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architexts ISSN 1809-6298


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Os autores tratam da relação entre cultura e espaço urbano no Japão, ao afirmar que nossa dificuldade de percepção dos espaços japoneses é explicada pelo desconhecimento de sua cultura, que cria uma gramática espacial não linear


how to quote

NEIVA, Simone Loures Gonçalves; RIGHI, Roberto. A cultura e o espaço urbano no Japão. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 099.04, Vitruvius, ago. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.099/119>.

A linearidade como estrutura ordenadora visual dos espaços urbanísticos constitui o padrão para qualificação da boa forma urbana ocidental. Ela faz parte do trabalho de importantes pensadores da cidade: Le Corbusier (1), com suas utopias modernistas; Cullen (2), em seu conceito de visão serial; Lynch (3), ao estabelecer a linha como elemento que organiza a visão urbana; e Venturi e Brown (4), com padrões lineares na exploração da forma física da cidade de Las Vegas.

Para se compreender corretamente o que é a cidade japonesa são necessários conceitos pouco difundidos e estranhos ao ocidente. É por esta razão, que o visitante ocidental ao observar cidades como Tokyo tem dificuldade para compreendê-la, resultado do desconhecimento dos princípios que regem a composição deste espaço (Fig.1). A linha reta compreendida como uma abstração presente na idéia espacial ocidental é utilizada pelo arquiteto ao iniciar o traçado de suas cidades. Para os japoneses a linha curva é entendida como uma variação da linha reta e não uma forma distinta (5). No Japão houve por volta do ano 700 uma tentativa de implantação direta da ortogonalidade, por influência Chinesa, nas cidades de Nara e Kyoto. Porém, os elementos norteadores de sua composição quadriculada são pautados em considerações religiosas e não as meramente racionais definidoras do traçado em grelha ocidental, originário da tradição greco-romana (6). Além disto, dada sua estranheza para a cultura japonesa este traçado não teve um impacto duradouro sobre a urbanização de outras cidades japonesas, como afirma Sorensen (7). Mesmo as tentativas ulteriores de implantação de um sistema mais ocidental não tiveram sucesso, segundo Funahashi(8).

Para a falta de legibilidade das cidades japonesas para o ocidental deve ser atribuída ao valor diverso atribuído à linha e ao território nas duas culturas. Diversos autores destacaram este caráter espacial das cidades japonesas Ashihara, Barthes, Berque, Rapoport, Rodofsky(9). No oriente é dominante o plano e a interação entre exterior e interior. Estas diferentes linguagens evidenciam-se nos sistemas de escrita ocidental e japonesa, uma baseada na linha, unidirecional e outra na superfície, multidirecional. Barrie (10) considera que as letras ocidentais precisam do agrupamento linear, enquanto que os ideogramas japoneses, o kanji (11), tem significado tanto sozinhos, quanto em grupos. Esta profunda diferença reflete-se nos instrumentos tradicionais de escrita, a pena e o pincel, na ocidental e na oriental, respectivamente. Na primeira a pena risca o papel de forma linear, enquanto o pincel dá plena liberdade de movimentos, como afirma Roland Barthes (12).

Para Botond Bognar (13) a forma de organizar o espaço reflete os princípios de uma cultura, como no Japão a relação entre campo visual amplo do texto e a cidade que não possui um só centro e traduz ambigüidade entre os elementos urbanos. O endereço é um eficaz indicador desta outra lógica espacial. Ele é representado por uma placa vertical, na esquina de duas ruas anônimas. Ela representa o número do chome, unidade de área, não tão regular como as quadras ocidentais, e o machi, outra unidade de área constituída de vários chomes. Quanto à numeração, ela não é serial dentro do chome, reproduzindo outros padrões lógicos, como a data de construção ou a subdivisão dos lotes. O resultado deste processo é um sistema não linear e complexo, agravado pela sinuosidade das ruas japonesas, que não possuem nem independência, nem individualidade, como expressa Takatani (14) (Fig. 2).

Então, para se compreender o complexo sistema espacial imperante no Japão é necessário penetrar na cultura deste povo, considerando as relações entre o visível e o invisível. Nela os princípios que definem a espacialidade são os conceitos básicos: ku – vazio, oku – profundidade e ma – intervalo.

O Ku

Até o final do século XIX o conceito de espaço arquitetônico e urbano ocidental era desconhecido no Japão. Não havia na língua japonesa palavra que o denominasse. Apenas na era Meiji (1868-1912), quando as relações com o ocidente se intensificaram é que, unindo os ideogramas ku e kan, o conceito de espaço é introduzido como o termo kukan, que literalmente significa “lugar vazio” (15). Porém apesar de não expresso em palavras até a era moderna, os japoneses já possuíam um conceito de espaço na arte onde o vazio era dominante. Numa das mais antigas práticas religiosas japonesas, o xintoísmo, as pedras e árvores eram adornadas com a shimenawa, formada por cordas e guirlandas de papel, que definia ao seu redor um espaço vazio onde as pessoas não se aproximavam (Fig.3).

Porém foi na era medieval, que a idéia de vazio e do nada foi reforçada pelos ensinamentos budistas que passaram da religião para as artes. Em um trecho de Tsuzuregusa (1330), um clássico da literatura japonesa, o monge Kenko sugere a rejeição de tudo que é concreto: “Móveis demais num cômodo, budas demais em um templo, pedras e plantas demais num jardim; a pessoa que fala demais das coisas que tem feito – tudo é desprezível” (16). Atitude semelhante é definida em relação ao vazio e é apresentada pelas composições da pintura zen do medieval. Quando elas são comparadas às pinturas do período anterior, o Heian (784-1185), onde as superfícies eram completamente preenchidas com uma composição de pessoas e edifícios em perspectiva, fica claro que a pintura zen foi gradualmente cedendo lugar ao vazio, que passou a ocupar a maior parte da superfície sob a forma de montanhas e nuvens representadas à distância.

Desta forma no decorrer do tempo a idéia de vazio foi sendo fortemente arraigada à mentalidade japonesa, inclusive nas manifestações culturais, como a escrita. Sua presença na arte da caligrafia, o shodo, se deu através do kukaku ou “traço imaginário” (17), com seu movimento do pincel no ar, que une traço a traço e desaparece ao final. Esta dimensão oculta é absolutamente desconsiderada pela escrita ocidental, onde apenas tem relevância o traço que permanece visível após o lápis tocar o papel. Na escrita japonesa o domínio do kukaku é imprescindível na criação de um belo caráter na expressão escrita (Fig.4).

No urbanismo só foi na era moderna, após a destruição do castelo de Edo em 1657 (18), que a afinidade cultural japonesa pelo vazio resultou na formação de um dos aspectos mais intrigantes da cidade de Tokyo. Após este evento o centro da cidade tornou-se vazio, criando uma conformação que difere fundamentalmente das metrópoles ocidentais.

O sociólogo Roland Barthes traduz esta diferença:

“O centro vazio de Tokyo fere o sentimento ocidental de cidade, onde é requisitado um centro aonde ir, retornar, um lugar com o qual se sonha, o lugar que se avança ou retarda em relação a ele. No ocidente, os centros são sempre cheios, neles estão condensados os valores da civilização ocidental: o mercado, a igreja, o poder, os bancos e as praças. Mas Tokyo oferece um paradoxo. A cidade vive indiferente a ele, ele está entre as folhas, escondido, não visível. O fluxo da cidade contorna ao seu redor, os muros, as ruas, os carros, as pessoas giram centrifugamente, perpetuamente ao redor do vazio central” (19).

Barthes refere-se ao Palácio Imperial em Tokyo como um “centro vazio", a estrutura urbana de Tokyo se caracteriza por ter o maior vazio em seu próprio centro. Assim, a despeito do crescimento da economia japonesa e do desenvolvimento urbano, o maior santuário do Japão mantém-se intocável (20). Segundo o arquiteto Atsushi Kitagawara (21), Roland Barthes detectou o que “nós japoneses sabíamos havia muito tempo: no Japão, o centro da cidade é um vazio”. Ainda hoje o espaço deixado pelo castelo trata-se, praticamente de uma floresta assentada sobre um plano. Para os japoneses o centro vazio de Tokyo existe sem que haja qualquer necessidade de um marco visual vertical que o represente, ao contrário do que ocorre na maior parte das metrópoles ocidentais.

No Japão, o vazio e a profundidade são qualidades desejáveis na criação das artes e dos lugares, enquanto no ocidente a materialidade é uma característica da composição espacial. O vazio deixado pelo castelo foi escondido pelas árvores e envolvido pela cidade tornando-o gradualmente cada vez mais oculto. Assim, Tokyo hoje, conscientemente ou inconscientemente, aplica um conceito que surgiu nos espaços japoneses antigos: o oku.

O Oku

O surgimento do oku ocorreu na era Yayoi (200 A.C. - 250 D.C.), com o desenvolvimento do cultivo do arroz e a mudança para as planícies (22). Neste período a vila abandonou a montanha que se tornou local sagrado.

Neste processo a montanha afastou-se do cotidiano, objeto de adoração para a religião xintoísta. Nela foram construídos santuários, os okumiya, que atendiam as necessidades da religião em formação. Os santuários estabeleciam a noção de um lugar que existia, mas não era visível, situado distante das pessoas comuns. Para Maki (23), os japoneses estabeleceram um padrão de organização espacial que contrasta com o padrão ocidental tradicional. No ocidente a formação da cidade é marcada pela igreja, cuja posição é marcante e central.

O oku é o avesso da centralidade ocidental, pois é oculto, encoberto e invisível. Ele cria o senso de profundidade utilizado pelos japoneses para suas cidades ao longo dos séculos. Nos mapas antigos de Tokyo coletados por Tokihiko Takatani (24) verifica-se que os caminhos que vinham da periferia ao interior das quadras, dirigiam-se para onde antes estavam santuários, templos e residências de samurais. No decorrer do tempo as sobreposições dos componentes espaciais se inter-relacionaram com a topografia, rodovias, cercas, árvores e muros criando uma intrincada estrutura urbana. Este complexo emaranhado origina o tecido urbano do oku que nos remete a vegetação da montanha. As camadas que se formam no tempo envolvem, escondem, protegem, dão profundidade e criam mistério em torno do vazio. Desta forma o que antes envolvia os okumiya, hoje cerca inúmeros centros vazios das cidades japonesas.

A experiência de chegada aos centros das cidades ocidentais é exatamente o contrário do caso japonês, pois lá se caminha em direção à intimidade, ao oku, que não tem clímax. Nos espaços da cidade japonesa, ao aproximar-se do oku não há a busca do destaque urbanístico ocidental. Na composição do espaço urbano no Japão importa a criação de camadas, dobras e curvas que ocultam o oku. Assim, no Japão, não há a certeza de chegar a um endereço através da linha reta. A cultura urbana japonesa é a do centro vazio, oculto (Fig.5).

Para o arquiteto Atsushi Kitagawara a sensação que temos na cidade japonesa é que “[...] à sua volta, aparecem várias coisas e acontecimentos, mas ninguém sabe do centro” (25). Para um ocidental a chegada ao final de uma caminhada por um bairro pode ser frustrante, pois convergir ao oku significa chegar ao nada, atingir o zero, o vazio e novamente se perder.

O Ma

Como o ku, o ma é um conceito espacial que tem como característica a imaterialidade. Ele é mais subjetivo que objetivo. Seu significado é compreendido por suas manifestações visuais nas artes.

A partir do período medieval, para atingir a perfeição na pintura zen, ou a “harmonia do ma”, significava não somente ter habilidade com as formas pintadas, mas dominar a relação destas com o vazio circundante. Deste modo, se a relação geral entre os elementos fosse inadequada à essência do ma, esta certamente estaria perdida (Fig.6).

Neste sentido o pintor Ike no Taiga (1723-1776) fez uma importante consideração ao vazio em sua pintura ao dizer que “[...] as áreas vazias são precisamente as mais difíceis de serem produzidas” (26).

Na arquitetura o ideograma ma está presente nas palavras usadas para o design como: ma-dori, que significa entender o ma, ou cha no ma. O cha no ma excede a sala de estar como espaço físico, envolvendo o ato de tomar o chá de forma relaxada. Tanto o ma-dori como o cha no ma evidenciam que a arquitetura era a arte de criar um ma particular, uma ambiência especial.

A planta de arquitetura dos antigos mestres construtores japoneses não possuia nem fachadas nem cortes. O desenho era bidimensional. Os elementos importantes eram: coluna e viga, representados por pontos pretos, que simbolizavam todo o edifício. Apenas observando estes pontos um bom mestre era capaz de visualizar o edifício acabado. De acordo com Itoh “a existência deste sistema trouxe a possibilidade de visualização mental de todas as partes acima do plano” (27). Tal capacidade de visualização permitia que o intervalo entre pontos, conhecido como ma, constituísse um tipo de espaço que, apesar de invisível, fosse considerado.

Porém o ma não se resumia apenas aos elementos estruturais do espaço, mas também estava presente no arranjo para os usos temporários, característicos da cultura japonesa. O ma era criado pela adição e remoção de portas de correr, janelas portáteis e utensílios que proporcionavam a adaptação da casa às mudanças de estação, usos e necessidades sociais. De acordo com Kiyoshi Seike (28) o arquiteto ao planejar a casa tradicional criava o madori, ou seja, um sentido de lugar, algo invisível, porém perceptível.

No espaço dominado pelo plano horizontal o ma exigiu a criação de formatos artísticos bastante distintos dos ocidentais. Dentre eles destaca-se a emakimono, ou “rolo de pintura”, onde o tempo é sugerido pela reprodução de eventos sucessivos de uma mesma história. Na emakimono as cenas são independentes e não se constituem em um panorama contínuo, o que induz o observador a uma constante mudança de ponto de vista. A emakimono reproduz, no plano, algo similar ao modo como o japonês experimenta o espaço da cidade, “uma experiência a ser memorizada, feita de uma miríade de experiências menores” (29).

Neste formato de pintura, somente a fusão das seqüências de imagens se constituem na experiência completa. Este processo de leitura espacial, denominado pelos japoneses de ma no torikata, permite captar o ma, porém exige do ocidental, habituado a leitura linear do espaço, um enorme esforço de imaginação.

Abstração ainda maior da aplicada na observação no plano é requerida ao ocidental pelo ma na cidade tridimensional. Do mesmo modo que no plano, o ma no espaço urbano é composto por elementos aparentemente não relacionados entre si. De forma similar a uma emakimono, a cidade japonesa apresenta sucessões de eventos e elementos dispersos, impossíveis de serem agrupados por uma mente cartesiana. Um primeiro contato com o ma é descrito pelo sociólogo Roland Barthes, em visita ao Japão:

“Você deve orientar-se...não por livros, ou por endereço, mas caminhando, pela visão, pelo hábito, pela experiência; aqui cada descoberta é intensa e frágil; ela pode ser repetida ou recordada apenas pela memória do rastro que foi deixado por ela em você” (30).

Barthes sugere que, com o auxilio da memória e da repetição, cada um crie seu panorama particular. Deste modo as imagens efêmeras e fragmentadas podem orientá-lo. O ma no torikata é a chave para “ordenar” e compreender o espaço. O desconhecimento deste processo torna ao ocidental a cidade de Tokyo “ilegível”. Na realidade, a dificuldade ou inaptidão destes em compreender este lugar decorre do fato que é a imaginação, e não a linha reta, que ordena elementos no espaço.

Fragmentação

A construção do espaço urbano japonês possui grande relação com o meio rural. Na realidade eles constituem um contínuo físico e conceitual. A fazenda japonesa é também muito distinta da ocidental, conforme Barrie (31).  Assim, os conceitos espaciais presentes nas áreas urbanas são também aplicados no campo e vice versa. Em primeiro lugar o campo é formado por sítios ou lotes e não campos extensivos ou latifúndios. São pequenas áreas que, a despeito do tamanho, possuem claras divisões entre si. Tais delimitações são estruturas sólidas em que, sobre ou ao lado das quais, é possível andar, como um dique, uma parede ou uma cerca. Na maioria dos casos, a divisão produz lotes de todos os formatos, com curvas e contornos irregulares, ainda que em terra plana os lotes tendam a ser mais lineares. Nos campos onde o arroz não é dominante existem variedades de cultivos como vegetais, frutas, chá ou flores. Independente da plantação sempre existe limites entre as áreas que servem para reforçar a noção de mosaico (Fig.7).

Em 1937 o arquiteto modernista Bruno Taut discutindo o modo de vida no Japão referiu-se aos planos dos campos japoneses: “Estes planos mostram um imenso desmembramento da terra, particularmente quando a terra se dispersa em diferentes propriedades, algumas das quais, embora cuidada pelo mesmo dono, é claramente separada uma da outra” (32).

Hoje em dia, apesar da racionalização das áreas de plantio, a fragmentação continua na prática japonesa de divisão espacial. Apesar de aparentarem uma divisão contemporânea, ou seja, um parcelamento feito por novos cultivadores, na verdade a terra estava fragmentada desde o início, representando agregação de pedaços. A fazenda local é a antítese da linearidade e guarda em sua fragmentação a herança espacial japonesa.

Foi neste tipo de solo fragmentado que surgiram as cidades japonesas. O processo de transformação urbana mantém as características do solo rural fragmentado. Onde antes estavam frutas e vegetais agora estão randomicamente distribuídos hospitais, postos de gasolina, escolas e casas, formando uma paisagem muito diferente da organizada pela divisão de uso de solo por função, adotada no ocidente. As atividades não são agrupadas, mas sim espalhadas. Assim, a autonomia de cada área se mantém.

Além disto, nas cidades japonesas existem poucas áreas planas. Muros de retenção e encostas construídas separam áreas ocupadas e estradas. Cada lote estende sua área, elevado, ou recortado na extremidade de seu limite. Raramente um edifício é inserido num lote não plano. Ele é aplainado. A paisagem se transforma num mosaico irregular, de pequenas áreas planas. Os morros que guardam seu relevo natural assentam ruas estreitas que ligam áreas independentes. É o equivalente aos terraços das plantações, ou ainda o equivalente à plataforma para pisar, a engawa, antes de entrar na casa tradicional e alcançar o tatami.

Ordem aberta

A dispersão randômica dos elementos que compõem o espaço japonês é ainda encontrada nas cidades contemporâneas e teve sua origem há vários séculos nos antigos assentamentos. Nas vilas tradicionais, logo abaixo do oku da montanha, as casas já obedeciam a uma ordem natural denominada arare ou iso-gai, sinônimos de fortuito ou desorganizado (33). Nestas palavras os japoneses comparavam o arranjo espontâneo das casas nas vilas à disposição das folhas de outono dispersas pelo chão – arare, ou a disposição das conchas espalhadas na areia da praia – iso-gai,  padrão da expansão orgânica das típicas cidades japonesas.

Este arranjo espontâneo perdurou até o século VI, quando sob a influência de filosofias chinesas os japoneses passaram a relacionar equilíbrio entre elementos naturais e religião. Neste período a força de crenças chinesas como o shishin-soo (34), relacionada aos pontos cardeais, foi determinante para a estrutura física das cidades. Neste princípio os japoneses buscaram como ideal, a compatibilidade entre o lugar e os espíritos das quatro direções: o rio, a leste correspondente ao dragão azul; o lago, ao sul à fênix; a via principal, a oeste ao tigre branco e a montanha, ao norte à tartaruga.

Na fundação de Nara (710) e Kyoto (794), antigas capitais japonesas, a escolha do terreno e a orientação das construções obedeceram às relações de equilíbrio entre elementos do céu e da terra. Apesar do traçado ortogonal destas cidades terem semelhanças com o traçado ocidental, o princípio ordenador das suas ruas é outro.

Estes padrões de orientação inicialmente afetaram cidades e templos, mas depois também a arquitetura comum. No século XVI, João Rodrigues, um dos primeiros ocidentais no Japão, comentou a força que possuíam as razões religiosas no posicionamento das casas no terreno.

Apesar da presença de ocidentais no Japão, a partir do século XVI, a geometria linear nunca se tornou o princípio ordenador do espaço. Em 1958, o arquiteto Bruno Taut afirmou que: “O Japão apropriadamente absolutamente ignora o conceito de eixo arquitetônico, isto é, que a linha reta existe apenas em nossas mentes, a linha com a qual todos os arquitetos iniciam seu trabalho” (35).

Com exceção de Nara (710), Kyoto (794) e Sapporo (1869), as demais cidades japonesas permaneceram como antigas vilas, essencialmente orgânicas. Tokyo, para os ocidentais parece uma colcha de retalhos mal cortados e envolvidos por ruas tortuosas nada similares às outras metrópoles contemporâneas (Fig.8). Para eles, o desenho de Tokyo parece pouco lógico e funcional. Contudo, para os japoneses o que importa é que a cidade contenha seus vários oku. No espaço da cidade japonesa a linha reta surge como um elemento estrangeiro. Sua existência anula a possibilidade da experiência do ma, pois ao unir ponto a ponto no processo de leitura espacial, o faz racionalmente, sem o uso da imaginação.

Assim, a linearidade do traçado ocidental é limpa e direta: não escondendo, não criando camadas, não envolvendo. Ela é, de certo modo, o avesso da profundidade necessária à criação do espaço japonês. A adoção do traçado linear sobre a milenar malha urbana das cidades japonesas exigiria a clareza de cada elemento urbano, descortinando edifícios e fachadas, ainda que tornasse as cidades mais “legíveis” para o ocidental, significaria a imposição de um sistema estranho à mentalidade espacial japonesa.

Ainda hoje a implantação de um modelo ocidental linear é rejeitada pela maior parte dos japoneses (36). O traçado de Tokyo constitui-se em um novelo gigante, que respeita as relações dos conceitos espaciais: ku, oku e ma. Assim, a relação com o invisível na criação de seus artefatos, cunhada pela tradicional cultura japonesa, subsiste na contemporaneidade.

Durante muito tempo, a boa relação com a influência do céu, que decidia a boa ou a má sorte, foi mais importante na construção dos espaços japoneses do que o conforto ambiental, os padrões estéticos ou geométricos. Esta relação persiste ainda hoje. Mesmo em cidades altamente tecnológicas como Tokyo, antes do início da construção da maioria dos edifícios atuais são observados rituais xintoístas. Antes de iniciar a edificação o território é delimitado pelos sacerdotes com o auxílio das mesmas cordas adornadas com a shimenawa, as guirlandas de corda e papel que marcaram a santidade das árvores e pedras no passado. Neste espaço sagrado os deuses são invocados e a purificação do terreno vazio é conduzida.

O movimento

No período feudal, o arranjo espacial chinês deixou de ser adotado e a aversão dos japoneses por espaços ortogonais tornou-se evidente (37). Nesta época, superadas as influências geométricas ortogonais, a arquitetura japonesa se tornou complexa, seguindo suas tendências naturais ao movimento.

Entre os espaços arquitetônicos mais significativos do período está o Palácio Hommaru (1640) em Tokyo, antiga Edo. Seu arranjo espacial é absolutamente irregular, não sendo possível encontrar-se um eixo ou centro.

Os edifícios assim organizados contrastam com os alinhados. Ao se caminhar por estes espaços uma nova cena é descoberta a cada curva. Como o desenrolar de uma emaki-mono, cada componente é visto numa sucessão. O espaço nunca é revelado em sua extensão de uma só vez, mas mostra-se pouco a pouco no tempo. Nos espaços desta natureza os elementos são conectados como elos de uma corrente. A intenção aqui é criar um espaço cheio de movimento e mudança. Não se importa com o desfecho espetacular, mas com a sucessão, resultante do caminhar (Fig.9).

A tendência ao movimento no espaço japonês abrange a arquitetura e a cidade. O complexo arquitetônico de Kiyomizudera (1633), em Kyoto, relaciona-se intimamente com sua vizinhança através da articulação de espaços movimentados. Em todo o complexo existe um senso de movimento contínuo e de atração que leva o individuo a sempre avançar e retroceder ao ponto de partida sem nenhum clímax particular. Este movimento de torção no espaço arquitetônico japonês tem seu paralelo em conceitos budistas como mutabilidade e transmigração da alma, que implicam no fluxo baseado na existência temporal. Contudo, tal fluxo não tem constância, prescinde da velocidade regular e direção fixa, se assemelhando a um movimento defletido e descontínuo (Fig.10).

Considerações finais

É importante que se reconheça o estudo de novos conceitos, como forma de ampliar a percepção de seu próprio mundo. Esta justamente tem sido a postura dos japoneses durante séculos: aprender a cultura e a técnica de outros povos sem perderem suas próprias tradições no processo.

A afinidade do japonês pelo invisível forjou, através da religião e de conceitos como: ku, oku e ma, um espaço que rejeita a racionalidade imediata da linha reta, característica da cultura espacial ocidental. No universo contemporâneo muito pluralista, incluir a percepção japonesa em discussões sobre o espaço significa considerar-se a existência de outros princípios e padrões de ordenação, ainda vivos na cultura e na experiência humanas. Os conceitos expostos demonstram algumas das limitações da percepção linear para a leitura de espaços e a possibilidade da existência de outros sistemas, como o japonês.

notas

1
LE CORBUSIER. La ciudad del futuro. Buenos Aires, Ed. Infinito, 1962.

2
CULLEN, Gordon. Townscape. London, Architectural Press, 1961.

3
LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge, MIT Press, 1960.

4
VENTURI, R., SCOTT Brown, D. and IZENOUR, S. Learning from Las Vegas. Cambridge, The MIT Press, 1972.

5
Tradicionalmente a arquitetura japonesa empregava métodos próprios, como o tawamijaku ou o shinai-joogi para desenhar tanto a linha reta quanto a curva. Quando a necessidade da linha curva surgia, o mestre carpinteiro fazia uso de um caibro longo e fino. O formato da curva variava com a espessura do caibro e a intensidade da força aplicada a este. O caibro não tinha medida de gradação e, portanto, o processo era bastante subjetivo. Desta maneira foram criadas praticamente todas as curvas dos telhados dos templos budistas e dos santuários xintoístas. Para os japoneses, a linha curva sempre foi meramente uma variação da reta e não uma forma totalmente distinta. ITOH, Teiji. Tradition in Japan’s formativa culture. In BAILEY J. (org) Listening to Japan: a Japanese anthology. New York, Praeger Publisher, 1973
6
Segunda Nitschke a forma das cidades de Nara e Kyoto aproximam-se do desenho da mandala do Hinduísmo ou do Budismo Isotérico, onde há a reprodução de um microcosmo que simboliza o macro. Como no layout da mandala, o espaço destas cidades é uma das expressões do espaço transcendente, não têm como princípio um espaço físico, potencialmente manipulável por uma ordem visual meramente racional. NITSCHKE, Gunter. Ma: the Japanese sense of place in old and newarchitecture and planning. Architectural Design, March, 1996.

7
SORENSEN, André. The Making of Urban Japan, Cities and Planning from Edo to 21 st Century. Tokyo, Nissan Institute/Routledge Japanese Studies Series, 2002.

8
FUNAHASHI, Kunio. Addressing System: Spatial Structure and Wayfinding in Japanese Tows. In Current Issues in Enviromental Behavior Research – Proceedings of the Third Japanese – United States Seminar Held in Kyoto, Japan, July 19-20, 1990, Ed. University of Tokyo, Tokyo, 1990.

9
ASHIHARA, Yoshinobu. The Aesthetic of Tokyo. Tokyo, The Ichigaya Publishing Co, 1998. BARTHES, Roland. The pleasure of the text. New York, Hill and Wang, 1975. BERQUE, Augustin. Vivre L’Espace au Japon. Paris, Presses Universitaires de France, 1982. RAPOPORT, Amos. Human Aspects of Urban Form: Towards a Man-Environment Approach to Urban Form and Design. Oxford, Pergamon, 1977. RODOFSKY, Bernard. The Kimono Mind. New York, Prentice Hall, 1965.

10
BARRIE, Shelton. Learning from the Japanese City: West meets East in Urban Design. London, E & FN Spon, 1999.

11
O kanji é uma das quatro formas de escrita japonesa, sendo as outras: hiragana, katakana e o rõmaji. A hiragana é a mais vulgar, formada por 46 caracteres silábicos, usados para palavras japonesas. A katakana é de uso limitado, constituída também de 46 caracteres simples, apropriada para a transcrição de palavras estrangeiras adaptadas à fonética japonesa. O rõmaji constitui-se na transcrição da língua japonesa escrita no alfabeto ocidental. O kanji é a escrita mais erudita, derivada do chinês nos séculos III a VI D.C. Ela é de caráter ideográfico e abstrato, ou seja, constitui representações muito estilizadas de objetos, seres e conceitos. Existem cerca de 80.000 caracteres, porém são necessários cerca de 3.000 para a leitura de um jornal (BARNABÉ, 2005 e RUDOFSKY, 1965, p.157).

12
BARTHES, Roland. The pleasure of the text. New York, Hill and Wang, 1975.

13
BOGNAR, Botond. Contemporary Japanese Architecture: its Development and Challenge. New York, Van Nostrand Reinhold, 1985.

14
TAKATANI, Tokihiko. Tokyio Street Patterns: a historical Analysis. Japan Echo, Tokyo, Vol. XIV, p. 39-44, 1987.

15
O kanji Ku também significa céu, universo ou infinito e Kan intervalo, aumentando as possibilidades de interpretação do espaço japonês. NITSCHKE, Gunter. From Shinto to Ando: studies in architectural Anthropology in Japan. Great Britain, Academy Editions, 1993, p.52.

16
YOSHIDA, Kenko. Essays in idleness: Tsurzureguza of Kenko. New York, Columbia University Press, 1967, p. 64.

17
ITOH, Teiji. Tradition in Japan’s formative culture. In BAILEY J. (org). Listening to Japan: a Japanese anthology. New York, Praeger Publishers, 1973, p. 20.

18
NAITO, Akira. Planning and Development of Early Edo. Japan Echo, volume XVI, Special Issue, 1987, p. 37.

19
BARTHES, Roland. 1975, p.30 (tradução dos autores).

20
Nota dos autores: O Palácio Imperial não deve ser contemplado de cima por ninguém, a abertura do metrô por baixo nunca é possível, ainda que conveniente. Tudo o que se pode ser feito é contornar o vazio urbano.

21
Entrevista. Atsushi Kitagawara. Portal Vitruvius. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/entrevista/kitagawara/kitagawara_2.asp>. Acesso: 17 julho, 2006.

22
YUICHIRO, Kojiro. Japanese communities. Tokyo, Kashima-Shuppan, 1977.

23
MAKI, Fumihiko. Japanese cities and the concept of oku. Japan Architect, Tokyo, Vol.54, n. 265. p. 50-62, 1979.

24
NITSCHKE, Gunter. Ma: the Japanese sense of place in old and newarchitecture and planning. Architectural Design, March, 1996, p. 152.

25
Entrevista. Atsushi Kitagawara. Portal Vitruvius. Acesso: 17 julho, 2006.

26
NITSCHKE, Gunter.1996, p. 152.

27
ITOH, Teiji. Tradition in Japan’s formative culture. In BAILEY J. (org). Listening to Japan: a Japanese anthology. New York, Praeger Publishers, 1973, p. 109.

28
SEIKE, Kiyoshi. Sumai to ma. In TAKEHINO, Kenmoochi. Nihonjin to ma. Tokyo, Kodansha, 1981, p. 26-37.

29
NITSCHKE, Gunter. 1966, p. 154.

30
BARTHES, Roland. Empire of signs. New York, Hill and Wang, 1982, p.36 (tradução dos autores).

31
BARRIE, Shelton. Learning from the Japanese City: West meets East in Urban Design. London: E & FN Spon, 1999.

32
TAUT, Bruno. Fundamentals of Japanese architecture. Tokyo, 1937, p. 219 (tradução dos autores).

33
BARRIE, Shelton. 1999.

34
TAUT, Bruno. 1937, p. 219.

35
GALE, Simon J.. Orientation. Process Architecture, Japan: climate, space, and concept, Tokyo, n. 25, august, 1981, p. 40 (tradução dos autores).

36
COOPER, Michel (ed) They came to Japan: an anthology of European reports on Japan, 1543-1640. Berkeley: University of California Press, 1975, p. 215.

37
TAUT, Bruno. House and people of Japan. Tokyo, Sanseido, 1958, p. 222.

sobre os autoresSimone Loures Gonçalves Neiva, arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo, pós-graduada em História da Arte e História da Arquitetura pela PUC/Rio, mestre em Arquitetura pela Universidade de Tóquio, ex-fellow da Fundação Japão (Kokusai Koryu Kikin). Atualmente é doutoranda pela FAUUSP.

Roberto Righi, arquiteto e urbanista pela Universidade de São Paulo, mestre em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutor em arquitetura e urbanismo pela FAUUSP. Participa do ensino e pesquisa, como professor titular na graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e também da FAUUSP.

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