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architexts ISSN 1809-6298


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O trabalho de Cláudio Amaral problematiza o processo de criação na arquitetura, trazendo questões sobre como se pensa esse pensar? Qual o procedimento para criar um desenho? E a produção da história da arquitetura?


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AMARAL, Cláudio Silveira. Descartes e a caixa preta no ensino-aprendizagem da arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 090.07, Vitruvius, nov. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/194>.

O objetivo deste trabalho é problematizar o processo de criação na arquitetura.

A tradição moderna da arquitetura no Brasil reduziu as metodologias de projeto a sua expressão funcionalista/racionalista com base no cartesianismo introduzido pelo arquiteto francês do século XIX Viollet-le-Duc. Porém, não apenas o projetar da arquitetura, mas também a sua produção histórica sofreu a influência da mecânica cartesiana. Todo o fazer projetual em geral, bem como a narração da história pressupõe uma metodologia e um método. É comum ouvir dos arquitetos que o processo de criação na arquitetura é um processo de reflexão, porém como se pensa esse pensar? Qual o procedimento para criar um desenho? E a produção da história da arquitetura?

Viollet–le-Duc respondeu estas perguntas dizendo que faltava um método racional para a produção do desenho, e escolheu Descartes para conduzi-lo, o que resultou na equação: O desenho arquitetônico é a soma do programa com as técnicas construtivas.

Para a produção da história com o método cartesiano, ele a dividiu em períodos privilegiando os momentos cujo desenho arquitetônico fosse decorrente da lógica da matemática, como por exemplo, o grego.

Le Corbusier (1) enfatizou ainda mais o uso da lógica matemática de Descartes ao dizer que o início do processo de criação é a definição da planta arquitetônica, que por sua vez é a representação do programa arquitetônico (função da edificação). Assim, a projeção vertical da planta resultaria, segundo ele, nas paredes que por sua vez se tornariam volumes: linhas que se transformam em planos que se transformam em volumes; é a seqüência linear e crescente do raciocínio cartesiano.

Embora se saiba que Descartes ainda é apreciado nas escolas de arquitetura do Brasil para o ensino-aprendizagem do projeto arquitetônico, sabe-se também que em algum momento do processo de criação surge algo estranho que parece não caber na lógica cartesiana: é a caixa preta; um conceito usualmente utilizado pelos arquitetos para significar o momento em que a subjetividade psicológica do arquiteto define, por meio de um rabisco (croqui) o partido (2) do projeto. Apesar dos arquitetos conhecerem esse processo, ninguém até hoje explicou o que acontece dentro dessa caixa preta, dizem que é inexplicável.

Esse jeito de compreender as regras de Le Corbusier mistura um momento cuja ênfase é a objetividade com um momento cujo pensamento é intuitivo. Isto nos remete a seguinte suposição: existiria uma certa genialidade nos arquitetos, pois a caixa preta não se explica, no entanto o arquiteto a usa, então ele provavelmente já nasceu com esse dom.

Lúcio Costa chamou o dom de gosto, dizendo ser o lado artístico da arquitetura. A arquitetura assim pensada tornou-se uma disciplina com características multidisciplinar abrangendo as áreas: das ciências exatas (física, matemática), das humanas (sociologia, política econômica, antropologia, filosofia) e as artísticas (o gosto, aquilo que não se explica).

O ensino do desenho arquitetônico nos cursos de arquitetura no Brasil fez uso da objetividade do método cartesiano, porém acrescentou a subjetividade psicológica presente na intuição do arquiteto, a caixa preta. Como é possível a convivência desta contradição?

Objetividade e Viollet-Le-Duc

Viollet-Le-Duc introduziu o método de Descartes para o processo criativo da arquitetura. O texto que segue pretende mostrar como Le-Duc chegou a esse entendimento.

Le-Duc, em Discursos sobre a Arquitetura (3), tratou de uma teoria da percepção que considerou a Arte um instinto humano, assim como a razão, a sabedoria e a paixão. No entanto, diferenciou-a das demais percepções, isto porque ela atingia ao mesmo tempo os cinco sentidos do homem. Segundo ele, esses sentidos se comunicam entre si, assim, o olfato poderá ser sentido pelo olhar que poderá emitir sensações ao tato e assim sucessivamente. Os sentidos, para ele, captariam sensações que seriam enviadas a mente produzindo emoções que retornariam ao corpo em forma de expressões físicas como, por exemplo, um riso, um choro, um arrepio, um calafrio... Assim, uma música poderá evocar lembranças do som das ondas do mar, que por sua vez provocará um sentimento de angústia conforme a cena ocorrida à beira da praia em um momento qualquer do passado. Esse trânsito de sentimentos seria um fenômeno aceito por Le-Duc, e seria fruto da experiência da vida individual pertencendo ao universo da subjetividade psicológica do indivíduo. Porém, Le-Duc dirá que a Arte não deve se prender ao relativismo dessa percepção, mas sim a uma percepção universal e racional.

Na busca desta racionalidade Le-Duc falou de uma arte que pudesse ser classificada por sensações planejadas previamente. O artista poderia assim, prever o efeito que deseja causar em seu observador. Perceber, para Le-Duc, passou a ser sentir uma razão.

A história da Arquitetura vista sob este aspecto dividiu os espaços da história em períodos conforme algumas objetividades. Le-Duc privilegiou os momentos em que o espaço se desenhou de forma racional e desqualificou os que assim não se comportaram. Começou com a arquitetura da Grécia Antiga, dizendo ser o desenho de uma lógica inspirada nas regras das proporções, ou seja, interno a lógica da matemática.

Le Duc quis um desenho que se exibisse ao olhar do entendimento do observador. Primeiro tratou da arquitetura grega; depois a Idade Média com o gótico. No gótico a lógica matemática não repetiria o desenho dos gregos, um desenho diferente, porém interno a lógica da matemática.

Para as arquiteturas que não enxergou essa lógica, como por exemplo, a romana, a renascentista ou mesmo a eclética de seu tempo, Le-Duc ignorou.

O gótico, para ele, assumiu os processos construtivos segundo a tradição grega, pois com o fim da dominação romana as experiências dos gregos puderam voltar, mas isso não significou repetir o traço destes, mas a criação de um outro desenho lógico.

Le-Duc concluiu que a arquitetura bizantina seria na verdade o greco-bizantino, pois se baseou em um desenho que visualizou uma lógica matemática. O Gótico surgiria em decorrência deste procedimento que substituiu o traço grego, por um traço com a visibilidade da mesma lógica.

Le-Duc explicou a diferença entre o desenho gótico do grego a partir da diferença dos materiais de construção utilizados. Portanto, ele se revoltava ao ver um desenho de um templo grego fora da Grécia, pois aquele desenho só serve com os materiais de construção existentes na Grécia.

O gótico utilizou pedras de menor porte o que inspirou um desenho original.

Se no grego ainda existia a parede, a cela do templo, no Gótico isso já não ocorria, pois expunha o desenho de uma estrutura óssea, colunas e arcos além dos vitrais, pura luz. Os arcos passaram a se movimentar conforme as exigências vindas das forças que incidem no edifício.

É de se notar que o arco foi uma invenção anterior aos gregos que não puderam explorá-lo devido ao grande tamanho das rochas de suas regiões, o que dificultaria um desenho com arcos. Isso levou a entender que as condições naturais das regiões são fundamentalmente a base para que as culturas dêem direção a seus desenhos.

Le Duc queria o aço para representar a arquitetura do seu século, pois seria a expressão da época. A celebração do uso da razão em Le Duc levou-o a buscar as regras do método cartesiano para a criação da arquitetura:

1) Deve duvidar-se de tudo que não tenha a certeza da absoluta razão.

2) Dividir o projeto em quantas partes for necessário.

3) Construir, a partir das partes, uma seqüência de raciocínio linear e crescente de forma dedutiva.

4) Fazer revisões a medida das necessidades.

Adaptando essas regras ao fazer da arquitetura resultou na seguinte seqüência para o processo criativo:

1) Dividir o processo em partes: a) O programa (a função do prédio); b) As técnicas e materiais construtivos; c) A visibilidade da lógica estrutural (o desenho).

2) Dispor esses elementos em forma de uma equação matemática: O programa (P) mais as técnicas e os materiais construtivos (M) é igual ao desenho arquitetônico (D): P+M=D

O programa seria a função; o desenho é a sua forma; o que precede o postulado da teoria racionalista e funcionalista da arquitetura moderna que se pauta pelo paradigma: A forma segue a função.

No mesmo momento em que Le-Duc propôs o método de Descartes para a criação artística, Marcel Proust formulou um outro jeito para a criação, a partir da invenção do inconsciente.

A ação do inconsciente

Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust é uma obra de arte produzida no mesmo instante em que Le-Duc clamou pelo método de Descartes. Contém uma teoria da percepção com base no inconsciente.

“O romance perpassa não somente a vida exterior, episódica e histórica de personagens e da própria França, com alguns elos de fatos ocorridos na Europa e no resto do mundo, como, principalmente (grifo meu), a vida interior, as sensações, as paixões, sentimentos e emoções do Narrador e demais personagens, todos envoltos numa minuciosa atmosfera de análise psicológica” (4)

Durante essa análise psicológica surge a ação do inconsciente para os processos de percepção unindo o mundo externo ao mundo interno do homem. A obra de Proust inaugurou uma nova maneira de tratar a percepção com base na ação do inconsciente.

A percepção se deu, segundo Proust, através de uma mediação entre a memória, que dividiu em voluntária (consciente) e involuntária (inconsciente), e o mundo externo. A relação entre a memória e o mundo se dá por penetrações entre o mundo externo no interno e vice-versa. O externo é para Proust, o espaço e o tempo dos elementos animados e inanimados fora do nosso corpo, ao passo que o interno é o espaço e o tempo interno ao próprio corpo. O mundo é assim, percebido por nós primeiro pelos sentidos que transmitem sensações para o inconsciente e, às vezes, captadas pelo consciente. Existiriam momentos privilegiados em que o externo despertaria o interno, quando, por exemplo, um objeto ou alguma variação atmosférica ou alguma arbitrariedade qualquer provocasse em um dos sentidos sensações que provocariam o despertar do inconsciente.

“é porque a melhor parte de nossa memória está fora de nós, numa brisa chuvosa, num cheiro de quarto fechado, ou no odor de uma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo inútil, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe nos fazer chorar ainda. Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. É graças a tal esquecimento que podemos, de vez em quando, reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face às coisas como o era essa criatura, sofrer de novo, porque não somos mais nós mas ele, é ele quem amava a pessoa que agora nos é indiferente (5)”.

Para Proust a consciência deve acessar o inconsciente apenas quando ocorre uma dinâmica vinda de fora do nosso corpo, isto porque, apesar do inconsciente nos pertencer nós não o controlamos, ele não seria fruto do desejo de nossa consciência.

“Pois às perturbações da memória do nosso corpo, para nós semelhantes a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão perpetuamente sob nossa posse. Talvez também seja correto crer que nos fujam ou que retorne. Em todo caso, se permanecem dentro de nós, na maior parte do tempo ficam num domínio desconhecido onde não têm nenhuma utilidade para nós, e onde até os mais comuns são recalcados por lembranças de ordem diferente e que excluem toda simultaneidade com eles na consciência. Mas, se o quadro de sensações em que estão conservados se recupera, têm por sua vez, aquele mesmo poder de expulsar tudo o que lhes é incompatível, de instalar sozinho em nós o eu que lhes deu vida” (6).

A percepção, portanto seria um fenômeno da qual participariam o nosso corpo e o mundo externo de forma simultânea. A percepção assim pensada seria sempre o resultado de uma dinâmica de idas e vindas entre o nosso corpo e o mundo que nos rodeia.

“A busca do eu profundo equivale ao exercício do Narrador não pôr em pratica as suas iluminações, ou as iluminações da memória involuntária para recriar as experiências da vida num trabalho de arte. É este o fio condutor desta viagem. O acaso assessorado pela inteligência compõe o trabalho de criação. Mais importante que o recordar pela memória voluntária estão os cinco sentidos, despertos, disponíveis, aguçados e integrados para a composição associativa dos fluxos da realidade literária” (7).

Em Caminhos de Swann, Proust explicou este fenômeno a partir do mergulho de um biscoito em uma xícara de chá. A felicidade vivida pelo Narrador em tempos passados e esquecidos reapareceu quando sentiu o gosto do biscoito mergulhado na xícara. Assim, uma sensação que habitou um outro tempo e espaço se justapôs às sensações produzidas no presente; (o passado e o presente se dissolvem um no outro expondo a relatividade do tempo). A experiência gustativa do passado trouxe consigo uma enxurrada de sensações experimentadas pelos outros sentidos naquele momento, recuperando assim, o cenário inteiro vivenciado pelo corpo no passado. A sensação de felicidade vivida no passado reapareceu inicialmente no sentido do gosto, mas logo contaminou os demais sentidos restituindo-lhes fragmentos do passado por meio do fenômeno da sinestesia (8). Embora o presente não se relaciona diretamente ao passado ele se conecta a este quando o inconsciente o traz de volta, no entanto isso só acontece quando ele é despertado por alguma arbitrariedade qualquer do mundo externo.

A obra proustiana, ao introduzir o inconsciente aos fenômenos da percepção e, portanto para a criação, pois percepção e criação estão sempre juntas, quis qualificar a relação Eu – Mundo, se posicionando contra a alienação regrada pelo hábito imposta pela vida moderna que, segundo ele, anestesiava e mecanizava os sentidos. Queria assim, restituir o prazer de viver a partir do despertar dos sentidos para o mundo, o que proporcionaria prazer. Proust, na verdade estava criticando a percepção nos moldes cartesianos que desprezava os sentidos e privilegiava apenas a consciência.

Em Busca do tempo perdido talvez pudesse ser chamado de Em busca do inconsciente, pois foi a descoberta, para as artes, da importância do inconsciente aos processos de criação. Em busca do tempo perdido não é apenas um romance, mas é uma obra de arte produzida pelo inconsciente do autor para o inconsciente de seu leitor.

Como tratar essas questões no ensino-aprendizagem da arquitetura?

Por hipótese o ensino do desenho arquitetônico nos cursos de arquitetura no Brasil se circunscreveu à ótica cartesiana simultaneamente a prática da caixa preta. Porém, como incentivar o uso da caixa preta se ela é incognoscível?

A contextualização histórica desta questão despertou aqui uma reflexão a respeito de um momento artístico ocorrido no século XIX que fez uso da intuição para o processo de criação. Refiro-me a obra do crítico de arte inglês John Ruskin contemporâneo a Proust e a Viollet-Le-Duc.

Do ponto de vista da história produzida pelos modernistas, a obra ruskiniana é concebida como algo medieval a favor do estilo neogótico indo de encontro às exigências da indústria moderna, para eles, Ruskin vive na ótica do passado porque propôs, segundo eles, a volta ao modo de produção feudal.

A partir disso é estabelecido aqui uma segunda hipótese que trata da teoria de Ruskin de um ponto de vista diferente, por isso o discurso recorrente em relação à produção ruskiniana será aqui objeto de contestação. Tal recorrência parece se prender tão somente a uma leitura fragmentada desse autor resultando numa análise que ou enquadra-o na perspectiva por faixa etária (Ruskin jovem, maduro ou velho), ou numa análise que divide sua a obra em assuntos específicos (Pintura, Natureza, Arquitetura, Política Econômica, Literatura...), isto porque essa lógica esta sempre em busca de uma linha de evolução após dissecar o seu objeto de estudo. Não se trata de linha de evolução nem mesmo de fragmentar a obra em assuntos específicos, nem de encontrar significados variados em seus diversos períodos de vida. Pretende-se conceber Ruskin como o articulador de uma teoria da percepção voltado à criação artística cuja lógica baseia-se na justaposição de assuntos diferentes que se associam a fim de construir estabilidades.

A diferença entre o método cartesiano e o de Ruskin esta na dissecação dos assuntos feito pelo primeiro, dando-lhes um caráter de autonomia entre as suas partes. Já Ruskin associou assuntos diferentes (pintura, arquitetura, política econômica...), mostrando existir uma relação de dependência entre eles. A relação de dependência ocorre tanto entre um assunto e outro como internamente entre as partes que compõem o assunto. Durante esta dinâmica de associações cabe até os aspectos da subjetividade psicológica do artista. A ação do inconsciente (9) do artista assim como a do futuro leitor é uma exigência para a compreensão da obra, o que a torna uma interpretação ao invés de uma certeza.

A obra proustiana, contemporânea a de Ruskin será de grande valia para a compreensão da lógica ruskiniana, isto porque Proust, ao introduzir a noção do inconsciente (memória involuntária) para a percepção, estaria auxiliando o entendimento da percepção ruskiniana. Não seria sensato dizer que Proust é a mesma coisa que Ruskin, porém o assunto do inconsciente esta presente nos dois, embora Ruskin associe o inconsciente ao conhecimento intuitivo.

O inconsciente se manifesta em Ruskin principalmente na noção da Primeira Impressão, um conceito de fundamental importância para o inicio do processo criativo ruskiniano. Diz respeito a categorias de forças metafísicas de origem desconhecidas e corresponde a uma espécie de captura do espírito da matéria ou de seu caráter. Esse espírito ou caráter é apreendido pelo sentido da visão do espectador no exato momento em que ele vê o objeto pela primeira vez. Além disso, essa impressão é portadora de associações de assuntos diversos que brotam da memória involuntária do espectador assim que avista o objeto. A primeira impressão seria, portanto, um conhecimento intuitivo.

Ruskin refere-se a Turner (10) como exemplo da percepção, dizendo que a pintura de Turner é como uma visão sonolenta em que os objetos parecem uma lembrança sem muita definição. Turner pinta conforme o que sente, com um olhar que perfura a realidade aparente e penetra na memória para evocar fatos, angústias, tristezas, alegrias, cores, etc.

“Turner não pinta aquilo o que vê, ele pinta aquilo que sente”, diz Ruskin.

Turner foi um pintor de paisagens da primeira metade do século XIX. Na maior parte das vezes o seu observador não consegue identificar o tema pintada, apenas enxerga borrões coloridos. Na verdade Turner pintava a luz das paisagens e não as paisagens em si. Mais especificamente Turner pintava as sensações provocadas pela luminosidade das paisagens e apreendidas pela subjetividade psicológica do pintor.

Ruskin dizia: “Turner pinta aquilo o que sente e não o que vê”, isto porque costumava misturar na mesma paisagem observada as lembranças de outros lugares e outras sensações. Essa justaposição favorece o uso da técnica da aquarela que tende a dissolver os limites dos objetos pintados causando a penetração de um objeto no outro. Essa técnica dificulta o entendimento de um tema principal na pintura.

A justaposição de paisagens seria para Turner a ação do seu inconsciente manifestado pela sua Primeira Impressão.

É por isso que Ruskin diz: “Turner pinta aquilo o que sente ao invés daquilo o que vê, pois ele vê muito além do que se apresenta ao olhar”.

Esta técnica tem por mérito transmitir as sensações causadas no pintor, más também o despertar das sensações que causam no observador da obra. Na medida em que o observador não consegue descobrir um tema na pintura (pois só existem borrões coloridos) ele volta-se a si próprio para atribuir significados. O quadro se transforma em um grande vazio que precisará ser preenchido pela imaginação do observador.

Turner pede um co-autor para a sua obra, pois o assunto principal não é a paisagem, mas o inconsciente do pintor se comunicando com o inconsciente do observador. É como se a pintura pedisse uma autopenetração do observador.

Ruskin dizia que a obra de arte não deveria transmitir uma informação, mas ser capaz de produzir informações, e é isso que espera do seu leitor, assim como Turner do seu observador.

A dialética do ensino-aprendizagem na arquitetura

O ensino do desenho nos cursos de arquitetura no Brasil se circunscreveu à ótica cartesiana simultaneamente a prática da caixa preta. Porém como ensinar essa contradição?

A relevância de Proust esta na aparição do inconsciente para a percepção e a de Ruskin esta no uso do inconsciente para os processos de criação. Intuição aqui não é entendida pelo viés cartesiano, que a vê sob a ótica da racionalidade; Proust e Ruskin tratam da percepção associada à noção de inconsciente que não pode ser controlada ou racionalizada.

Os historiadores da arquitetura moderna propuseram uma cisão entre o pensamento racional e o intuitivo, que chamaram de irracional, o que resultou na desqualificação e pouco caso aos momentos que fizeram uso do conhecimento intuitivo. Trataram estes momentos sob a ótica da magia, do sobrenatural, do místico da Idade Média, não entenderam que o inconsciente é diferente da magia e é uma descoberta da modernidade que não tem nada a ver com a Idade Média.

Mas apesar dessa oposição ter sido forjada na história, o processo de criação nos curso de arquitetura utilizou, de forma conjunta, a razão e a intuição para a criação do desenho arquitetônico. Porém os arquitetos ainda não entendem que esta dinâmica contraditória que poderia ser tratada no ensino-aprendizagem da arquitetura.

É certo que não se ensina a intuição, pois, bem disse Proust, não temos o acesso ao nosso inconsciente, no entanto, poder-se-ia fornecer melhores condições para o seu afloramento e desenvolvimento a fim de utilizá-lo no processo de criação.

O conceito de intuição é sem dúvida vago, abstrato e ambíguo, o que inibe a compreensão deste fenômeno. A intuição parece ter sido visto como algo fugidio e inexplicável, ou como algo divino, quase sobrenatural, impossível de ser analisado.

Sob o ponto de vista da etimologia a intuição vem do latim in tueri que significa ver, contemplar; intuitus é visão, contemplação, intuitio é o ato de ver, contemplar.

Seria, portanto um conhecimento direto, uma espécie de visão imediata dos objetos e de suas relações com outros objetos, sem o uso da razão.

“A intuição é o conhecimento que penetra no âmago do ser, na essência das coisas e dos fenômenos, para captar sua quintessência e descobrir as leis e os princípios pelos quais eles se regem” (11).

A intuição pertenceria ao mundo do inconsciente que acrescidos do conhecimento consciente e dos sentidos provocariam uma tempestade cerebral propícia para a criatividade. Essas esferas do conhecimento atuariam de forma simultânea, uma auxiliando a outra, portanto não poderiam ser separadas como fizeram os historiadores da arquitetura moderna.

“Desde os tempos de Platão até aos nossos dias, costuma-se divorciar o conhecimento intuitivo do conhecimento sensível e racional, considerando a intuição como uma espécie de conhecimento independente e superior aos conhecimentos sensíveis e racionais. Esta opinião é, até certo ponto, compreensível. De fato, a primeira vista, a intuição aparece como algo inexplicável ou parapsicológico, uma força misteriosa, mística e até sobrenatural. Mas essa opinião é errônea e superficial. Do nosso ponto de vista, é impossível tal divorcio e infundada tal oposição. Na realidade não existe conhecimento intuitivo independente das demais espécies de conhecimento. A intuição não funciona sem o auxilio dos sentidos e da razão, sem os conhecimentos sensíveis e racionais” (12)

O conhecimento que hoje temos a respeito do funcionamento da mente humana é muito superior a que possuíam Le-Duc, Ruskin e Proust. Admite-se hoje um movimento dialético entre a intuição, sentidos e razão. Cada uma dessas formas de conhecimento desempenha um papel diferente no processo da criação. Cada uma capta algo que o outro não capta, criando uma dinâmica aparentemente caótica e contraditória no qual conflitos proporcionam a aparição de algo novo.

Portanto, para concluir:

É compreensível que o conhecimento racional obtido através do método de Descartes possa conviver com o conhecimento intuitivo e multidisciplinar de John Ruskin, a caixa preta, pois seriam faces de uma mesma moeda para os processos de criação.

notas

1
Le Corbusier, arquiteto suíço do século XX.

2
O partido arquitetônico é um desenho que, embora seja apenas um rabisco, contém o caráter do projeto como, por exemplo, a sua definição estrutural. É o principal desenho do arquiteto, os demais virão em decorrência deste.

3
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emannuel. Discourses on Architecture. Londres, George Allen & Unwin Ltd., Vol.1, 1959.

4
PROUST, Marcel. “No caminho de Swann”, vol. 1 de Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, p. 6.

5
PROUST, Marcel. “A sombra das raparigas em flor”, vol. 2 de Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, p. 493.

6
PROUST, Marcel. “Sodoma e Gomorra”, vol. 4 de Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, p. 625.

7
GONÇALVES, J. A. Proust, Contre Saint-Beuve, notas sobre critica e literatura.

8
O fenômeno da sinestesia: “Eu olhava primeiro com o olhar que é apenas o porta-voz dos olhos, mas à janela do qual se debruçam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, o olhar que desejaria tocar, capturar, levar consigo o corpo que está olhando e com ele a alma” (PROUST, Marcel. “No caminho de Swann”, Op. cit., p. 123).

9
Aqui Ruskin se aproximou de Proust.

10
Turner é um pintor inglês do século XIX considerado o precursor do impressionismo.

11
BAZARIAN, Jacob. Intuição heurística, uma análise científica da intuição criadora. São Paulo, Alfa-Omega, 1986, p. 52.

12
Idem, ibidem, p. 75.

bibliografia complementar

AMARAL, C.A ., John Ruskin e o desenho no Brasil. São Paulo, Tese Fau Usp, 2006.

GONÇALVES, Aguinaldo José. Museu Movente O signo da arte em Marcel Proust. São Paulo, Editora Unesp, 2004.

PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve. Notas sobre crítica e literatura. São Paulo, Iluminuras, 1988.

Correspondência Proust-Gallimard. São Paulo, Edusp, 1989.

RUSKIN, John. Modern painters. Londres, Smith, Elder & Co. 1948, vol. 1.

RUSKIN, J. Modern painters. Londres, Smith, Elder & Co. 1856, vol. 2.

RUSKIN, J. Modern painters. Londres, Smith, Elder & Co. 1856, vol. 3.

RUSKIN, J. Modern painters. Londres, Smith, Elder & Co. 1856, vol. 4.

RUSKIN, J. Modern painters. Londres, Smith, Elder & Co. 1860, vol. 5.

RUSKIN, J. The Stones of Venice. Londres, George, Allen & Unwin. 1925, vol. 1, 2 e 3.

RUSKIN, J. Las siete lampadas de la Arquitectura. Buenos Aires, El Ateno, s/d.

RUSKIN, J. The seven lamps of Architecture. Londres, J.M. Dent & Sons Ltd. 1921.

RUSKIN, J. Munera Pulveris. Londres, Routledge/Thoemmes Press, 1994.

RUSKIN, J. A joy for ever. Londres, Routledge/Thoemmes Press, 1994.

RUSKIN, J. Sesame and Lilies; The two paths; The king of the garden. Londres, J. M. Dent & Sons Ltd. 1944.

RUSKIN, J. Time and tide. Londres, Routledge/Thoemmes Press, 1994.

RUSKIN, J. The Crown of Wild Olive. Londres, Routledge/Thoemmes Press, 1994.

RUSKIN, J. Unto this last. Londres, Routledge/Thoemmes Press, 1994.

RUSKIN, J. Lectures on Architecture and Painting. Londres, Smith, Elder and Co. 1854.

RUSKIN, J. The nature of gothic. A chapter of The Stones of Venice. Londres, edited by William Morris, Kelmscott Press, Hammersmith, and published by G. Allen. 1892.

sobre o autor

Cláudio Amaral, arquiteto, Doutor em arquitetura, professor de Projeto arquitetônico na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp.

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