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architexts ISSN 1809-6298


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Neste artigo, Marcos Carrilho expõe o valor patrimonial do edifício do Teatro Cultura Artística, lamentando a proporção da perda que se teve com seu incêndio e criticando a proposta do novo teatro a ser construído


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CARRILHO, Marcos. Teatro Cultura Artística: novo edifício e restauração. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.01, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/80>.

O incêndio do Teatro Cultura Artística causou uma perda inestimável para o patrimônio cultural paulistano (1). O edifício abrigou por mais de cinqüenta anos a Sociedade de Cultura Artística, instituição de tradição quase centenária, responsável por uma ação incansável na promoção da atividade artística, em especial, da música erudita. Constituiu um dos redutos de persistência da produção artística na região central da cidade. Era obra de Rino Levi, um dos mais importantes arquitetos de São Paulo.

O episódio interrompe bruscamente as atividades da instituição e deixa na incerteza a retomada da sua continuidade. Evidencia a falta de rigor na gestão da produção artística e a persistência de um grau de amadorismo, senão na promoção empresarial de eventos culturais, seguramente nos aspectos da produção técnica – sempre negligenciados – relegando freqüentemente as instalações e equipamentos culturais a condições de deficiência e de alto risco de sinistros.

O choque e a comoção provocados geraram de imediato, manifestações de solidariedade. Os dirigentes da Sociedade de Cultura Artística reagiram prontamente assegurando que o teatro seria reconstruído. Mas o incêndio também suscitou reações correspondentes a anseios latentes: de um lado as demandas pela transferência do teatro para áreas supostamente mais compatíveis com o público freqüentador e, de outro, a tendência à construção de um novo teatro capaz de superar as limitações de um auditório projetado como sala de concerto, devido à sua crescente utilização para as artes cênicas.

Porém, embora a alternativa da transferência do teatro para outro ponto da cidade tenha gerado reações imediatas de condenação, o mesmo não ocorreu em relação à proposta de construção de um novo teatro. A Sociedade de Cultura Artística decidiu pela demolição dos remanescentes do edifício original e sua substituição por um novo edifício no mesmo local.

Diante desta circunstância cabe perguntar: até que ponto o incêndio comprometeu o edifício? Não seria necessário examinar o valor da obra? Seria possível restaurá-la? E, neste caso, não seria possível incorporar novos elementos que atualizassem e aperfeiçoassem suas deficiências em relação aos recursos atuais?

Uma obra sem valor?

O Teatro Cultura Artística constituía uma das melhores salas de concerto da cidade, tendo mobilizado à época de sua concepção rigorosos recursos técnicos. Esta condição sempre foi reconhecida, tendo recebido, por cinco décadas, os mais destacados expoentes da música erudita.

O projeto não surgiu de forma autônoma, mas como resultado da experiência acumulada na realização de uma série de salas de cinema tais como o Cine Ufa-Palácio, 1936, o Cine Ipiranga e o Cine Piratininga,1941, todos em São Paulo e o Cine Art-Palácio, 1937, em Recife. Trata-se de auditórios de grande porte e altamente sofisticados, cujos projetos estavam em sintonia com uma arte florescente. Embora equipados com recursos técnicos para a amplificação sonora, estas salas de cinema não negligenciavam os cuidados sob o aspecto acústico, sendo muitas delas desenvolvidas em continuidade à tradição de cines-teatro do período imediatamente anterior.

A atenção com o perfeito desempenho acústico do Teatro Cultura Artística fica manifesta nas considerações sobre a solução de projeto:

“A forma obedece ao tipo hoje corrente, com paredes e forro divergentes, a partir do palco. Ela é realizada com a preocupação de distribuir o som com igual intensidade em todos os pontos da sala. Para isso as paredes e forro são orientados para enviar a maior quantidade de ondas sonoras refletidas para os pontos mais afastados do foco de origem.” (2)

Mas o projeto respondia também a limitações de outra ordem. Implantado em terreno de geometria irregular, de pequena dimensão, sua organização atendia às necessidades de acomodação das exigências funcionais de um auditório à configuração da área. Não se caracterizava como um volume autônomo destacado da estrutura fundiária, mas a ela se adaptava a exemplo de outras obras modernas situadas no centro da cidade, de cujos exemplos, aliás, se destacam obras do próprio Rino Levi, como o Cine Ipiranga e Hotel Excelsior e o Edifício do antigo Banco de São Paulo, na Rua Boa Vista. Distinguia-se, deste ponto de vista, de grande parte dos exemplares da arquitetura moderna, notadamente das edificações teatrais, para as quais sempre se buscou explorar a expressão autônoma dos volumes.

O projeto do teatro é de 1942, porém sua construção só seria iniciada em 1947, tendo sido concluída em setembro de 1949 (3). Conheceu, então, considerável difusão internacional, tendo sido publicado em vários periódicos estrangeiros como L’Architecture d’Aujour d’Hui, Architectural Record, Architectural Review e Domus (4), entre outros.

A justificativa do projeto então divulgada quase se desculpa pelo resultado ao afirmar que a “exigüidade do terreno não permitiu um desenvolvimento plástico externo de acordo com a importância e finalidade da obra” (5). Mas, apesar destes condicionamentos a leve curva de sua fachada principal parece buscar alguma expressão na única face em que o edifício alcança alguma liberdade. Mais do que sugerir a inflexão da rua, o volume salienta a curvatura da platéia, cujo movimento contrasta com a linha reta da marquise, explorando deste modo o único elemento plástico capaz de manifestar o sentido primordial desta edificação.

Contidos nestes limites, os recursos de expressão disponíveis são desenvolvidos em todos os seus aspectos. O teatro é, por excelência, o ponto de convergência das manifestações artísticas. As artes estáticas e as artes do movimento nele encontram a possibilidade do convívio simultâneo. O espaço cênico não é o único ponto de concentração desta integração cujas manifestações se expandem, por meio da arquitetura, para alcançar o ambiente exterior. Da representação convencional das musas no frontispício dos teatros acadêmicos, o painel de Di Cavalcanti avança e toma conta de toda a superfície disponível para compartilhar seus signos com o ambiente da cidade. Aqui as artes se integram sem perda de autonomia, alcançando uma dimensão verdadeiramente monumental – conforme sugere Renato Anelli (6) – contemporânea de temas suscitados no pós-guerra, no âmbito dos CIAMs (7).

Esta obra dispensava àquela altura os artifícios formais da fase anterior. Mas, talvez seja possível afirmar que sua expressão seca e de absoluta austeridade revelava, naquele momento, uma adesão mais explícita a certos princípios do Movimento Moderno. Arquitetura é construção e o sentido formal que a obra possa conter se manifesta por seus próprios meios, isto é, por seus elementos construtivos, por sua forma material. Isto se torna evidente em alguns aspectos particulares. Até o reverso da laje da platéia, isto é o desenho dos degraus da laje, participa, sem constrangimento, da definição dos limites do teto do foyer superior. O interior da platéia é nu, quase desprovido de intenção plástica. Deixou de haver, portanto, qualquer concessão à ornamentação e aos efeitos visuais das obras do período imediatamente anterior, dispensando a presença dos estuques elaborados e dos recursos da luz indireta características de seus cinemas.

Assim, o valor da obra arquitetônica não se revela apenas no artefato arquitetônico, mas principalmente pela concepção espacial e pelas relações que a partir dela se estabelecem. A proximidade do espectador com o palco é um dos fatores de qualidade desta sala, condição surgida de sua configuração peculiar e que se realiza na relação entre espectador e espetáculo. Portanto, uma dimensão cuja percepção é mais sensível que visual.

Estas qualidades desapareceram por completo?

As fotos divulgadas pela imprensa oferecem uma imagem dramática do incêndio. À primeira vista, pouco sobrou do teatro, transformado em uma caixa oca, delimitada apenas pelas paredes externas e pelo painel artístico. A cobertura ruiu completamente, e os escombros resultantes dão impressão da destruição total das instalações do teatro. Mas observando com mais atenção, o que foi consumido pelo incêndio foi a cobertura do edifício que desabou sobre a platéia, cuja laje conteve o alastramento do incêndio, evitando que fosse atingido o foyer e o pequeno auditório. Portanto, o incêndio do não destruiu completamente o Teatro Cultura Artística.

Enquanto a cobertura é composta por uma estrutura metálica que não resiste a altas temperaturas, o arcabouço do edifício – paredes perimetrais e platéia – é constituído de estruturas de concreto armado e alvenaria. Embora possam ter sido atingidas, ainda assim resistiram, evitando a propagação do fogo.

Se for lícito supor com base nas informações disponíveis que parte considerável do arcabouço original resistiu, não se pode em princípio afastar a hipótese de restauração do teatro. Se o teatro sofreu perdas consideráveis pela ação do fogo, isto não significa que não possa ser recuperada a configuração espacial do auditório principal. Para tanto, bastaria, em linhas gerais, proceder aos reforços de consolidação da platéia e promover a recomposição da cobertura.

O novo teatro

Todavia, não foi esta a decisão tomada pela Sociedade de Cultura Artística. Não parece ter sido examinada, tampouco, a possibilidade de reaproveitamento dos restos do edifício original. A decisão, a julgar pelo projeto do novo teatro, foi orientada para a realização de uma nova sala de espetáculos, de maior capacidade de público, com nova caixa de palco e cuja disposição alterou até mesmo o eixo de implantação do edifício pré-existente. Em seu lugar teremos um teatro completamente distinto da obra de Rino Levi. Preserva-se apenas um fragmento de fachada e o painel de Di Cavalcanti.

Mas a manutenção deste último componente do Teatro Cultura Artística fica muito reduzida diante da massa construída do novo teatro. Em contraste com a feição primitiva, que o aproximava dos murais mexicanos, esta interpretação moderna das musas perderá todo o sentido monumental que lhe deu origem. Restará, apenas, um elemento aplicado sobre uma estrutura de grande porte, numa espécie de colagem de um painel figurativo, sem a relação e a carga expressiva que o destacou como obra de arte essencialmente urbana e perfeitamente integrada à arquitetura do edifício. Das demais partes do teatro, nenhum vestígio remanescente restará.

Estas considerações não têm o propósito de sugerir a proposta de uma restauração ortodoxa, que não admitisse a incorporação de novos elementos capazes de atualizar o teatro às exigências contemporâneas, sob o aspecto acústico e aos recursos indispensáveis ao desenvolvimento das artes cênicas. Ao contrário, é preciso reconhecer a necessidade de examinar a possibilidade do aproveitamento da estrutura original conciliada à atualização de seus recursos.

Há vários exemplos de adaptações recentes que deixam claro como estes requisitos podem ser alcançados. O Teatro alla Scala de Milão teve seus recursos cênicos e dependências de apoio consideravelmente expandidos. Foram realizados a partir de projetos que contemplaram tanto a introdução de novas estruturas arquitetônicas ou sua renovação, a cargo do arquiteto Mario Botta, quanto os trabalhos de restauro conservativo sob a direção da arquiteta Elisabetta Fabbri. O teatro La Fenice, de Veneza, também vítima de um dramático incêndio, foi reconstruído com’era, dov’era (8),  a partir de projeto do arquiteto Aldo Rossi. Independentemente do caráter controvertido da reconstituição da forma original, tal e qual, a obra não deixou de considerar a necessidade de atualização tecnológica do edifício. A transformação do edifício da Ópera de Lion pelo arquiteto Jean Nouvel, constitui outro tipo de apropriação de uma estrutura pré-existente sobre a qual se promoveu ampliação da capacidade e a atualização de recursos técnicos. Em nosso meio, não deixou de haver obras de restauração criteriosas, como o Teatro D. Pedro, em Ribeirão Preto, ou a adaptação de antigos edifícios, como a Sala São Paulo. Esta última, aliás, demonstra como uma velha estrutura arquitetônica pode ser transformada, sem a perda de seus valores intrínsecos.

Por fim, é necessário salientar que a preservação dos remanescentes do teatro não é a única alternativa. Não se pode afastar a possibilidade de a estrutura estar irremediavelmente danificada ou mesmo – é preciso admitir – a hipótese de que o valor da obra não seja relevante a ponto de justificar sua conservação.

Porém, numa ou noutra hipótese, seria necessário que o exame de tais alternativas surgisse a partir de um amplo debate, pois envolve valores concernentes não apenas aos responsáveis por sua gestão, mas a um público mais amplo. A Sociedade de Cultura Artística é uma instituição privada com autonomia para a tomada de decisões. Porém, mais do que a seus dirigentes, elas dizem respeito aos artistas que ali desenvolvem suas atividades e ao público freqüentador de seus espetáculos. Da mesma forma, é necessário salientar que a reconstrução do teatro deverá ser feita, em grande parte, com os incentivos da Lei Rouanet, portanto com recursos públicos oriundos de renúncia fiscal.

Finalmente, sendo obra de um arquiteto cujas realizações se pautavam pelo ideal da integração das artes, vale ainda lembrar que há outra memória a considerar: a memória de seus espetáculos e de seus freqüentadores. Nesse sentido, o teatro não é apenas construção, mas é fundamentalmente espaço habitado, palco de realizações dramáticas e de apresentações musicais. Por mais notável que fosse sua expressão arquitetônica, ela não teria nenhum sentido sem as atividades que aí tiveram lugar. E este teatro e não outro – nenhum outro – foi palco de apresentações memoráveis. Para muitos, e para seus freqüentadores em particular, esta memória está intimamente associada à sua estrutura física, ao poder evocador de suas pedras. Memória inefável, memória afetiva, que podem persistir vivas sem o recinto em que transcorreram. Ficarão, porém, muito mais pobres se orientadas por valores outros que não aqueles que constituíram a história da Sociedade de Cultura Artística.

notas

1
Sobre o incêndio do Teatro Cultura Artística, ver ANELLI, Renato. O incêndio do Teatro Cultura Artística: quando reconstruir é preservar. Minha Cidade, ano 9, vol. 1, p. 230. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc230/mc230.asp>.
2
Acrópole, nº. 147, 1950

3
Idem.

4
Architectural Record
, n. 7, jul. 1950; Domus, n. 259, jun. 1951; Informes de la Construccion, n. 75, nov. 1955; Kunst in Volk, n. 9/10, set. out. 1950; L’Architecture d’Aujourd’Hui, n. 29, abr. 1950; The Architectural Review, n. 660, dez. 1951, compiladas em MACHADO, Lucio Gomes. Rino Levi e a renovação da arquitetura brasileira. Tese de doutorado. São Paulo, FAUUSP, 1992.

5
Acrópole
, n. 147. São Paulo, 1950.

6
ANELLI, Renato; GUERRA, Abilio; KON, Nelson. Rino Levi, arquitetura e cidade. São Paulo, Romano Guerra, 2001, p. 139.

7
VII e VIII Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, 1947 e 1951.

8
Como era, onde estava.

sobre o autor

Marcos José Carrilho, arquiteto (UFP, 1978), mestre e doutor (FAU-USP, 1994 e 2003); professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, arquiteto do IPHAN-SP

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