 1990, junto aos estudantes mais motivados em participar de uma teorização disciplinar, estes programas de doutorado estão, hoje, numa fase de avaliação de sua própria capacidade em mobilizar novos estudantes em torno de novas preocupações (desenvolvimento durável, novas tecnologias, globalização, etc). Estes programas temem ver o seu campo de irradiação ultrapassado, desprezado, para não dizer contestado; de um lado, pelas muito bem subvencionadas ciências da construção e da informática (computer and building science) e, de outro, pelas especializações técnicas profissionais próprias aos Doutorados em Design (doutorados profissionais que não devem ser confundidos com os PHD, os quais não tem equivalentes na Europa, salvo no caso dos diplomas italianos a partir de 1970).

Nós reconhecemos aí um primeiro indicador do paradoxo que nos parece central: a construção da profissão estaria atualmente em conflito com a construção disciplinar, as duas solidões tornando-as inimigas. Quando se pensa, além disso, no papel cada vez mais estruturante desempenhado pelos organismos de credenciamento profissional e quando se mede a porção cada vez mais exígua que é devolvida à teoria e à reflexão disciplinar, nos intermináveis e muitas vezes discutíveis “37 critérios de credenciamento” do Conselho Canadense de Credenciamento em Arquitetura, há de que se perguntar sobre o valor dado aos representantes da profissão aos aspectos mais fundamentais da pesquisa arquitetônica. É como se os médicos começassem a duvidar da pesquisa biomédica, do valor da história da medicina e até da pesquisa médica, no sentido mais amplo do termo, para a formação dos futuros médicos! Haveria mesmo uma certa retomada de anti-intelectualismo que nasceria em certas universidades americanas, um retorno dos mais inquietantes que faz eco à situação francesa das escolas de arquitetura: a inclinação crescente dos estudantes para mais anos de estudos está sendo regularmente associada a uma falta de compromisso profissional!

Projetando-se não sem perplexidade num futuro próximo, pode-se imaginar o estranho poder de superprofissionais de uma disciplina, a arquitetura, a tal ponto enfraquecida que estaria correndo o perigo de involução e regressão. Práticos de uma medicina que não mais progredisse seriam apenas feiticeiros ou mágicos de uma arte enrijecida por alguns preconceitos tenazes: pois a força da construção disciplinar não dependeria mais do valor de uma tal profissão. Os representantes da profissão que atualmente fecham os programas de arquitetura nos estritos valores práticos deveriam ter cuidado para não cortar o ramo da árvore na qual se sustentam. Existem numerosos ofícios, vocações, profissões que desapareceram por não terem sido capazes de se renovar, reforçando o seu núcleo teórico e sua capacidade de reflexão. De fato, a questão não está tanto em saber para que serve a arquitetura nas nossas sociedades (a delicada questão do interesse público da arquitetura), mas em saber por que a arquitetura não desapareceu ainda face o galopante crescimento, já há mais de dois séculos, das escolas de engenharia e dos institutos de management!!!

A situação européia

Se a situação da crise relativa dos prestigiosos programas de PHD das grandes universidades americanas de elite só diz respeito a um número restrito de doutorandos, o que se passa hoje em dia nas escolas francesas e em certas escolas européias extremamente dominadas pelos problemas de ensino de massa? Após anos de hesitações e de tergiversações sobre a pertinência de integrar ou não o mundo das universidades (3), os responsáveis franceses parecem doravante concordar com a urgência desta ligação. Alguns ainda sonham em fazer parte do sistema das grandes escolas que são, na França, o lugar de produção das teorias e das ciências aplicadas melhores financiadas e geralmente mais respeitadas que as universidades. Mas estes sonhos não parecem compatíveis com o sistema de valores dos que controlam os cofres do Estado, para os quais a arquitetura não é uma questão econômica essencial, nem tampouco uma questão de equipamento urbano, nem de organização territorial, mas um produto da cultura, como prova o elo ministerial desde 1990 (4). As escolas de arquitetura vivem doravante a época da Europa e inquietam-se com a sua postura científica. É preciso que elas demonstrem ao mesmo tempo legitimidade epistemológica e de recursos humanos: quer dizer de um lado, que a pesquisa em arquitetura produza conhecimentos transferíveis e, por outro lado, que os professores pesquisadores estejam habilitados a formar outros (de preferência ainda mais competentes que os seus professores).

Desde o início do ano 2004, assistimos a intensas atividades de recenseamento das equipes de pesquisa, das publicações e mesmo de programas de doutorados existentes (5). Um superávit ao mesmo tempo necessário e um pouco mesclado de inquietude, a julgar pelas declarações, benévolas e acolhedoras dos representantes da pesquisa científica e da universidade francesa que vieram concluir o colóquio de Marselha. Bastaria, segundo eles, assegurarmo-nos simplesmente de que a arquitetura não é apenas uma atividade profissional, mas uma verdadeira disciplina intelectual (sic) que os conhecimentos produzidos pela pesquisa serão transferíveis, ou antes, generalizáveis e em todo caso, transmissíveis (científicos, em suma!). Pois o círculo é inevitável para não dizer vicioso: não há pesquisa sem formação doutoral, não há produção de conhecimento (doutorais) sem referência disciplinar.

Formação de estudantes e iniciação à pesquisa em arquitetura

O que dizer do doutorado da Faculté d’Aménagément da Universidade de Montreal? Digamos sem rodeios, o programa atual de PHD em aménagement não oferece um quadro adaptado à formação e à pesquisa no domínio da arquitetura contemporânea, pela simples razão de que ele nunca foi pensado para formar pesquisadores em arquitetura. É um ambiente administrativo, gerido pelos representantes das faculdades (6) ao sabor das tendências, das afluências e das disponibilidades: buscar-se-á em vão sua coerência epistemológica, sua orientação metodológica e suas ambições teóricas. De fato, visto a diversidade das problemáticas de pesquisa que demonstram a listagem das teses, pode-se perguntar sobre a representação que os candidatos ao doutorado fazem de um PHD em aménagement. Trata-se de um doutoramento em geografia aplicada? Trata-se de um doutorado em estudos urbanos aplicados? Trata-se de um doutorado em planejamento urbano e territorial? Trata-se mais de um doutorado em tecnologia (e ou informática) das disciplinas do aménagement? Muito provavelmente tudo isto ao mesmo tempo! Mas tais representações são, em todo caso, muito pouco acolhedoras para a pesquisa fundamental em arquitetura, a julgar pelas teses produzidas há mais de um quarto de século, bem como pelos títulos dos agrupamentos temáticos redefinidos há mais de um decênio: Planejamento e Meio Ambiente, Habitat e Ambiente Construído, História e Teoria, Inovações Tecnológicas e Informática. E mais, dos quatro domínios de especialização, a área de concentração Planejamento e Meio Ambiente é, sem duvida, a que mais recebeu doutorandos, os quais, em sua maioria, são professores do Instituto de Urbanismo. Contradição máxima de um programa fundado sobre a interdisciplinaridade: nenhuma tese procurou atravessar as cada uma das problemáticas específicas das disciplinas do aménagement – uma tese verdadeiramente transversal – além de algumas tentativas de tipo aplicativo ligadas à gestão de projetos ou às novas tecnologias, (7) De fato, a história do PhD em aménagement, tal qual ela se revela no remanejamento permanente dos três seminários obrigatórios (8) demonstra claramente os infortúnios da interdisciplinaridade.

Como explicar uma tal defasagem entre esta aparente abertura a todos os horizontes disciplinares e a dificuldade de produzir o conhecimento disciplinar do qual cada um dos departamentos e escolas da faculdade tem obrigatoriamente necessidade? De fato, é preciso entender que o PhD em aménagement, com sua estrutura quadripartite de domínios de especialização, foi concebido para acolher, num lugar comum, problemáticas muito diversas com vistas a constituir um quadro teórico de um projeto político que data de meados dos anos 1960. Tratava-se, então, de apagar as distinções disciplinares em benefício de uma metadisciplina (dir-se-ia nos dias de hoje uma megadisciplina) chamada, na ausência de um melhor termo, de aménagement, não no sentido geográfico francês do termo aménagement du territoire, mas descendendo, de fato, daquilo que os anglo-saxões nomeiam “environmental design”. Ora, esta nova disciplina nunca teve verdadeiramente um grande desenvolvimento, seja na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, apesar dos esforços da Environmental Design Research Association (EDRA). Paradoxo ou ironia da sorte, a despeito de seus numerosos pesquisadores formados nas diversas ciências humanas e sociais, o florescimento desta associação limitou-se, no essencial, a algumas escolas de arquitetura: nem os design studies, nem os urban studies julgaram necessário considerar estes trabalhos como fundamentais.

Há realmente do que se surpreender nestes fatos? Pode-se praticar a abertura interdisciplinar sem se preocupar antes de tudo com a construção disciplinar? Quem se beneficia da interdisciplinaridade, para além dos princípios que estão teoricamente na origem de todo ensino universitário? Um número recente dos Cahiers du LAUA (Laboratoire Architecture, Usages, Altérité) da Escola de Arquitetura de Nantes (França) colocou os marcos do que os autores, fazendo um desvio hábil do título de um pequeno panfleto de Jacques Bouveresse, chamaram de “as vertigens e prodígios da interdisciplinaridade” (9). Numa entrevista com um responsável deste número de Lieux Communs, Laurent Devisme, autor de uma tese sobre o que ele chama de urbanologia e Michel Lussault, Presidente da Universidade de Tours e professor de geografia no CESA (Centre d’Études Supérieures de l‘Aménagement), questionam exatamente os avatares da interdisciplinaridade e suas miragens mais recorrentes no mundo universitário contemporâneo. Michel Lussault resume, logo de início, os parâmetros desta dificuldade:

“Creio, para parafrasear Georges Perec, em Espèces d’Espaces que a interdisciplinaridade é, antes de tudo, uma prática que busca questionar a constituição e o uso desta coisa estranha que se chama disciplina. A interdisciplinaridade é, ao meu ver, um objetivo, um processo, mais do que um estado realizável em si. Muito freqüentemente, aliás, ela se resume na discussão até mais raramente, na escrita comum entre especialistas de disciplinas diferentes. Não há ainda produção problemática que seja intrinsecamente e desde o início, interdisciplinar, salvo em alguns autores como Edgar Morin. Ele próprio se situa nesta forma de interdisciplinaridade real e realizada que chamaríamos de transdisciplinaridade e, aliás, é exatamente por isso que ele foi muitas vezes criticado.” (10)

Da interdisciplinaridade à complexidade haveria apenas um passo que alguns, aproximando rapidamente os dois vocábulos, repletos de polissemia que são ‘projeto’ e ‘design’, não hesitariam em ultrapassar facilmente, esperando abrir os limites disciplinares. Ora, antes mesmo de esperar reunir polaridades e contradições em uma ambiciosa obra de arte total e paradoxal, uma Gesamkunstwerk do aménagement, dever-se-ia, o que não é fácil, chegar – do ponto de vista de uma teoria das práticas contemporâneas do projeto de arquitetura – a distinguir de maneira adequada este três projetos de arquitetura que se cruzam no uso que fazemos deste termo nas escolas e que remetem a três objetivos diferentes. Evitaremos, então, tanto quanto possível, cair no amálgama, distinguindo (ver esquema a seguir):

A. o projeto arquitetural do ponto de vista do impulso monumental: este desejo de produzir que corresponde ao projeto em contexto profissional;

B. o projeto de arquitetura do ponto de vista da inevitável ensinabilidade (11);

C. o projeto de arquitetura do ponto de vista do desejo de conhecer: que corresponde ao projeto no contexto de pesquisa (seja a pesquisa de criação, seja a pesquisa fundamental).

A vantagem desta tripartição reside principalmente nas zonas cinzas que ela deixa aparecer, que remetem, todas elas, a problemáticas compartilhadas pelas disciplinas reunidas na Universidade de Montreal, sob o rótulo de aménagement. Mas, estas problemáticas, que são o doutorado, os estágios e a polaridade entre pesquisa e criatividade, parecem mais urgentes em arquitetura, como demonstram atualmente os colóquios acima mencionados. Assim, entre a situação de pesquisa e a situação pedagógica, o que está mesmo em é a questão do doutorado como lugar de renovação dos conhecimentos em arquitetura. Entre a situação de pesquisa e a situação profissional, aparece a delicada questão da criatividade (e da pesquisa de criatividade) que deu lugar a um reajuste recente por parte dos organismos de subvenção. Enfim, entre a situação pedagógica e a situação profissional, a questão dos estágios, quer eles sejam profissionais ou de pesquisa, é também atualíssima. É aliás sobre esta terceira zona cinza que as inovações mais concretas poderiam nascer propondo-se aos futuros doutorandos estágios regulares nos escritórios profissionais, não somente para observar e questionar as práticas contemporâneas, mas, também para medir o grau de atualidade das suas hipóteses. Pois o pesquisador possui sobre o profissional um privilégio que ele deve preservar carinhosamente: o de poder dar-se ao luxo de ter tempo para refletir e observar. Fazendo isto, evitar-se-ia de uma vez tanto os impasses das pesquisas teóricas desenvolvidas num isolamento tão necessário quanto inquietante quanto os impasses das pesquisas um pouco preocupadas demais com a sua aplicabilidade direta e imediata. Alojando-se no limite entre os desafios disciplinares e profissionais, as pesquisas arquiteturais residem inevitavelmente no desconforto de suas ambições de doutoramento e devem dirigir-se, de novo, para reconciliar a teoria e a prática. Formar pesquisadores que dominem a prática contemporânea – assim como arquitetos que verdadeiramente reflitam – é não somente contribuir para o desenvolvimento das equipes universitárias, mas também e, talvez, sobretudo, formar atores capazes de atuar em equipes profissionais e mais freqüentemente pluriprofissionais do que pluridisciplinares.

Não podemos então fechar esta reflexão sobre o doutorado em arquitetura à luz de um “saber escondido nas profissões” sem evocar os trabalhos sobre as práticas reflexivas em arquitetura, que fizeram a riqueza intelectual de Donald A. Schon, o qual se desesperava muitas vezes ao ver os arquitetos reconhecerem as sutilezas de suas próprias virtuoses cognitivas (Schon, 1994). Ora, esta reviravolta “reflexiva’’ que se organiza por detrás da questão dos estudos doutorais em arquitetura, não deverá trazer benefícios apenas aos arquitetos. Como observava Donald Schon, em um artigo para revista Journal of Architectural Education em 1984:

“The process of reflection in action- and especially,the particular version of it that I call reflective conversation with the materials of the situation – is an essential part of the artistry with wich some practitioners sometimes cope with uncertainly, uniqueness and value –conflict in all domains of professional practice. But architecture with its special tradition of practice and education is one of the few occupations in which the process is manifest, honoured, and maintained. Even there, I think, the process is still largely implicit. Architects appear to reflect very little on their own practice of reflection-in-action. Yet their practice, redescribed through reflection, might serve as a powerful exemplar for other professions”. (12)

Considerando, de fato, que pensar o doutorado é orientar a pesquisa em arquitetura e, sobretudo, construir a disciplina, considerando, além disto, que o estudo das práticas reflexivas em arquitetura é um dos maiores desafios profissionais do momento (uma espécie de ética hipermoderna do projeto de arquitetura) eu não hesitaria em parafrasear a célebre expressão de André Malraux e concluir que os próximos 40 anos da escola de arquitetura de Montreal ou serão reflexivos ou não existirão.

[tradução Sonia Marques]

notas

1
O presente artigo, traduzido por Sonia Marques, é uma versão reduzida do texto “Les Prochaines 40 années: le doctorat en architecture à la charnière des enjeux disciplinaires et professionnel”, publicado na Revista Trames, nº 15. O autor agradece à Prof. Dra. Sonia Marques pela gentileza da tradução do artigo, ao seu assistente, Lino Gomes Alves, pela tradução das legendas, e ao aluno da UFRN André Luiz Nascimento de Sousa, pela ajuda na correção e revisão do texto em português.

2
NT – O terceiro ciclo é o nível de estudo que, na França corresponde grosso modo a pós-graduação no Brasil, ou seja, preparam-se, neste ciclo, os Diploma de Estudos Aprofundados (DEA) e os Doutorados, diplomações que se seguem aos estudos superiores de segundo ciclo, licenciatura e bacharelado (licence et maïtrise).

3
NT – Os cursos de arquitetura nos anos setenta passaram a pertencer na França ao Ministério de l’ Équipement e, nos anos 1990, passaram para o Ministério da Cultura, estando, deste modo, sempre fora das universidades e do Ministério da Educação.

4
NT – Ver nota anterior.

5
Ver, por exemplo, o fascículo realizado pelo historiador Franck Fries para o Bureau de la Recherche Architecturale et Urbaine: Recherche architecturale et urbaine (1972-2002): 30 ans d’édition, Éditions du Ministère de la Culture et de la Communication, Paris, 2003.

6
NT – A Faculdade de Aménagement da Universidade de Montreal é composta pelas escolas de design, arquitetura, paisagismo e urbanismo.

7
Sobre esta questão da história do Ph.D. em aménagement consultar: FINDELI, Alain. “Entre science et pratique, discipline et profession: les études doctorales à la Faculté de l’aménagement”. Trames, nº 13, 2001, p. 55-71. Permitimo-nos entretanto questionar o rebatimento terminológico delicado dos termos, design e aménagement, julgados pelo autor na nota nº 1 como “praticamente sinônimos” (p. 69) mas que permanecem, em suma, dois anglicismos e pelo menos dois termos de estranha polissemia; uma vez que o vocábulo aménagement tem em francês uma acepção diferente daquela em uso na Faculdade, na medida em que ele é um termo da geografia, e que a palavra design não é um sinônimo de “concepção” e menos ainda de “projet”. Certamente pode-se compreender melhor a vantagem de intercambiar os termos design e aménagement na medida em que uma tal sinonímia ofereceria argumento para a interpretação da evolução epistemológica dos estudos superiores na Faculté de l’Aménagement em direção às ciências da complexidade (cf. A Maîtrise en Design et complexité que substituiria o atual MScA en aménagement). A despeito destas distorções semânticas, o artigo de Alain Findeli apresenta uma cuidadosa crítica dos impasses da pesquisa desenvolvimento (neste caso do design considerado como uma ciência aplicada adotando as teorias exógenas ao aménagement) e o autor, fino epistemólogo, ousa propostas concernentes ao que ele chama de “a pesquisa projeto”: sem contudo buscar qualificar o pano de fundo disciplinar de tais projetos, como se todos os projetos se equivalessem (sobre o assunto, ver a obra essencial: BOUTINET, Jean-Pierre. Anthropologie du projet).

8
Ver FINDELI, Alain. Op. cit.

9
DEVISME, Laurent; LUSSAULT, Michel. "Entretien". Lieux communs: Les cahiers du LAUA, nº 7, 2003, p. 163-179. Ver também: BOUVERESSE, Jacques. Prodiges et vertiges de l'analogie: De l'abus des belles-lettres dans la pensée, 1999.

10
DEVISME, Laurent; LUSSAULT, Michel. Op. cit., p. 163.

11
Preferimos conservar o neologismo ensinabilidade como a possibilidade, a capacidade de ensinar arquitetura, questão sempre questionada na história do ensino.

12
SCHÖN, Donald A. "The Architectural Studio as an Examplar for Reflection-in-Action". Journal of Architectural Education, nº 38, 1984, p. 5.

bibliografia complementar

BILODEAU, Denis. Precedents and Design Thinking in an Age of Relativization. Delft: Delft Bouwkunde Press, 1997.

CHUPIN, Jean-Pierre. “L’analogie ou les écarts de genèse du projet d’architecture”. Genesis, n° 14, numéro spécial (Édité par Pierre-Marc de Biasi et Réjean Legault ). Paris, set. 2000, p. 67-91.

CHUPIN, Jean-Pierre. "Pour une analogique du projet en situation pédagogique". Trames, n° 13, 2001, p. 91-112.

CHUPIN, Jean-Pierre; BILODEAU, Denis; ADAMCZYK, Georges. “Reflective Knowledge and Potential Architecture”. In FONTAIN, L.; BRESANI, M.; HANROT, S. et al. 2002 ARCC/AEEA Conference on Architectural Research, McGill University. School of Architecture (CD Rom), Chap.1, 2002.

DE BIASI, Pierre-Marc. “Pour une approche génétique de l’architecture”. Genesis (revue de génétique littéraire du CNRS), n° 14, Paris, septembre 2000. pp 13-66.

HOLYOAK, Keith J.; THAGARD, Paul. Mental Leaps (Analogy in Creative Thought). Cambridge: M.I.T. Press, 1995.

LICHNEROWICZ, André; PERROUX, François; GADOFFRE, Gilbert. Analogie et connaissance (Tome I- Aspects historiques, Tome II- De la poésie à la science). Paris: Maloine, 1980-1981.

LIPSTADT, Hélène; et al. The Experimental Tradition (Essays on Architectural Competitions), Princeton: Princeton Architectural Press, 1989.

NASSAR, Jack L. Design by Competition: Making Design Competition Work. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

ROWE, Peter. Design Thinking. Cambridge, M.I.T. Press, 1987.

SCHÖN, Donald A. "The Architectural Studio as an Examplar for Reflection-in-Action". Journal of Architectural Education 38, n° 1, 1984, p. 2-9.

SCHÖN, Donald A. Le praticien réflexif (À la recherche du savoir caché dans l'agir professionnel). Traduit par Jacques Heynemand et Dolorès Gagnon. Montréal: Les Éditions Logiques, 1994.

TOSTRUP, Elisabeth. Architecture and Rhetoric. Text and Design in Architectural Competitions. Andreas Papadakis Pub. London, 1999.

TZONIS, Alexander. “Huts, Ships and Bottleracks: design by Analogy for Architects and/or Machines”. In CROSS, N.; DORST, K.; ROOZENBURG, N. (ed.). Research in design thinking. Delft: Delft University Press, 1991, p. 139-164.

sobre o autor

Jean-Pierre Chupin é professor titular da Escola de Arquitetura da Faculté d’Aménagement da Universidade de Montreal, onde é responsável pelo Laboratório de Estudo de Arquitetura Potencial, L.E.A.P, que desenvolve uma grande pesquisa centrada sobretudo na questão da produção do conhecimento por ocasião dos concursos de arquitetura

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