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architexts ISSN 1809-6298


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Formulações do filósofo e pedagogo alemão Otto Friedrich Bollnow que são de especial interesse ao estudo do conforto ambiental, através da noção de espaço vivenciado


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SCHMID, Aloísio Leoni. Bollnow e a crítica ao conforto ambiental. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 088.03, Vitruvius, set. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.088/206>.

A obra Mensch und Raum, ou “O homem e o espaço”, do filósofo e pedagogo alemão Otto Friedrich Bollnow (1903-1991), catedrático na Universidade de Tübingen, terá uma tradução brasileira, programada pela Editora da UFPR para 2007. Até agora a obra era disseminada principalmente em espanhol e não consta existir sequer tradução para o inglês.

Na Alemanha, é considerada leitura obrigatória para os estudantes de Arquitetura, Filosofia e Pedagogia.

Considerando que a obra, de maneira geral, não é utilizada ou sequer conhecida no Brasil, este artigo procura identificar formulações suas que são de especial interesse ao estudo do conforto ambiental. Ressalte-se, no entanto, ser uma obra mais abrangente, ao tratar de teoria da arquitetura. Este texto não pode ser considerado uma resenha, tendo em vista que a obra já foi publicada nos anos 60. Antes, é uma releitura analítica e temática.

Espaço vivenciado e espaço matemático

Buscando o significado que tem o espaço na vida do ser humano, Bollnow principia, chamando atenção para a negligência com que o espaço tem sido tratado pela filosofia, em detrimento do tempo. Para lançar um pressuposto que perpassa todo o livro, Bollnow propõe a noção de espaço vivenciado: não se trata do espaço matemático, aquele que aprendemos a conceber de maneira abstrata, como homogêneo (mesmas propriedades em cada ponto) e isotrópico (as mesmas propriedades em qualquer direção), e ainda cada palmo equivalente ao palmo seguinte. Certamente o espaço matemático, presente na geometria cartesiana, é um conceito fundamental em que se assenta o conhecimento racional. Mas esta abstração, embora permita conquistas fabulosas como o CAD, o GPS, o geoprocessamento e a própria navegação espacial, não responde à questão sobre como vivenciamos o espaço, sentido por nosso corpo e percebido por nossa mente. O espaço vivenciado é de maior riqueza e, ao mesmo tempo, complexidade.

Por exemplo: numa estrada rural, um metro dificilmente é igual a um metro; com tudo o que significa para o caminhante, uma reta nem sempre é o caminho mais curto entre dois pontos. Bollnow desenvolve rica análise do Wandern – a atividade do caminhar por caminhar, um movimento de romântica negação do progresso e volta à natureza, popular na Alemanha desde início do século XX. O espaço que vivenciamos ao longo da auto-estrada, um espaço finalístico, é completamente outro.

Há dois aspectos do espaço vivenciado que são centrais na obra de Bollnow, e igualmente centrais no seu significado para o conforto ambiental. O espaço vivenciado difere do espaço matemático porque tem uma densidade variável, e tem seu centro fixo na casa. Esta exerce sobre o ser humano um efeito gravitacional, no contexto de uma polaridade entre casa e mundo. À casa o ser humano sempre volta, ciclicamente, para repousar.

A disciplina do Conforto Ambiental, no Brasil, é para onde migrou a antiga Física aplicada às edificações. No entanto, o nome atual se mostra, por vezes, por demais abrangente, quando na prática não passa de Física. Circunstâncias do ser humano são levadas em conta enquanto fisiologia; no entanto, o tratamento das questões psicológicas, sociais e culturais deixa a desejar.

Por outro lado, o nome conforto por vezes se revela limitador: há, pois, espaços cujas circunstâncias ambientais sem dúvida mereçam estudo e o controle; nelas, contudo, o valor maior – a produzir um conceito arquitetônico – não é o conforto. Por exemplo, uma discoteca, ou uma estação de metrô. Mas o que vemos é, mais e mais, nos meios acadêmico como profissional, uma unanimidade cega sobre “conforto” se estabelecer como panacéia para todo ambiente construído.

Para esta Física possa se tornar Conforto Ambiental, assim como para que esta ciência desenvolva critérios para além do conforto, o livro de Bollnow fornece um sólido referencial. Neste sentido, algumas idéias norteadoras são apresentadas a seguir.

A casa como abrigo

Bollnow faz parada obrigatória na Poética do espaço de Gaston Bachelard, para quem a casa tem, antes de tudo, a função do cobrir e proteger, tornando-se um “elemento de persistência, um repositório de coisas e idéias espalhadas. Com isto, a casa acaba por trazer o próprio homem para um recolhimento. Bachelard considera a casa ‘um dos grandes poderes integradores’ na vida do homem” (1).

A casa protege das feras e das pessoas, mas também do frio e do calor; da chuva e do vento; do ruído e da fumaça. Não faz qualquer sentido esta casa, que se pretende ninho no mundo, se não fornecer as bases físicas para que aconteça o conforto. E ao ler Bollnow, aos poucos nos damos conta de que os diferentes aspectos que compõem o conforto não são apenas muitos: eles se interrelacionam. Por exemplo, Bollnow associa organização vertical e permanência.

Bollnow entra num conhecido detalhe de quem estuda o Conforto Ambiental ao considerar que o espaço se desenvolve de um modo distinto na direção vertical, se comparada com as direções longitudinal ou transversal à face do observador. Ora, a direção vertical é dada justamente pela gravidade: a água que cai, o vapor que sobe. Tudo o que disser respeito à qualidade do ar no interior da casa está relacionado à sua permeabilidade vertical, para que possa ocorrer a ventilação higiênica – aquela ventilação que sequer chega a ser percebida pela pele, mas que é responsável pela garantia de um ar seco, saudável e sem odores. Para Bollnow, a casa “deve prolongar-se em profundidade e em altura; deve ter um porão e um telhado”. E citando novamente Bachelard: “os arranha-céus não têm porão” (2), isto é, faltam-lhes as “raízes” e, com isto, a conexão cósmica mais profunda. Ora, “a casa vivenciada não é uma caixa sem vida. O espaço habitado transcende o espaço geométrico (3). Toma qualidades sentimentais, humanas”.

Ainda, surge outra amostra de complexidade e interrelação na passagem em que é citado Baudelaire: “O inverno não aumenta a poesia do habitar?” (4). O sonhador “deseja receber do céu, todo ano, tanta neve, granizo e geada quanto for possível. Ele necessita um inverno canadense, russo. Com isto, seu ninho se torna mais quente, mais macio, mais cheio de amor” (5).

Bollnow reúne os elementos de uma Física aplicada com aqueles de Conforto (que não é somente ambiental) quando formula a função da casa assim: “para manter-se no mundo e nele realizar suas tarefas, o homem necessita um espaço de abrigo e de paz, onde possa se recolher, relaxar e se recompor quando ele se escoriou na luta com o mundo exterior”. Para ele, este procedimento do homem de tornar a si mesmo tem pré-requisitos espaciais bem definidos. Somente quem habita (e esta palavra, em português, tem equivalência dupla com o wohnen do alemão), separado do âmbito público, pode realizar sua essência e ser homem plenamente. Bollnow ainda extrapola a idéia: “se lhe tomamos a casa – ou, com mais prudência: a paz (6) de sua habitação –, também será inevitável sua destruição interior” (7).

Conforto e adequação

Bollnow propõe o termo alemão Wohnlichkeit, ou seja, habitabilidade, para significar tanto quanto o Behaglichkeit (um aconchego protegido) ou Gemütlichkeit (uma ambiência encorajadora), que é o caráter imediatamente visível de espaço que abriga, de sua essência caseira.

Para adotarmos esta terminologia, habitabilidade como conforto, uma observação que poderia passar por óbvia faz falta: habita-se uma casa, mas não uma fábrica. Vejamos como seu raciocínio se aplica à discussão do escopo de conforto ambiental e do escopo, complementar, de adequação ambiental:

“Nem todos os espaços construídos por pessoas têm este caráter da habitabilidade, e tampouco o deveriam ter; pois nem todos são determinados para o objetivo do ‘habitar’ no sentido estrito, de uma permanência que nele se sente protegida. Um espaço de igreja não é habitável, pois deve sintonizar as pessoas para a devoção. E um auditório não é habitável, pois ele deve concentrar as pessoas para o ouvir, etc. É logo um caráter bem especial do espaço interior que definimos como habitabilidade. Mas é precisamente este o caráter da casa no sentido verdadeiro”.

Bollnow enfrenta algum ranço modernista ao ter de afirmar que “rompidas todas as ordens tradicionais aparentemente seguras, tudo se tornou suspeito ao homem de hoje. O que parece de bom caráter de abrigo, e quem defende a casa como indispensável na vida humana, é facilmente rotulado de tipicamente burguês”. Note-se o esforço pelo resgate de um certo equilíbrio que se tentou eliminar (desperdiçar) no conflito orquestrado entre arte & conforto com que, no início do século XX, Adolf Loos e Le Corbusier procuravam dar reforço retórico para suas idéias. Sua afirmação era que a obra de arte vem tirar as pessoas de seu conforto. Na verdade, a preocupação era atingir o imobilismo burguês de uma Viena cada vez cheia de mais novos ricos, comparada a um Potemkin (onde um general construiu uma cidade de fachada para mostrar à imperatriz russa o rápido progresso de uma aldeia tomada).

Mas Bollnow também cita Schiller: O homem deve sair para a vida hostil (8), lembrando que à realização do homem é necessário, também, o mundo, em polaridade com a casa. Loos, Corbusier e o Bauhaus tentaram trazer para dentro de casa aspectos do mundo, a estética do mundo, a funcionalidade, a objetividade, e tentaram sacudir a poeira das cortinas. O sonhador, afinal, sonha com o mundo. Mas para conquistar o mundo, necessita da casa.

As condições da habitabilidade

Bollnow se propõe um arrojado exercício de objetivizar a habitabilidade, desenvolve para ela quase um decálogo – o que propõe são nove itens. Faz isto com a ressalva de que se deve procurar distância das circunstâncias afetivas pessoais, da análise da própria casa. Daí ele recomendar, para se aprender habitabilidade, a observação das casas dos amigos.

1. Inicialmente, o espaço da habitação deve parecer fechado. Aqui, nova crítica ao Modernismo: “A empolgação com que algumas correntes da arquitetura mais nova lançam recurso das possibilidades da técnica moderna se deu às custas de um efeito verdadeiramente envolvente da casa, que lhe traz tranqüilidade. [...] não seja por receio de um falso aconchego “burguês” que destruiremos a verdadeira tarefa da habitação, de ser um espaço da tranqüilidade e da paz. Também as cortinas nas janelas, que fecham o espaço à noite, têm aqui sua função plena de significado”.

2. O espaço não deveria ser nem muito grande, nem muito pequeno, mas o suficiente para ser preenchido pelas pessoas que o habitam com suas vidas.

3. Os móveis devem preencher o espaço de modo a não deixar surgir nem a impressão de vazio, nem de apinhamento.

4. Alguns itens conhecidos do Conforto Ambiental: “devemos poder nos esticar confortavelmente, e isto requer móveis, que convidam para sentar-nos com aconchego. A cor das paredes também faz parte de uma atmosfera cálida. Claridade e, ao mesmo tempo, cores quentes dão ao espaço um aspecto de sereno bem-estar”.

5. O espaço deve se mostrar cuidado, não objeto de ordem implacável e repressora, mas contendo marcas da habitação – no sentido da “linguagem de padrões” de Christopher Alexander. (9).

6. Peças de móveis sejam selecionadas com critérios, e cuidadas com amor; mau gosto declarado, produção seriada barata contrastam com a “Wohnkultur” (cultura da habitação) e o gosto artesanal. “Por difícil que seja compreender, é a irradiação de uma pessoa que torna o espaço habitável”.

7. A habitação “pode ser habitável somente na medida em que a pessoa em questão sabe viver. As coisas devem ser fundidas, através de um uso cuidadoso, à vida da pessoa”.

8. Mais que a expressão de alguém, a habitação deve “refletir um longo passado se quiser transmitir às pessoas o sentimento de constância segura da vida”. Daí a importância aos bibelots, mas também às marcas de uso. A verdadeira habitação “não foi criada artificialmente, mas cresceu progressivamente e tem parte na segurança passada do lento amadurecer”.

9. Não basta uma pessoa sozinha. “A habitação de um solteiro poderia nos parecer pouquíssimo habitável, e um viúvo nunca será capaz [...] de manter a habitabilidade, que lá antes reinara. [...] um local importante com clima de intimidade, que permanece aberto para um círculo pequeno de amigos simpatizantes e pessoas próximas” (10).

A janela em Bollnow

Um item de especial importância para o Conforto Ambiental é trabalhado por Bollnow com originalidade: a janela. Ela é elemento chave na explicação da polaridade casa-mundo. Bollnow logo se exime de falar de suas tarefas mais simples, como servir à iluminação do espaço interior (função desempenhada pela instalação elétrica). Vai logo à essência:

“É tarefa das mais simples da janela possibilitar que se observe, de dentro, o mundo externo. Já antes que se tenha aprendido a construir grandes janelas envidraçadas, havia pelo menos o postigo, buraco de espiar, através do qual se podia vistoriar as redondezas da casa quanto à aproximação de um estranho”.

Bollnow associa isto à busca das crianças por um esconderijo, em que podem sonhar e desfrutar de sensação de proteção. Para ele, também o homem adulto tem este anseio: “do seu espaço de recolhimento, manter à vista o mundo exterior, mesmo que o orifício de espiar há muito se tenha tornado a ampla janela. Ele olha da janela para o mundo, que está à sua frente espalhado em toda sua claridade, mas o mundo não o vê, oculto que está na escuridão do quarto”. Esta explicação corresponde àquela dada, mais recentemente, por Hildebrand (11), quando discorre sobre a origem do prazer arquitetônico.

E aqui Bollnow deixa escapar outra observação anti-modernista:

“Por painéis e cortinas, de diversas formas, os homens tentaram aumentar a opacidade da janela, enquanto para o estilo de habitação moderno é característico o gesto de abrir-se para o mundo exterior de maneira muito mais pronunciada, através de grandes superfícies de vidro. Mas do contrário: se o homem, à noite, se encontra no quarto claramente iluminado, exposto ao olhar do estranho, que do escuro olha para dentro talvez sem ser percebido, sente-se então inseguro e não hesita em fechar cortinas e painéis”.

E completa sua análise, novamente pondo em destaque uma complexidade deste elemento construtivo aparentemente simples. Fala da função orientadora da janela, que “possibilita orientar-se neste mundo”; contrasta-a com os espaços de bunker, com seu caráter sinistro; em que o homem “se sente recolhido inteiramente para o interior, pois se lhe impede o olhar para o mundo visível e, apesar disto, sempre se mantém presente um fragmento do infinito”. E, enfim, lembra o efeito alienante da janela, sublinhado pelas molduras e grelhas das esquadrias, que afastam aquilo que se vê, recortam uma determinada cena do ambiente externo e fazem dela “imagem”. Aqui, a janela idealiza a porção de mundo que recorta e preserva.

Calor, escuro e silêncio no centro da casa

Onde estaria, dentro da casa, o centro do espaço vital? No meio rural, ou no mundo antigo, teria sido “o fogão (12), outrora já espacialmente no centro da casa e ainda com um significado diretamente sagrado: do fogão como altar”. Tal é o caso, por exemplo, em algumas casas rurais na Suíça, preservadas até hoje em museus ao ar livre. Mas (nova crítica ao Modernismo) na medida que a cozinha “foi oprimida até se tornar um espaço secundário, como nas habitações modernas, o fogão perdeu esta posição de centro da casa, até que finalmente, até que tenha perdido seu caráter simbólico como sua expressividade exterior, ao abrir mão até de sua chama diante do moderno fogão elétrico”.

Para Bollnow, de certo modo, então, a mesa de comer poderia ter ocupado o seu lugar. Pois é agora onde a família se reúne em tempos regulares. Mas tanto o fogão quanto a mesa “perdem sua função de centro na medida que a vida comum da família se divide e os membros individuais ganham autonomia”.

Para cada um deles, a origem dos caminhos está no lugar do qual, pela manhã, se erguem para seu dia de trabalho, e ao qual, à tarde, o trabalho feito, retornam: a cama. Nela, logo, fecha-se o ciclo, do dia como da vida.

A espacialidade do ser humano deitado em sua cama é muito peculiar. Bollnow se detém longamente neste assunto, destacando na postura deitada o caráter de pacífica desistência ao enfrentamento do mundo. A pessoa deitada não mais se relaciona consciente com um mundo que avança objetivamente contra ela, mas sente-se em harmonia com uma ambiência cálida e benfazeja. Torna-se uma só com o mundo. Na cama, deitada, encontro o estado do aconchego, que lhe permite deixar-se cair e realmente adormecer. “Criar as condições externas prévias a este sono profundo e verdadeiro, como uma região do completo abrigo, é precisamente esta a tarefa da cama. Ela é o espaço de um tal isolamento protetor e, com isto, o grau mais intenso da sensação de abrigo proporcionada pela casa”.

Aqui vem à tona mais um assunto dos mais importantes em Conforto Ambiental: o silêncio. Na cama, pois, a opressão da vida se dissolve num novo, “estreito sentimento” do abrigo, que só prevalece enquanto durar a noite, e depois disto espera por um novo dia, com novas ameaças. Para a pessoa saudável que dorme, o mundo é silêncio, expectativa silenciosa, de que tudo irá melhorar” (13). Ora, aqui caem algumas máscaras do bem-sucedido planejamento urbano medido na velocidade média dos automóveis. O sucesso do trânsito superficial (barato em relação ao metrô), associado às funcionalidades da cidade, produz efeitos literalmente ruidosos sobre a saúde da população, como recentemente identificado e mapeado por Angela Ribas? (14) Como é possível que a economia funcione se as pessoas não têm digno repouso?

Os outros elementos do Conforto Ambiental são lembrados com eloqüência neste momento:

“Somente na consciência de estar abrigado o homem pode largar-se ao sono. E para conseguir esta sensação de abrigo, são proveitosos o escuro e o silêncio, que recortam o mundo estranho ao redor das pessoas, formando ali um espaço mais estreito. Também é necessário um certo calor, que permite à pessoa entregar-se ao seu benfazejo domínio. O próprio espaço se torna uma casca protetora ao redor do adormecido. Esta casca se fecha ao redor do homem”.

Estudado do ponto de vista do homem aninhado em sua cama, o Conforto Ambiental se reveste da maior importância, digno de embasar políticas públicas, ao menos com tanto destaque quanto o transporte de massa.

Bollnow reclama aos seus freqüentados poetas o fato de raramente tratarem a cama de uma maneira digna. Explicações à parte, surge uma pergunta aos arquitetos. Conhecemos cadeiras assinadas por Le Corbusier, Rietveld, Stark e Niemeyer. Mas o que já produziram, pois, os arquitetos famosos em matéria de cama? Isto talvez esteja relacionado ao fato de a cama, “hoje entendida como um esqueleto de madeira com almofadas”, ser ainda jovem. Mas poderíamos contra-argumentar: ainda não há domínio do Conforto Ambiental, e menos ainda do conforto.

As cores e os humores do espaço

A luz e o som são manifestações espaciais da energia que Bollnow trata, sucessivamente, depois de tecer todo um entendimento a respeito dos humores (em alemão, Stimmung) do espaço.

Observando o espaço crepuscular (espaço dos bosques, da névoa, da neve e do entardecer) e noturno, Bollnow mostra que o espaço é mais que o campo sempre igual da cognição objetiva e da ação finalística, que ele está muito mais ligado aos sentimentos e desejos, sobretudo à constituição psíquica completa do homem. O que parece vasto para um é na medida certa para o outro, ou até mesmo apertado. Mas também na mesma pessoa varia a necessidade de espaço de acordo com a constituição psíquica e com suas necessidades do momento. Assim, explica, por exemplo, Bachelard na análise das funções da habitação: “Ambas as realidades externas da cabana e do castelo circunscrevem...nossas necessidades de reserva e expansão...Para poder dormir bem, não podemos dormir num grande recinto. Para trabalhar bem, não podemos trabalhar num esconderijo apertado” (15). E o “oposto também é verdadeiro: o caráter do espaço que cerca o homem age sobre seu estado psíquico. É, pois, uma dupla influência: a constituição psíquica do homem determina o caráter do espaço circundante, e no sentido oposto o espaço tem efeito sobre o estado psíquico”. Esta interação passa certamente pelas dimensões, formas e proporções dos espaços, assuntos tão imediatos na Teoria da Arquitetura, mas também por sua iluminação e suas cores. Bollnow evoca o “efeito sensorial e moral das cores” sobre o qual ninguém menos que Johann Wolfgang Von Goethe discorre em sua doutrina da cor. Lá menciona a calidez do amarelo, o caráter estimulante do vermelho, que toma efeito “sério e esplendoroso” no tom púrpura, o caráter frio, vazio e estático do azul, o equilíbrio do verde qualidades que reclama puramente fenomenológicas e não derivadas da associação com objetos ou paisagens.

O espaço da acústica

Um raciocínio mais complexo é tecido para tratar o espaço presentual, o espaço do presente, em contraste com o espaço da ação finalística. Bollnow fala da dança como um acontecimento em que o espaço que interessa é o do presente, e o ser humano está nele despojado de alguma organização entre sujeito e objeto. Cita Nietzsche, para quem “Cantando e dançando, o homem se funde com a unidade do ser”. Esta dicotomia é aplicada, com grande originalidade, para o estudo da Acústica.

Se diferença entre o espaço do dia e da noite é determinada decisivamente através das diferentes funções que têm o ver e o ouvir na estrutura do espaço, de tal natureza é a diferença entre o espaço visual e o espaço auditivo. As coisas se distinguem umas das outras, no espaço ótico, com fronteiras nítidas, e direções precisas e ainda distâncias fáceis de estimar em relação ao observador (16). Já o som é diferente. Temos dificuldade de determinar a direção de onde vem o som, e com isto o lugar no espaço em que ele se origina. O âmbito acústico, à diferença do ótico, é caracterizado pelo fato de o som poder se desprender da fonte. À diferença do ruído que indica, isto ocorre num tom puro, e na forma acabada da música. Aqui o som se desprende de sua fonte sonora e pode chegar a uma existência própria. Assim, Bollnow explora a propriedade que tem o som de envolver, que é mais completa na música. Enquanto o cantor ainda existe e se apresenta como indivíduo, na música puramente instrumental o tom, se nós a ele nos entregamos, se desprende inteiramente do instrumento. Preenche e homogeniza o espaço todo. Mas age, neste preenchimento do espaço, numa dinâmica peculiar. “O tom...nos penetra, abrange, atinge, envolve. O acústico nos persegue, não podemos fugir dele, nós lhe estamos entregues” (17). Enfim, “todo o ouvir é presentual”, assim como a dança.

E, novamente uma indicação da complexidade, inevitavelmente remetida à sinestesia, Bollnow observa que algo semelhante, enfim, se verifica com o espaço crepuscular e com o espaço noturno. Pois o crepúsculo preenche o espaço, como também o faz a noite, e assim tem um efeito aparentado com o som que, preenchendo e homogeneizando o espaço, unifica e amarra as coisas que querem se separar” (18). Isto é uma indicação de que tal propriedade não está embasada na essência de um dos sentidos, como tal, senão mais profundamente. Está enraizada em geral na essência do espaço e de fato, para falar com Merleau-Ponty, aponta para uma “espacialidade primitiva”, para além da claridade do dia.

Reverberação no espaço aberto?

Um raciocínio que encerra a obra em pauta de Bollnow poderia ser aplicado ao estudo da transição entre o interior e o exterior, e o diálogo de escalas que são as próprias atribuições profissionais em arquitetura e urbanismo. Ajuda a entender em que medida faria sentido uma casa fechada, isolada, estanque.

Bollnow encaminha sua obra, nas partes finais, para a sistematização das três formas de habitar: habitar o corpo, habitar a casa e habitar o espaço ou apenas habitar (superada a separação entre sujeito e objeto).

A casa pode ser considerada, de certo modo, um corpo expandido, com que o ser humano se identifica de modo semelhante e pelo qual ele, correspondentemente, se classifica num espaço circundante maior. É para fora da casa que começa o espaço, se tomado no sentido de um contexto articulado por distâncias e direções. É somente na porta de casa que principiam os caminhos que dão acesso ao mundo. E a concepção de segurança do patrimônio deriva de uma forte identificação do ser humano com sua casa. Ele se funde com ela. Na medida que habita sua casa, está presente nela toda, e chega a sentir-se atingido fisicamente se um estranho, contra sua vontade, penetra a esfera da casa.

A ligação íntima de homem e casa se mostra, entretanto, não somente no fato de que o homem consegue imprimir em seu espaço de habitação o caráter do próprio ser e, vice-versa, aquele retroage sobre este, mas com igual teor na medida que ele, em sua essência, é determinado por seu espaço circundante, e seu ser se transforma de acordo com a natureza de tal espaço. Somente na unidade com um espaço concreto o homem ganha uma certa essência.

O mundo externo é o espaço do trabalho, nele cumpre, cada vez ter plena atenção para dominar a situação e reagir rapidamente a surpresas. Requer, em cada piscar de olhos, a consciência controladora daquilo que se faz. Por isto, é o espaço da ação finalística, o âmbito da plena separação entre sujeito e objeto. É um espaço estranho ao homem, amedrontador e ameaçador, no qual ele é “lançado” de acordo com o pensamento existencialista. Já na paz da casa o homem, ao contrário, não requer este cuidado tenso. Por isto, aqui relaxa logo a tensão entre sujeito e objeto e com isto o caráter intencional das relações espaciais. E aqui se encaminha uma compreensão aprofundada de conforto: não pode ser confundido com a adequação ao desempenho funcional. Portanto, não faz pleno sentido falar de conforto num supermercado.

Bollnow trabalha ao longo do seu livro a idéia de que todo o sentimento de abrigo numa casa (que em última análise é frágil), assim como toda a coragem de reconstruir (depois da destruição) se sustentam por uma confiança última e a mais abrangente no mundo e na vida. Esta confiança supera toda a ação humana. O enigma desta confiança é o mistério último da existência humana. E este se liga de modo o mais próximo à relação com o espaço. Pois o mundo é o espaço mais abrangente em que o homem vive e com que pode se identificar como sendo seu espaço próprio. Independente de toda a proteção humana, o próprio espaço ganha algo de abrigo.

É assim que o espaço se diferencia essencialmente do tempo. Pelo tempo somos expostos à tribulação, pois ele é na maioria das vezes o “tempo desgarrador” (Hölderlin). O tempo significa a efemeridade de tudo quanto é terrestre. “Pois o tempo é a decadência” (19).

É diferente, contudo, o que sucede com o espaço. Nele, estamos no abrigo. Bachelard disse: “O espaço, o grande espaço, é o amigo do ser” (20), embora “ser” em seu uso pessoal do idioma signifique o Dasein (existir) humano. Um amigo é um homem em quem temos confiança, que nos quer bem, em cuja proximidade nos sentimos seguros. Como para nós, a cada manhã, o sol ainda nasce sobre a terra firme no oriente, embora no sistema de Copérnico há muito tempo saibamos explicar isto “melhor”, assim o espaço, em sua essência, continua sendo finito para nós.

A idéia do habitar ao ar livre é desenvolvida de modo brilhantemente associado à idéia acústica da reverberação no espaço, introduzida por Minkowski. Denota inicialmente, num sentido literal, como um espaço é preenchido pelo som, quando as ondas sonoras são enviadas de volta pelas paredes circundantes. E o próprio espaço tem o caráter do que provoca reverberação e impede, com isto, o sentimento do esvair-se para o ilimitado. Mas como pode o espaço infinitamente aberto impedir que se esvaia a consciência humana? No fenômeno acústico, seriam necessárias paredes que jogassem de volta o som, sem as quais ele iria escapar para o infinito. Se este, agora, tivesse de ser transmitido para todo o espaço, desprovido de quaisquer paredes que constituam abrigo, então o espaço agiria como se as tivesse, de tal modo que o homem pudesse nele abrigar-se, tal qual fosse um espaço fechado.

A relação primitiva para com o espaço é, pois, a do habitar, e não a da intencionalidade. Com isto, as formas anteriormente tratadas de um espaço de ação intencionalmente articulado não são suspensas, mas aparecem somente como algo derivado e posterior, e permanecem referidas àquele algo distinto.

Poderíamos pensar que estas três escalas representassem as atribuições profissionais do arquiteto e urbanista. No entanto, Bollnow tem mais coisas a dizer aos seres humanos todos a respeito do espaço do que a uma categoria profissional. Sua última forma de habitar, contraposta ao agir, é sua maior mensagem à humanidade, uma formulação do auto-conhecimento amparado pelo espaço.

Considerações finais

O corolário disto tudo para o Conforto Ambiental é que merece ser aprofundado, na consciência de não se considerar valor absoluto na Arquitetura, mas referido a uma dinâmica polaridade do sair para o mundo e voltar para casa. E, por fim, uma última observação: é difícil o estudo do Conforto Ambiental dissociado de um estudo do espaço.

Chegando ao final da empreitada da tradução de Mensch und Raum, com o propósito inicial de me condicionar ao estudo mais cuidadoso do autor, eu concluo que é oportuno mostrar algumas idéias encontradas no livro que, em que pesem os quarenta anos desde a primeira edição, continua atual e, se não é exagerado, cada vez mais oportuna a sua leitura, na medida em que avança o virtual em relação ao real, o second life vem ganhando em importância dentro da first one.

notas

1
BACHELARD, Gastón. La poétique de l’espace, Paris, 1958. Tradução alemã: Poetik des Raumes, de K. Leonard, München, 1960, p. 38. Trechos citados em livre tradução a partir do alemão.

2
Idem, ibidem, p. 60.

3
Idem, ibidem, p. 78.

4
Idem, ibidem, p. 70.

5
Idem, ibidem, p. 71.

6
Nota de tradução: é necessário lembrar que, em alemão, Frieden tanto pode significar paz, como a proteção que é dada à casa por suas cercas e muros, paredes e telhado.

7
Quão importante é a manutenção de uma tal esfera pessoal em nosso tempo, caracterizado pela penetração do público até no âmbito mais provado, eu desenvolvi mais em detalhe em Mass und Vermessenheit des Menschen, Göttingen, 1962, p. 55 et seq.

8
SCHILLER, Friedrich. Das Lied von der Glocke. I 49. N.T. em livre tradução.

9
ALEXANDER, Christopher e outros. A pattern language. Nova Iorque, Oxford University Press, 1977.

10
Idem, ibidem, p. 180.

11
HILDEBRAND, Grant. Origins of architectural pleasure. University of California Press, 1999.

12
Nota de tradução: em alemão Herd, palavra muito semelhante a Herz – coração. Em inglês, a palavra Hearth, tem ambos os significados de fogão e coração.

13
VAN DEN BERG, J. H. “Garder le lit, essai dúne psychologie du malade“. In Situation. p. 68 e seguintes; p. 83 e seguintes.

14
RIBAS, Ângela. tese de doutoramento em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Curitiba, UFPR, 2007.

15
BACHELARD, Gastón. Op.cit., p. 95.

16
Idem, ibidem, p. 156.

17
Idem, ibidem, p.155.

18
Idem, ibidem, p.157.

19
RILKE, Rainer Maria. Briefe und Tagebücher aus der Frühzeit, 1931, p. 248.

20
BACHELARD, Gastón. Op.cit., p. 238.

sobre o autor

Aloísio Leoni Schmid, engenheiro mecânico pela UFPR, mestre pela Universidade de Utsunomiya (Japão) e Doutor pela Universidade de Karlsruhe (Alemanha) é desde 1997 professor de Conforto Ambiental no Curso de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Paraná. É autor do livro “A idéia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído” (Curitiba, Pacto Ambiental, 2005)

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Manifestações minimalistas na arte e arquitetura:

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