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architexts ISSN 1809-6298


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O artigo procura refletir sobre qual o significado e quais as implicações para os habitantes da cidade de São Paulo da recém-aprovada lei municipal que proíbe a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não


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LEONIDIO, Otavio. São Paulo sem outdoors. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 077.05, Vitruvius, out. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.077/310>.

A exemplo do que geralmente ocorre quando se trata de discutir as coisas da cidade, o debate sobre a proibição de outdoors no espaço público paulistano segue incipiente. A principal razão disso não é a fartura de depoimentos dos usuários da cidade em geral mas a insuficiência de enunciados daqueles de quem era justo esperar manifestações a priori mais consistentes: arquitetos, paisagistas, urbanistas, vale dizer, os especialistas na forma da cidade. Mais do que produzir argumentos de autoridade, a intervenção dos especialistas tem, como sempre, uma função específica: tornar públicos conceitos, noções, categorias porventura aptos a fundamentar argumentos operativos, quer dizer eficazes no encaminhamento da disputa instalada. Uma disputa cujo resultado, convém não esquecer, definirá o que será uma dimensão importante da vida dos moradores da cidade de São Paulo.

A pergunta crucial a ser respondida atualmente é: qual o significado, para os cidadãos, da lei recém-aprovada, ou seja, o que, uma vez implementada, a lei implicará para os habitantes da cidade?

O texto da lei diz que, a partir do início do ano que vem, “fica proibida, no âmbito do município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não”. O alcance da proibição dependerá, bem entendido, do conceito de “anúncio publicitário” definido pela ou subjacente à lei. Uma leitura abrangente poderia sugerir o banimento de todo e qualquer aparato de publicidade, algo que naturalmente não irá acontecer. Pois, neste caso, além da sinalética de orientação urbana, estaria banida do espaço urbano toda sorte de letreiros e de luminosos apostos a edificações que, dada a natureza da atividade que exercem, buscam, legitimamente ou não, destacar-se na paisagem urbana (não apenas, portanto, letreiros e luminosos de estabelecimentos comerciais e de serviços privados – lojas, agências bancárias, cinemas, postos de gasolina –, mas também de edifícios públicos voltados ao atendimento aos cidadãos: postos do INSS, fóruns de pequenas causas, postos de saúde). Elemento constitutivo das cidades moderna e contemporânea (a cidade do fluxo do capital espacialmente ordenado), este tipo de anúncio publicitário sempre necessitou de ordenação, jamais de banimento. Uma ordenação, de resto (e não por acaso), destinada a limitar o formato e as dimensões do dispositivo publicitário vis-à-vis da forma e das dimensões da edificação que o abriga. Em jogo, portanto, no caso da lei recém aprovada, está a capacidade de definir uma relação razoável entre formato e dimensões do dispositivo publicitário e forma e dimensão da edificação que o abriga, impedindo que a percepção desta não seja anulada pela visualização daquele.

De toda evidência, portanto, o tema fundamental da lei são dois tipos específicos de anúncio publicitário: o outdoor por assim dizer tradicional (suporte plano de grandes dimensões, normalmente retangular, instalado por sobre muros ou mesmo inteiramente independente de edificações) e o anúncio (sempre de grandes dimensões) aplicado diretamente sobre as fachadas – sobretudo as empenas cegas laterais – dos edifícios da cidade (preferencialmente os de maior visibilidade). Diferentemente dos exemplos analisados anteriormente, um e outro constituem verdadeiras ameaças à paisagem urbana pois sua principal característica é não apenas conspurcar mas acintosamente desestruturar e no limite destruir essa paisagem. Se, como parece ser o caso, o objeto da lei são sobretudo esses dois tipos de aparatos, ela é mais do que bem-vinda e deve-se ansiar e trabalhar para que seja adotada nas demais cidades brasileiras.

O que fundamenta este juízo é um conceito de paisagem urbana segundo o qual esta é entendida fundamentalmente como uma relação. Uma relação muito especial entre conformação por assim dizer “natural” do território (o que inclui não apenas a topografia mas todos os elementos que constituem o dado natural da paisagem – vegetação, rios, lagoas, o céu do lugar) e o conjunto das manifestações humanas vividas e edificadas nesse território – tudo aquilo que, ao transformar em paisagem urbana o que outrora foi apenas paisagem natural, constitui-se em lugar de memória, de identidade e de projeto da cidade. Ora, é justamente isso, essa relação única, peculiar e sempre viva, o que outdoors e painéis de fachadas tendem a desestruturar. Pois, no limite, o principal efeito de sua presença no espaço público (por conta de sua quantidade, de suas dimensões e sobretudo da natureza das imagens que veiculam) é anular a participação dos habitantes da cidade nos fenômenos estruturantes da paisagem urbana – ressalte-se, não apenas a percepção da relação entre natural e construído mas sobretudo a participação em tudo o que na paisagem urbana e apenas por meio da paisagem urbana conforma a cidade enquanto fenômeno vivo e atual: a memória do esforço construtor, ao longo do tempo, dos homens e mulheres daquela cidade; os usos, ocupações, disputas dos homens e mulheres daquela cidade; a imaginação lançada no futuro, sempre a partir do que existe, pelos homens e mulheres daquela cidade. Absorvidos pela força avassaladora das imagens (seria interessante somar a metragem quadrada de sua exposição anual numa cidade como São Paulo), arrancados a todo instante da dimensão física de sua existência urbana, os passantes são cada vez menos os habitantes daquela cidade e cada vez mais os consumidores desterritorializados de um universo no qual, como previa Guy Débord, é impossível exilar-se.

Exagero? A análise sobretudo dos chamados edifícios-outdoor é uma eloqüente demonstração de que não. Pois suas imagens de grande dimensão não se limitam a se destacar na paisagem: não satisfeitos em massacrar os edifícios à sua volta, essas imagens compulsórias literalmente abduzem o edifício sobre o qual estão apostas, o qual, do ponto de vista da paisagem (ou da percepção da paisagem), literalmente deixa de existir. O fato de não haver, na maioria absoluta dos casos (tenha-se em mente os edifícios residenciais), qualquer relação entre o conteúdo do que se anuncia no painel e o uso (ou os usos) do edifício-suporte apenas confirma o caráter destruidor dessas imagens com relação aos edifícios em que se situam (mais correto seria dizer dissituam).

Neste caso, repare-se, o dispositivo publicitário tem um efeito diametralmente oposto das mal-afamadas pichações (não falo do grafite – manifestação cada vez mais caracterizada por veleidades, digamos, artísticas; falo das pichações mesmo). Pois enquanto os outdoors implicam a sublimação do construído e a desterritorialização do cidadão, as pichações valorizam os elementos estruturantes da paisagem urbana e, assim, concorrem para a afirmação da experiência urbana. De fato, diferentemente do anúncio publicitário, o que define a pichação é o pertencimento à superfície sobre a qual foi feita. Índice de uma mão e de um corpo que estiveram ali, a pichação é a manifestação visível de uma existência essencialmente urbana; da ação de quem, clandestinamente, “desfruta” dos elementos constitutivos da paisagem urbana e assim – e só assim – define a sua identidade (vi recentemente a fotografia de uma casa projetada por Paulo Mendes da Rocha cujo pilotis tinha sido objeto de pichação. Reconhecendo naquelas parede a extensão do espaço urbano, o pichador deixou ali sua marca, como que atestando que o discurso de Mendes da Rocha sobre a relação entre arquitetura e cidade não era vazio).

Supor de resto que o espaço em questão (as fachadas dos edifícios) pertence aos proprietários dos imóveis (os quais supostamente teriam total liberdade para explorá-los) é desconsiderar o crucial papel que ele desempenha na construção da paisagem urbana e por extensão da própria cidade; é desconsiderar que, em grande medida, as fachadas dos edifícios pertencem a todos os habitantes da cidade e não apenas aos usuários e/ou proprietários dos edifícios (donde, por definição, a justa prerrogativa da municipalidade de legislar sobre elas). Pois, do ponto de vista do habitante da cidade, a fachada de um edifício não significa apenas a separação entre dois universos independentes e alheios – o público e o privado. Significa que, na cidade, a separação entre público e privado – entre interior privado e exterior público – é uma separação construída segundo determinados princípios. Princípios que, se por um lado (no caso da cidade capitalista), supõem o direito à propriedade privada, por outro explicitamente reconhecem a função urbana, digamos, das edificações privadas.

Daí serem as fachadas, sobretudo as fachadas meeiras e aquelas situadas sobre o alinhamento, elementos tão importantes da construção de uma cidade capitalista republicana: suas superfícies internas (a parede de meu apartamento, de meu escritório) pertencem a mim e só a mim (usuário e/ou proprietário do imóvel); suas superfícies externas pertencem a mim e simultaneamente a todos os meus concidadão; contém e expressam a dimensão pública da propriedade privada. Donde outra flagrante impostura dos outdoors de fachada: seu “público-alvo” não é o passante em geral, o habitante da cidade; é o consumidor na cidade. Todos aqueles que não são (não podem, não querem ser) consumidores de revistas masculinas, gadgets eletrônicos, tênis de R$ 400,00 etc são portanto usurpados toda vez que uma fachada é invadida por um outdoor (eis um bom exemplo de “invasão urbana”). A visão do sol refletido no reboco envelhecido de uma empena cega pertencia a todos os habitantes da cidade; a imagem do aparelho de telefone celular que muitos não podem ou não querem comprar aposta sobre ela já não os pertence mais. Quem os indeniza por isso? O fato de a “invasão” das fachadas ocorrer na maior parte das vezes com o consentimento das prefeituras (e em detrimento de um projeto arquitetônico por estas anteriormente aprovado) não legitima em absoluto a ação; apenas atesta a inépcia (ou o cinismo) de um administrador municipal que, movido quase sempre por irrefreável sanha arrecadadora de taxas e impostos, ou ignora ou despreza a razão de ser da legislação edilícia com a qual opera (1).

Em jogo portanto quando se trata de discutir a presença pervasiva dos outdoors no território urbano está a manutenção da própria existência urbana ou, pelo menos, de certo ideal de existência urbana. Um ideal de existência urbana fundada na crença na força construtora da experiência (eminentemente física) coletiva e compartilhada no território da cidade. A crença portanto na importância de uma dimensão única da existência – a existência urbana.

E por que, afinal, essa dimensão da existência seria tão importante? A resposta me parece simples. Nossa experiência do mundo das formas, sobretudo nossa experiência visual do mundo das formas é cada vez mais determinada pela disseminação de um certo tipo de imagem – um certo tipo de arranjo de imagens, cuja eficácia repousa na capacidade de estímulo do receptor (leia-se do consumidor potencial). É o padrão imagético de eleição do dispositivo publicitários ainda hoje mais popular, a televisão, mas nada faz crer que ele se restrinja ao universo televisivo. Ao contrário: a tendência é a extensão desse padrão a todos os domínios da existência, ou pelo menos, por todos os domínios da existência passíveis de serem açambarcados pelo mercado. O espaço das capas dos livros dá bem a medida dessa tendência: a cada dia que passa vai ficando mais difícil encontrar um livro cuja capa não nos imponha uma imagem “sugestiva” e “estimulante” – sugestiva e estimulante, bem entendido, para a compra, não de um texto literário, mas de uma mercadoria. O mesmo tem ocorrido com edifícios.

A quantidade de edifícios “envelopados” e literalmente abduzidos por imagens publicitárias cresce a cada dia. A situação limite (bastante plausível em tempos de conversão, melhor dizendo, de colonização digital) seria uma cidade sem edifícios – uma cidade-só-imagens. Mas seria esta ainda uma cidade? O que, essencialmente, diferiria a existência nesta cidade da existência no espaço televisivo, no cyber-espaço etc? (a falta de resposta para essas perguntas responde, provisoriamente pelo menos, uma objeção potencial legítima à tese da preservação da cidade das imagens publicitárias: por que estas não poderiam legitimamente ser incluídas entre as manifestações construtoras da paisagem urbana e da cidade? Dito de outra maneira, por que edifícios e os vazios entre eles seriam manifestações mais legítimas que anúncios publicitários? A resposta provisória é: pela simples razão de que, até onde se pode avaliar, as imagens publicitárias não reconhecem limites à sua expansão territorial, e, a menos que não nos incomodemos a priori com o panorama de um mundo universalmente tomado por elas, é preciso conter seu avanço sobre domínios específicos da existência, a começar pelo território idealmente democrático da cidade).

A cidade moderna surgiu e se desenvolveu, depois da Revolução Industrial, muito em função da dinâmica do capital. Como disse Argan, a cidade do primeiro pós-guerra era um organismo produtivo, um aparelho que precisava se libertar de tudo o que emperrava seu “funcionamento” (2). Era, pois, sob muitos aspectos, uma cidade nova, diversa da cidade pré-industrial. Ainda assim, a idéia e sobretudo o desejo da manutenção de um vinculo essencial entre a cidade tradicional e a cidade moderna jamais deixou de existir. E isso mesmo em algumas das tentativas aparentemente mais radicais de rompimento com a cidade tradicional. Não por acaso, a procura desse vínculo pautou o melhor pensamento urbanístico do século XX; esteve presente nos devaneios dos progressistas mais cândidos e nos libelos dos reacionários mais bem intencionados. Na base de suas propostas, implícita ou explicitamente, estava a valorização da experiência urbana como dimensão única e crucial de nossa existência individual e coletiva, e como fundamento de um certo ideal republicano de sociedade e de política. De uma sociedade e de uma política que em grande medida se identificam com a cidade. Este ideal ainda persiste. A lei aprovada pela câmara dos vereadores paulistana o renova.

notas

1
O fato de haver edifícios cujas fachadas foram originalmente projetadas como outdoors não invalida o argumento. Pois, assim como ocorre com edifícios com fachadas “convencionais”, esses projetos devem respeitar o código municipal de posturas (código que, por regra e com razão, é bastante restritivo no que concerne às fachadas). O problema hoje é justamente este: na fase de aprovação de projetos, munido do código, o administrador age de modo restritivo; na fase que se segue a ela (fase tão ou mais importante para a definição da realidade da paisagem urbana), este mesmo administrador revela-se surpreendentemente permissivo.

2
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo, Companhia das Letras, p. 263.

sobre o autor

Otavio Leonídio é arquiteto, doutor em história, coordenador acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

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