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architexts ISSN 1809-6298


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A renovação de áreas degradadas de Montreal a partir de intervenções em habitações é o tema do artigo, que estabelece comparações com a cidade brasileira do Recife


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AMORIM, Luiz Manuel do Eirado; DUFAUX, François. Lições das margens do Rio São Lourenço:. Aprendendo com a experiência de requalificação urbana de Montreal, Canadá. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 067.04, Vitruvius, dez. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.067/397>.

Retomar a dinâmica urbana das áreas centrais das cidades tem sido o foco de interesse do planejamento municipal nas últimas décadas. A transferência do capital produtivo para zonas urbanas periféricas, de melhor acessibilidade e menor preço, contribuiu para a decadência dos centros históricos e o natural esvaziamento populacional, pondo em risco, por simples abandono, uso inadequado e ausência de controle urbano, seus bens culturais, tanto de natureza material, quanto imaterial. A salvaguarda deste patrimônio, através de sua requalificação e ocupação por novas atividades, tem sido usada como estratégia para reviver aquela dinâmica urbana tomando como parâmetro os instrumentos internacionais para a proteção do patrimônio cultural e natural.

Na cidade do Recife o fenômeno de decadência do seu núcleo histórico e dos bairros adjacentes não é diferente. Não são diferentes, também, as tentativas de reverter a transferência do capital e êxodo populacional com conseqüente empobrecimento e substituição das atividades produtivas, de lazer e moradia do centro. São duas as vertentes mais significativas desse processo: (a) aquela que pretende restabelecer uma certa ‘centralidade’ pela oferta de atividades turísticas e de lazer, com a exploração do cenário histórico sobrevivente, reconstituído para atender às demandas do turismo global contemporâneo; (b) a que reside no incentivo à moradia nas zonas centrais. A primeira teve no Pólo Bom Jesus seu modelo de sucesso, consagrado pela recuperação e pintura das fachadas em composições cromáticas livres dos registros estratigráficos, mas de forte apelo cenográfico. Já a segunda ainda busca o mecanismo mais adequado para atrair o interesse dos cidadãos para o centro histórico.

Do estoque edificado no centro do Recife, duas classes de edificações merecem atenção: as típicas edificações geminadas, de pequena largura e grande profundidade, da qual fazem parte os sobrados e as casas de porta e janela, e as edificações em altura, construídas nos últimos 60 anos. As primeiras, por suas características morfológicas, são de difícil adequação aos padrões de morar contemporâneo, pois refletem modos de morar do período colonial brasileiro e sua estrutura social de lógica patriarcal. A sua adaptação às exigências contemporâneas é de difícil solução, tendo em vista as restrições morfológicas impostas pelo tipo edilício geminado e de pouca largura. É evidente a necessidade de intervenções significativas nas suas estruturas espaciais para atender às exigências de moradores do século XXI. Como evitar, porém, que a sua ocupação acarrete a perda dos valores arquitetônicos, objetos de interesse de preservação?

As segundas, ainda são bastante jovens para obterem por parte das comunidades técnicas e leigas o interesse de sua preservação, portanto não ofereceriam, em tese, maiores problemas de adaptação às novas exigências, mas, por sua localização ainda não se oferecem como opções adequadas para o investimento privado. Ainda é mais lucrativa para o mercado imobiliário a construção de novas unidades habitacionais nos bairros da cidade.

As edificações históricas oferecem um desafio para que se constituam como um produto imobiliário de interesse para as diversas camadas da população, pois é essencial que classes média e média alta sejam atraídas para o centro, e não apenas as camadas populares, e que isso seja lucrativo para o empresariado local. As dificuldades residem em restabelecerem-se as qualidades urbanas necessárias para motivar o retorno de moradores para as zonas centrais da cidade, e, principalmente, para encorajar os atuais moradores a permanecer e investir na manutenção de suas propriedades. Para tanto, são necessários mecanismos de suporte nos seguintes âmbitos: (a) federal, na oferta de programas de financiamento atraentes para proprietários e empreendedores; (b) municipal, na criação de programas de qualificação das áreas públicas e no planejamento de ações integradas para a requalificação de edificações; (c) dos centros de pesquisa, para oferecer a expertise necessária para o planejamento e a intervenção; (d) da iniciativa privada, como agente indutor do mercado.

Alguns países vêm obtendo relativo sucesso na recuperação de suas áreas centrais, usando mecanismos de incentivo à requalificação de suas edificações históricas para fins habitacionais, particularmente por conjugarem mecanismos de financiamento governamental com a iniciativa de pequenos proprietários, construtores e incorporadores. A experiência recente desenvolvida em Montreal, na província de Quebec, no Canadá, demonstra como a política de financiamento habitacional do governo canadense tem sido capaz de oferecer moradia nos bairros centrais, de garantir a preservação das suas edificações históricas e fixar antigos moradores.

O caso de Montreal, Canadá

Montreal é a segunda cidade canadense, com uma população de 1,9 milhão de habitantes distribuídos em duas principais comunidades, a francófona, representando 63% da população, e a anglófona, correspondente a 22%.(2) Essa divisão cultural e lingüística dá origem a uma competição na ocupação dos bairros centrais, mas a divisão territorial entre as partes leste e oeste da cidade, ocupadas respectivamente pelas comunidades francófona e anglófona, asseguram uma maior homogeneidade nos subúrbios, tanto do ponto de vista cultural, quanto de classe social.

Do ponto de vista do estoque edificado, 21% das moradias de Montreal foram construídas antes de 1946, 28% até 1961 e 22% antes de 1971. No centro da cidade, urbanizada antes de 1946, onde mora metade da população, o estoque de moradias pré-1946 corresponde de 1/ 3 a 3/4 do total. E destes, 85% são formadas por uma edificação típica de Montreal, conhecidas por tenements by the municipal administration (3).

Os tenements são edificações geminadas, modestas do ponto de vista construtivo e estilístico, construídas em terrenos com largura média de 7,00m (entre 5,50m e 11,00m) e compostas por apartamentos sobrepostos, predominantemente em unidades de dois e três pavimentos. Uma particularidade deste tipo de edificação é a provisão de acesso externo exclusivo para cada apartamento e o recuo frontal, considerados avanços urbanísticos no momento de sua implantação (4) Sua planta típica em ‘L’ permite a iluminação de todos os seus ambientes. São chamadas localmente de ‘plex’, acompanhado de prefixo para descrever o número de habitações, como em duplex [2], triplex [3], etc. Os tipos mais comuns acomodam de 3 a 4 habitações e raramente são encontradas com mais de 6.

A atual aceitação dos plexes é o resultado de um processo de implementação de políticas públicas. O governo canadense desenvolveu, no final dos anos 40, uma avaliação das condições de oferta habitacional do país, cujo relatório apresentou críticas severas aos tenements por não atenderem às demandas funcionais e estéticas modernas, como a deficiência das condições sanitárias, o estado de conservação e o layout tradicional, incompatível com os conceitos de morar moderno.(5) Recomendava-se a adoção de modelos habitacionais modernos, como os desenvolvidos na Grã-Bretanha, pelo extinto London County Council. Esta política resultou na demolição de edifícios e quarteirões históricos.

Nos anos 60, o governo municipal inicia uma política de preservação de edificações históricas com o interesse exclusivo de sua conservação, mas não necessariamente no seu uso para atender a demanda por novas moradias.(6) No entanto, os resultados foram desapontadores. Os custos de expropriação, demolição, renovação e reconstrução, tornaram-se mais altos do que o previsto, principalmente para o capital financeiro, cujo retorno do alto investimento era lento. Além disso, a administração condominial, o custo de manutenção das grandes estruturas habitacionais e a complexa relação entre inquilino e proprietário, provaram ser incompatíveis com os serviços públicos existentes e, finalmente, ineficientes como modelo de oferta de habitação barata e acessível para uma grande camada da população.

No início dos anos 70, a política habitacional muda para dar suporte aos investimentos privados de renovação e construção de novas habitações.(7) Os incentivos fiscais foram direcionados para os proprietários dos imóveis e pequenos empreendedores, mas orientados para dar suporte a investimentos em unidades isoladas. Esta política favoreceu a emergência de um mercado privado, adequado à propriedade do solo e aos tipos edilícios mais comuns. Desta forma, os investimentos voltados para a recuperação dos plexes tornaram-se rentáveis, principalmente por Montreal ser uma cidade composta predominantemente por inquilinos (66% da população) e por pequenos proprietários de duplexes e triplexes, que encontram no mercado de aluguel de imóveis uma fonte de subsistência.

Os subsídios habitacionais

A oferta de habitação é um fenômeno local: as demandas de mercado são criadas pelas oportunidades econômicas locais e depende de recursos regionais, como um sítio, capital, e a expertise local de arquitetos, engenheiros, notários e trabalhadores da construção civil. A constituição canadense estabelece que habitação é originalmente uma jurisdição da província ou estado, delegada às municipalidades.

O governo do Quebec, estado canadense no qual a cidade de Montreal está situada, criou uma política de financiamento complementar ao do governo federal para subsidiar programas de renovação administrados pelo município. O princípio do programa é a oferta de habitação acessível e, para isso, uma lei de controle de valores de aluguéis assegura que os proprietários recebam um justo retorno de 5 a 6% dos seus investimentos.(8) Para tanto, o governo, através do Régie du logement, define as taxas de aumento anual de aluguéis, tomando com base as flutuações inflacionárias, podendo adotar aumentos suplementares, caso o proprietário invista no imóvel. Esta política pró-ativa também envolve programas de renovação urbana com objetivos específicos, como oferta de moradia para população de baixa-renda, prioridade de investimentos na recuperação de sítios históricos ou a ocupação de edifícios abandonados ou terrenos vazios.

É importante, no entanto, destacar os princípios básicos que guiam esta política habitacional, antes de estabelecer as limitações operacionais de alguns destes programas. Em Montreal, a oferta habitacional é essencialmente privada. Habitação pública, de propriedade do estado, representa menos de 1% do estoque habitacional. Um estudo sobre o estado de Quebec estima que 88% dos proprietários de imóveis são pequenos proprietários, com menos de 6 unidades habitacionais, principalmente formados por ‘plex’. (9) Entre eles, 45% dos inquilinos são vizinhos dos proprietários do imóvel em que residem.

Os subsídios governamentais existentes, apoiados igualmente pelos governos estadual e municipal, são incentivos para acelerar a renovação de habitações pelo setor privado, onde as forças do mercado não oferecem condições para um retorno financeiro justo para os investidores. O raciocínio dos governos é que a melhoria habitacional aumenta o valor da propriedade que, conseqüentemente, aumenta os impostos municipais e reduz, indiretamente, as desigualdades sociais.

O programa de renovação objetiva requalificar edifícios antigos adequando-os aos padrões atuais de construção, dentro das seguintes prioridades: (a) edifícios residenciais em uso; (b) edifícios de uso misto; (c) edifícios desocupados e (d) a conversão de edifícios não- residenciais em habitações. Os subsídios também são ajustados de acordo com a operação e os agentes. Por exemplo, 75% dos custos podem ser financiados se o proprietário morar no imóvel, caindo para 60% para imóveis alugados, 40% para habitações renovadas e para 30% compradas no mercado, caso atendam a alguns critérios financeiros. Além disso, a obra deve ser executada por construtores acreditados e trabalhadores sindicalizados, supervisionados por arquitetos e engenheiros.

A implementação do programa apresenta algumas limitações. O subsídio máximo não vem acompanhando o custo da construção. Atualmente, em Montreal, o custo médio de construção é de 2.247,20 R/m2, (10) e a valor de subsídio representa de 50% a 30% do investimento. Em paralelo, os aluguéis máximos estabelecidos estão abaixo do valor de mercado. A qualidade de construção é elevada, porque os pequenos construtores competem pelo mercado, mas a qualidade arquitetônica é questionável, porque arquitetos nem sempre estão envolvidos nas obras de renovação.

Apesar disso, a política é um sucesso como um incentivo à renovação do estoque edificado com o envolvimento dos proprietários, pequenos construtores e profissionais. O favorecimento de operações urbanas de pequeno porte também se acomoda à tipologia habitacional e assegura um processo contínuo e gradual que pode ser ajustado às variações de mercado e novas demandas a cada 3 ou 5 anos. O retorno fiscal contrabalança o custo dos subsídios, com a venda, salários e impostos prediais.

Alguns exemplares recentes

O programa de renovação urbana em Montreal permitiu, inicialmente, nos anos 70, a preservação e manutenção do estoque habitacional edificado. Hoje, a demanda habitacional nos bairros centrais da cidade excede qualquer previsão efetuada no pós-guerra, que planejara a concentração de atividades comerciais e de serviços nestas áreas, com o deslocamento da moradia para os subúrbios. Hoje, jovens casais, solteiros e famílias procuram esses bairros antigos pelo acesso aos serviços públicos (hospitais, universidades, bibliotecas, museus, transporte coletivo, etc.), à variedade de oferta de serviços especializados, a um comércio diverso e vibrante, e a um ambiente social dinâmico, mas também pela conveniência dos tradicionais ‘plexes’.

O arquiteto David Morin é um destes pequenos empreendedores que se valem das oportunidades oferecidas pelo sistema de financiamento canadense para investir no mercado imobiliário. Um dos seus primeiros projetos de renovação foi em um triplex situado na Rua Bagg, construído em 1911 cujas características arquitetônicas originais foram preservadas, apesar do precário estado de conservação. A renovação, realizada em 2000, implicou na substituição das instalações elétricas e hidrosanitárias e mudança das esquadrias externas, garantindo o atendimento às exigências municipais. Seu interior foi preservado e seu acabamento original conservado, particularmente os pisos e detalhes em madeira e estuque, mantendo sua ambiência original. O atual proprietário mora no apartamento de cobertura e aluga os demais como complementação de sua renda mensal.

Já o quatreplex da Rua Coloniale, construído em 2001, substitui uma edificação arruinada. Neste caso, o projeto do novo edifício segue o tipo triplex original existente, construído em 1870. A composição articula proporções convencionais, típicas do tipo habitacional, com materiais e detalhes contemporâneos. Nesses exemplares percebe-se o interesse em manter um tipo edilício consagrado e sua organização espacial e atender aos critérios de conservação da paisagem urbana e flexibilidade do uso do espaço interno (flexibilidade entendida como a possibilidade de adequar a estrutura espacial a diversos usos). Um fator importante é a manutenção do acesso externo para as diversas habitações contidas nos plexes, garantindo uma relação direta das unidades com a rua. Como conseqüência, as áreas condominiais são praticamente inexistentes, reduzindo-se os custos de manutenção.

O triplex da Rua Parc, ainda em construção, foi construído em 1890 estava abandonado desde 1998. Está situado próximo ao centro da cidade e de universidades e, por este motivo, o apartamento original de 160,00 m2 foi adaptado para receber unidades de menor área (de 50,00 a 120,00 m2) para atender a demanda dos típicos moradores da área. Apesar das modificações e ampliações, o padrão espacial adotado repete a lógica tradicional de espaços interconectados para prover uma maior flexibilidade de ocupação.

De volta ao Recife: o projeto de incentivo à moradia no centro

Em um momento de evidente redução da renda familiar da classe média brasileira, a oferta de moradia econômica nas áreas urbanas centrais pode atrair aquela camada da população que deseja reduzir seus gastos mensais, seja pela diminuição do compromisso do orçamento familiar com a moradia (redução do preço de aluguel, taxa condominial e impostos municipais) e transporte, ou para aqueles que buscam outro estilo de vida, no qual a relação com o espaço público seja mais presente e a proximidade com o centro de comércio e de serviços desejável.

Uma das primeiras ações de estímulo à moradia no centro foi ensaiada pela administração municipal, em 1997, através do projeto de restauração e adaptação dos imóveis 135 e 143 da Rua Vigário Tenório, no Bairro do Recife, de propriedade da Santa Casa da Misericórdia, como parte do programa Monumenta-BID (11). O programa adotado, definido pela equipe responsável pelo programa no Recife, procurava atender às demandas do morar contemporâneo e ajustar-se às particularidades de uma área urbana desabitada e ocupada por atividades de serviços. O conjunto abrigaria três escritórios ou lojas, no térreo, e 5 habitações nos pavimentos superiores.

O projeto, desenvolvido por Locus Arquitetura, (12) propunha uma engenhosa solução de intercalação de planos para multiplicar o espaço útil delimitado pelo volume existente, compatibilizando os pisos propostos às aberturas existentes, e assim garantir a iluminação e ventilação necessárias. Os espaços úteis seriam delimitados por desníveis, permitindo a continuidade visual entre eles. Ao futuro morador caberia, se desejasse, inserir partições internas para gerar um maior gradiente de privacidade, mas a impossibilidade de isolamento acústico dos ambientes estabeleceria restrições aos usos pretendidos ou ao comportamento dos seus usuários. Seria uma estrutura espacial mais adequada a solteiros e casais sem filhos.

Pode-se presumir que o empreendimento foi concebido para um público interessado em um novo ambiente doméstico, que refletisse novas formas de convívio familiar, que não considerasse a oferta privada de estacionamento e ampla área lazer e serviços – grande apelo dos grandes empreendimentos imobiliários da cidade – como itens importantes para a escolha da sua moradia. Ou seja, procurava-se por um urbanita natural de áreas densamente ocupadas, cujas necessidades básicas de serviço e lazer, por exemplo, são oferecidas e acessíveis pela cidade aberta que o envolve– aquela sem muros.

O projeto não foi executado por diversas razões, dentre elas a dificuldade de motivar empreendedores privados para investir na oferta de unidades habitacionais no centro histórico do Recife. Obras foram realizadas nos imóveis para adaptá-los para a sede do Centro Cultural Movimento Pró-Criança. O mercado imobiliário local é bastante ativo, mas tem investido em produtos voltados para a classe média e dentro de padrões habitacionais já consagrados e de fácil consumo em tempos de alta competitividade (13). Investir em habitação no Bairro do Recife seria um grande risco. De fato, o bairro, origem da cidade, foi sendo paulatinamente abandonado por seus moradores e hoje apresenta a menor população residente da cidade. Para que o projeto tivesse sucesso, seria necessário superar a natural reação das populações de classe média e alta a adotar o bairro do Recife para moradia, mesmo após o relativo sucesso na ocupação de alguns logradouros para atividades turísticas e de lazer. Para tal empreendimento, ter-se-ia que restaurar o urbanita recifense que, ao optar pela vida suburbana, esqueceu as vantagens da moradia no centro.

O exemplo dos imóveis da Rua Vigário Tenório também revela as dificuldades de adaptação do sobrado recifense às exigências de moradia contemporânea, particularmente quanto às restrições de ocupação impostas por um plano estreito e profundo e as exigências para a conservação de suas características originais, principalmente as que concernem à preservação das coberturas (declividade, continuidade e material). Os autores evitaram, deliberadamente, qualquer tentativa de manter ou reconstituir o padrão espacial pré-existente com o interesse de oferecer uma espacialidade contemporânea, adequada aos desejos de uma pequena parcela da população. Desta forma, as ações de restauração dos imóveis restringiram-se às suas dimensões físicas. (14)

Esse fato também nos revela a necessidade de desenvolver metodologias de análise do objeto arquitetônico que objetivem o entendimento da cultura de morar das diversas camadas sociais da cidade, potenciais clientes do programa de moradia no centro, mas em particular aqueles que habitam em áreas históricas. Qualquer programa de oferta de moradia nestas áreas deveria observar estes requisitos e estabelecer as soluções mais adequadas para viabilizar o seu uso, sem entrar em contradição com os interesses de preservação preconizados internacionalmente.

Em busca de novos caminhos

Como, então superar as contradições inerentes ao programa de incentivo à moradia no centro? Como contemplar as exigências de conservação de estruturas históricas, com as demandas contemporâneas de moradia?

Atualmente a Prefeitura da Cidade do Recife, através do Departamento de Projetos Especiais, desenvolve o projeto Morar no Centro voltado para a requalificação de edificações do sítio histórico do bairro da Boa Vista, parte do que se convencionou chamar de centro expandido (15). A estratégia adotada pelo grupo de técnicos residiu na identificação do padrão de uso e ocupação da área, fonte para a definição de diretrizes para incentivo à moradia e adequação de projetos para as fontes de financiamento oficiais, especificamente para o Programa de Arrendamento Residencial – PAR, da Caixa Econômica Federal. (16) Assim, foram selecionados os imóveis que melhor atendessem aos critérios de financiamento e oferecessem melhores condições para adequação à moradia. Desenvolvem-se atualmente os mecanismos de envolvimento da população residente e empreendedores privados, juntamente com os projetos preliminares de adaptação de imóveis selecionados para fins habitacionais.

A fase inicial do projeto inspira-se no modelo Pólo Bom Jesus (17), com a recuperação e pintura das fachadas das edificações situadas na Rua Velha, significativa artéria recifense, cuja origem remonta ao século XVIII. A intenção é criar um interesse coletivo sobre a área, aumentar o sentimento de auto-estima dos moradores e proprietários dos imóveis e assim criar uma motivação para investimentos na área. No entanto, a dificuldade na implantação do programa e a baixa receptividade dos setores imobiliários sugerem que os sistemas de financiamento existentes e os programas patrimoniais municipais ainda são insuficientes, particularmente aqueles que, como em Montreal, possam atrair o investidor de pequeno porte, o pequeno capitalista.

O caso de Montreal oferece uma interessante experiência para reflexão. Naturalmente a cultura local e suas formas de moradia, bem como os incentivos e programas de financiamento oferecidos pelo governo canadense, são distintos dos nossos. No entanto, os programas de financiamento voltados para o pequeno empreendedor e o proprietário de imóveis em áreas de interesse de preservação, e a preocupação em garantir intervenções de qualidade, principalmente quanto à preservação das características originais dos imóveis e sua atualização para os requisitos de segurança contemporâneos, vêm revelando sua eficácia, com impactos significativos no contexto urbano.

No Brasil, e particularmente no caso do Recife, precisam-se encontrar mecanismos eficientes que conjuguem educação patrimonial, qualificação dos diversos profissionais da construção civil para intervirem adequadamente nos imóveis históricos, fontes de financiamento adequadas ao investimento de pequeno porte e uma política de conservação implementada pela municipalidade que também valorize a qualificação dos espaços públicos e o controle urbanístico. Para tanto, deve-se traçar uma política que considere empreendimentos voltados para diversas classes sociais, fixando atividades e atuais moradores, e incluindo usos e equipamentos necessários para dar suporte à moradia.

Um possível caminho para a geração de um mercado próprio para o pequeno investimento em áreas centrais é o instrumento da transferência do direito de construir como regulamentado pelo Estatuto da Cidade (18). O instrumento urbanístico estabelece o direito do proprietário do imóvel de alienar para terceiros o direito constituído de construção. Rose Campans, em trabalho recente (19), discute as possibilidades de utilização destes instrumentos em áreas de preservação e os mecanismos de controle social do mercado dos títulos criados. Caberia à administração municipal estabelecer os índices adequados para a geração de interesse nos títulos providos por áreas de interesse de preservação e requalificação. Este mecanismo pode complementar aqueles já utilizados no Recife, como a dedução do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU de imóveis tombados ou  a isenção de Imposto Sobre Serviços – ISS para empresas instaladas em algumas áreas de preservação, mas que têm um efeito limitado, principalmente para a população residente de renda baixa.

Os financiamentos federais, particularmente o PAR, merecem revisões. No caso do PAR, é importante que sejam revistos os critérios de liberação de recursos para edificações de uso misto. As zonas centrais que ainda mantém uma vitalidade urbana são aquelas que têm uma grande densidade de atividades comerciais nos térreos das edificações, tendo, muita vezes, os pavimentos superiores ociosos, prontos para receber uma demanda de trabalhadores do comércio e de instituições públicas.

Finalmente, é importante destacar propriedades morfológicas do conjunto urbano edificado que devam ser utilizadas como parâmetros para a intervenção nestes imóveis, particularmente no que se refere à salvaguarda da estrutura espacial típica dos sobrados, como observado nos projetos de recuperação dos imóveis em Montreal. O pretenso anacronismo das soluções planimétricas não deve ser  encarada como um empecilho.

É importante destacar que esta política de requalificação urbana contrasta com os recentes investimentos imobiliários no centro do Recife, que seguem o mesmo padrão especulativo encontrado em outras áreas da cidade: grandes empresas do mercado imobiliário investem em áreas de interesse paisagístico utilizando sistema de financiamento direto.  Destes investimentos recentes, as torres gêmeas de 40 pavimentos, denominadas de Pier Duarte Coelho e Pier Maurício de Nassau, causam polêmica entre técnicos pelo argumento utilizado pelos investidores de sua capacidade de mobilizar o capital imobiliário para o centro degradado, ou seja, o empreendimento irá catapultar novas ações para a recuperação dos bairros de Santo Antônio e São José.(20) Mais grave, sugere-se que o próprio empreendimento tem efeito irradiador de salvaguarda do patrimônio histórico com a mobilização de moradores de classe média alta para residir no centro. Estes processos de gentrificação baseados na criação de novas fronteiras para reprodução do capital imobiliário têm sido uma oportunidade para investimentos e não uma opção pela requalificação das estruturas edilícias e urbanas e valorização da dimensão sócio-cultural que dá caráter aos sítios centrais.(21)

O interesse, afinal, é procurar mecanismos mais dinâmicos de intervenção em áreas urbanas centrais que contem com diversos agentes atuando de forma independente, mas coordenada segundo um planejamento municipal, e não a introduzir o modelo clássico de reprodução do mercado imobiliário. A criação de um mercado privado voltado pequenos empreendedores pode ser mais eficiente do que a intervenção estatal ou do grande capital imobiliário.

notas

1
Os autores agradecem a David Morin, Locus Arquitetura e a Prefeitura da Cidade do Recife através dos técnicos do Departamento de Projetos Especiais pelas informações e cessão de imagens e plantas.

2
VENNE, Michel Direction. L’annuaire du Québec 2004. Montreal, Fides, 2004.

3
DUFAUX, François. A new world from two old ones: the evolution of Montreal's tenements 1850-1892, Urban Morphology, V4, n. 1, 2000, p. 9-19.

4
DESPRÉS, C e LAROCHELLE, P., Modernity and tradition in the making of terrace flats. Québec City, Environments by Design, v. 1, n. 2, nov. 1996, p. 141-161.

5
NOBBS, P.; TOMBS, G., A report on Housing and Slum Clearance for Montreal. Montreal, Montreal Board of Trade, 1935.

6
LEGAULT, G. La ville qu'on a bâtie, 1956-1986. Montréal, Liber, 2002.

7
idem.

8
David Hanna conclui em sua tese de doutorado que índices semelhantes de retorno dos investimentos eram comuns no final do século XIX. Esta informação também é destacada por historiadores que descrevem o desenvolvimento habitacional durante o regime colonial francês durante o século XVIII. Para maiores detalhes consultar: HANNA, David, Montreal, A City built by Small Builders, 1867-1880. Montréal, McGill University, PhD thesis; DECHENE, Louise, Habitants et marchands de Montréal au XVIIe siècle. Paris, Plon, 1974; Régie du logement du Québec: www.rdl.gouv.qc.ca.

9
Société d’Habitation du Québec, www.habitation.gouv.qc.ca.

10
O equivalente aos 1200$ cdn/m2  em moeda local, convertida com a taxa de câmbio de 18/11/2005.

11
Programa de Revitalização de Sítios Históricos através da Recuperação do Patrimônio.

12
O projeto foi desenvolvido sob a coordenação do arquiteto Nílson Andrade e a colaboração de Antônio Montenegro, Noé Sérgio do Rêgo Barros e Romero Pereira.

13
AMORIM, Luiz e LOUREIRO, Claudia. Alice's mirror: housing marketing strategies and the creation of the ideal home In: Proceedings of the Fourth International Space Syntax Symposium. Londres, University College London, 2003, p. 22.1 – 22.16.

14
LOUREIRO, Claudia; AMORIM, Luiz. Por uma conservação do espaço da arquitetura. In: Projetar 2005 – II Seminário sobre ensino e pesquisa em projeto de arquitetura: rebatimentos, práticas, interfaces, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ, 2005.

15
DPE/URB-Recife (2003) Perímetro de reabilitação integrada – PRI – Boa Vista apresentado na Oficina de trabalho sobre a reabilitação de áreas urbanas centrais, realizado em Fortaleza, 11-12 de dezembro de 2003, Caixa Econômica Federal.

16
O PAR estabelece que para a obtenção de financiamento as edificações devem estar localizadas nas regiões metropolitanas e nos centros urbanos de grande porte (população mínima de 100 mil habitantes), atendendo a população de renda familiar de até 6 salários mínimos, em um sistema de arrendamento, com opção de compra ao final do contrato.

17
Projeto da Prefeitura da Cidade do Recife de reabilitação de área no centro histórico com ênfase na recuperação do suporte físico das fachadas e na sua pintura com padrões cromáticos atuais. Discussões sobre o projeto podem ser vistas em: ZANCHETTI, Sílvio. Revalorização de áreas centrais – a estratégia do Bairro do Recife. In: ZANCHETTI, Sílvio, MARINHO, Geraldo e MILET, Vera (org) Estratégias de intervenção em áreas históricas. Recife, MDU/UFPE, 1995, p. 100-109; GOMES, Geraldo. Por que o Bairro do Recife? . In: ZANCHETTI, Sílvio; MARINHO, Geraldo; MILET, Vera (org) Estratégias de intervenção em áreas históricas. Recife, MDU/UFPE, 1995, p. 89-94.

18
Lei Federal no. 10.257, de 10/7/2001. www.interlegis.gov.br.

19
CAMPANS, Rose. A transferência do direito de construir como instrumento de preservação ambiental urbana In: LIMA, Evelyn e MALEQUE, Míria (orgs.) Cultura, patrimônio e habitação: possibilidades e modelos. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2004.

20
AMORIM, Luiz e LOUREIRO, Claudia. A pele do cordeiro: sobre projeto de gentrificação no Recife, Brasil. In: XI Seminario de Arquitectura Latinoamericano, Oaxtepec, 2005.

21
SMITH, Neil. The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. London, Routledge, 1996.

sobre os autores

Luiz Manuel do Eirado Amorim é professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, desenvolve pesquisa no Laboratório de Estudos Avançados em Arquitetura – lA2 , juntamente com a professora Claudia Loureiro, sobre requalificação de edificações para fins habitacionais com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

François Dufaux é professor da École d'Architecture, Université Laval, Québec City.

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