Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A partir do exemplo dos recentes filmes-catástrofe "O dia em que a Terra parou" e "Fim dos Tempos", o artigo apresenta o cinema como ferramenta midiática para a propagação de narrativas hegemônicas sobre a atual crise ambiental

english
"The day that the Earth stood still" and "The happening" are used to describe the cinema as a media tool to spread a homegenic speech about the current environmental crisis

español
En este artículo a partir de las películas-desastre "Ultimatum a la Tierra" y "El incidente", los autores presentan el cine como herramienta mediática para narrativas hegemónicas sobre la actual crisis ambiental


how to quote

NAME, Leo; LAURIA, Pedro Artur Baptista . Cidade, natureza e narrativas da crise ambiental: análise a partir de dois filmes-catástrofe recentes. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 113.02, Vitruvius, out. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.113/19>.

Introdução

Chama atenção a interessante e multifacetada produção acadêmica contemporânea sobre o cinema, que tem cada vez mais recebido adesão de teóricos de inúmeras disciplinas, como a própria teoria do cinema, a antropologia, a filosofia, a arquitetura e o urbanismo, a geografia e a história, entre outras. A maioria desses estudos tem como foco as múltiplas relações do cinema com a cidade, sobretudo em filmes ficcionais: por um lado, deixam claro o quanto a cidade é elemento constante nos filmes; por outro lado, examinam as múltiplas e significativas interações entre a mais importante forma cultural e a mais importante forma de organização social do século XX. (1)

Além das tentativas de se definir exatamente o que seriam “cidade cinemática”, “paisagem cinemática” e “lugar cinemático”, (2) pode-se dizer, grosso modo, que esta produção tão fragmentada quanto interdisciplinar se divide em quatro abordagens:

A primeira é aquela dos autores que analisam o objeto audiovisual através de uma abordagem histórica, revelando o quanto o cinema desde suas origens foi uma forma de entretenimento essencialmente urbana, devendo muito de sua natureza ao desenvolvimento da cidade, por ser uma arte industrial e para a massa. (3)

A segunda abordagem de estudos conta com autores que apontam o fato de que os filmes, de forma cada vez mais presente, atuam sobre a construção e apreensão da “realidade”, tanto em um sentido econômico quanto estético, direcionando sua análise a fenômenos contemporâneos diversos, tais como: as agências públicas, que sejam em escala federal, estadual ou nacional controlam a produção de filmes no que diz respeito ao gerenciamento dos espaços como locação cinematografia, a respectiva arrecadação e até mesmo o controle do conteúdo (4); os movimentos arquitetônicos de clara estética cinematográfica como o new urbanism (5); ou, por fim, o conteúdo espantosamente hollywoodiano do ataque de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, que fez com que muitos se recusassem a acreditar na veracidade do que viam na televisão. (6)

A terceira forma de abordar o tema é a que se direciona à cidade apresentada e, portanto, representada nos filmes, ora priorizando análise, geralmente sincrônica, “morfológica” e “tipológica” do ambiente físico construído, discutindo as possíveis influências arquitetônicas, artísticas, econômicas ou político-sociais do período de cada filme sobre a maneira de representar as cidades, filmadas em locação ou construídas em estúdio. (7)

A última forma de abordagem também se direciona às representações das cidades nos filmes, mas se apóia em análise mais diacrônica e intertextual, concentrando-se na ação transcorrida durante o filme, ou seja, na interação entre os personagens e no que é dito e vivido nos espaços. Dessa forma, demonstra-se o quanto cada filme, ao representar os lugares onde transcorre sua trama, pode vir a se apropriar de narrativas construídas e reproduzidas no cotidiano, em outros filmes ou outras mídias, sendo ele também influência para outras representações e para a inteligibilidade da realidade. (8)

A cidade, portanto, vem se destacando na produção acadêmica sobre cinema, por meio de diversas formas de análise espacial. Por outro lado, há certo silêncio nesta bibliografia, pois no que diz respeito às representações de ambientes não-urbanos nas obras audiovisuais, a produção acadêmica é bem mais rarefeita, mesmo que a natureza seja, por si mesma, um tema de exploração tão amplamente recorrido pelas obras audiovisuais, em documentários ou filmes de ficção (9). Ainda que muitas vezes reduzidos a uma representação paisagística de deslumbramento em relação à natureza,(10) os filmes de ficção fornecem dados para análises que associam a natureza por eles representada à feminilidade, à masculinidade e até mesmo à homossexualidade, por exemplo(11) . Outras abordagens, por fim, analisam o uso de determinados sítios naturais que sofrem transformação para no cinema representarem outros sítios. (12)

Nosso entendimento é que a pesquisa acadêmica com ênfase espacial e que tem o cinema como objeto, ao separar a análise em “filmes de cidade” e “filmes de natureza” realiza uma cisão entre “humanidade”/“natureza”, “civilização”/”natureza” e “cultura/“natureza”, que é própria do pensamento ocidental: não seria exagero dizer, nesse sentido, que este conflito é inerente às disciplinas modernas como um todo: mais particularmente à geografia subdividida de forma cada vez mais inconciliável entre “geografia humana” e “geografia física”; e à arquitetura e no urbanismo, apresentando-se de forma mais discreta, através de pensamentos e práticas projetuais ligados a termos quase sempre contrapostos, tais como “ambiente construído” versus “ambiente natural”, “edificações” versus “áreas verdes”, “legislação edilícia” versus “legislação ambiental” e, em alguns casos até mesmo “arquitetura” versus “urbanismo” e “arquitetura” versus “paisagismo”.

Embutido nestes discursos está a idéia da alteridade da natureza, isto é, ela está sempre sendo entendida como se a humanidade dela não fizesse parte – ou melhor, sem que se acorde que a própria natureza é um conceito criado pela racionalidade humana. Nessa forma de entendimento, a natureza é um Outro, que ao mesmo tempo em que pode agir sobre a humanidade também pode e deve ser dominada pela racionalidade humana. Este raciocínio hegemônico ganha cores, pesos e variações de polimento e refinamento de acordo com a abordagem – científica, política, midiática etc. – e tem também nos filmes mais uma forma de se expressar.

Não pretendemos neste artigo, evidentemente, reconciliar os termos desta dicotomia tão poderosa, mas a partir de dois filmes-catástrofe – gênero cinematográfico que em sua estrutura quase sempre faz dialogar/conflitar o “humano” e o “natural”, a “cidade adensada” e a “natureza indomada” –, proporcionar excelente oportunidade para uma discussão amplamente espacial, que considere tantos os valores simbólicos da cidade quanto da natureza envolvidos.

Tais filmes são o recente remake de O dia em que a terra parou (13) e Fim dos tempos (14). A despeito da boa ou má qualidade destes filmes – o que é absolutamente irrelevante para sua análise espacial –, abordaremos por meio deles a relação dicotômica entre o “homem do Ocidente” (15) e a natureza, utilizando o cinema como instrumento de inteligibilidade dessa realidade. Mais especificamente, discutiremos através da análise destes filmes-catástrofe a lógica vigente que, no senso comum, aponta a insustentabilidade do modo de vida ocidental como causa de uma realidade apocalíptica.

Obras cinematográficas do gênero “catástrofe”, célebres nos anos setenta e revigoradas nos anos noventa, normalmente mostram toda sorte de desastres naturais, tais como colisões de meteoros, (16) terremotos, (17) enchentes (18) e erupções vulcânicas (19), sempre contrapondo a ação da natureza a uma grande metrópole, evidenciando certa sujeição da humanidade diante do seu poder furioso e destrutivo. Mas percebemos em filmes mais recentes uma mudança significativa: a humanidade deixou de ser apenas a vítima de um evento cataclísmico, sendo agora também responsabilizada pelos problemas. Isto traz o cinema para o campo de discussão da sustentabilidade ambiental e urbana, e, mais particularmente, da crise das cidades do modelo desenvolvimentista ocidental. Entretanto, não damos a estes filmes o estatuto de materiais didáticos para se entender o problema. Muito pelo contrário: nosso argumento é que filmes como O dia em que a Terra parou e Fim dos Tempos são parte de um grupo de representações que se apóia em discursos cada vez mais difundidos pelas mais diversas mídias sobre a cidade e sobre a natureza que vêm sendo utilizados para narrar a (in)sustentabilidade ambiental de forma acrítica. Eles se apóiam ora em ingênuos pacifismos e vazias valorizações da natureza, ora em claras omissões de conteúdo político, que negligenciam o fato de que a crise ambiental é, grosso modo, uma crise do capitalismo, isto é, do modelo desenvolvimentista que considera a natureza como um recurso para a reprodução do capital. (20)

O dia em que a terra parou: destrua a humanidade, antes que ela destrua o planeta.

O que mais chama atenção no remake de O dia em que a terra parou são suas alterações de roteiro para contemplar a crise ambiental a que estamos referindo, diferente do filme original que realizava metáfora sobre a Guerra Fria e o armamento nuclear: na versão nova, o alienígena Klaatu (Keanu Reeves) chega à Terra com a missão de destruir a humanidade antes que essa destrua todas as espécies do planeta. Segundo seu discurso, existem poucos planetas no universo que podem, como a Terra, suportar um conjunto amplo de formas complexas de vida, e não se pode deixar uma única espécie acabar com todas as outras.

Evoca-se, assim, o discurso sobre as ações humanas terem a capacidade de destruir o planeta, também repetido incessantemente pela mídia. A visão utilitarista da natureza é abordada durante toda a obra: através de Klaatu, destaca-se o quanto esta visão “possessiva” colaborou para a decisão de se exterminar a espécie humana. Outro ponto que deve ser destacado é o manejo da tecnologia humana por Klaatu, sempre a utilizando para se defender ou inutilizá-la, através de apagões elétricos. Destaca-se, dessa forma, a dependência tecnológica promovida pelo modelo ocidental.

A cidade rapidamente se revela como o grande palco distópico da narrativa, através de seqüências em que grandes aglomerações urbanas são completamente desligadas, inclusive apresentando-se à audiência indústrias tendo suas linhas de produção desativadas. Desse modo, o filme leva forçosamente o meio urbano por ele apresentado a um estágio semelhante ao do Ocidente antes da revolução industrial. Além disso, através dos discursos ambientalista-pacifistas do alienígena, parece querer fazer a audiência refletir sobre os avanços tecnológicos feitos nos últimos duzentos anos, questão que, na verdade, é absolutamente política.

O personagem alienígena tem sua falta de entendimento quanto à motivação humana marcada por eventos da ação fílmica. Segundo ele, independente dos danos causados ao planeta, o mínimo que se espera de uma espécie com “consciência” é a manifestação do instinto de autopreservação e evolução. É possível relacionar tal discurso às correntes neomalthusianas, que sustentam a idéia de que as questões demográficas são a grande causa dos problemas relativos à natureza. Essa forma de pensamento omite, porém, o fato de que parte da causa dos problemas ambientais reside na desigual divisão de poder e riquezas – a solução do controle populacional, mesmo que aplicada, não alteraria este problema. Martine tem visão crítica esclarecedora sobre esta abordagem:

“A visão neomalthusiana que predomina na atualidade é atraente porque, além de conter um elemento fundamental de verdade, reduz essa questão complexa a uma causalidade unidimensional e sugere uma solução relativamente indolor – o controle populacional – que não ameaça as estruturas, os privilégios ou os interesses dominantes.” (21)

Em uma seqüência de contundente pirotecnia digital ambientada no Central Park, O dia em que a Terra parou recorre à idéia da arca, através de uma tecnologia alienígena para capturar indivíduos de diferentes espécies, para repovoar o planeta (Figura 1). Porém, ao contrário da história bíblica, a espécie humana não está nesses planos, o que gera uma visão dicotômica entre humanidade e natureza ainda maior do que nas passagens do dilúvio de Noé. A visão utilitarista acaba por excluir os seres humanos do meio natural, se tornando um “Outro” incômodo e ameaçador, visão que remonta ao próprio discurso do bloco hegemônico em relação ao resto do mundo. (22)

Não menos significativa é a discussão quanto ao “ponto crítico” da população. No filme, um personagem que é cientista ganhador de prêmio Nobel de biologia, na tentativa de persuadir Klaatu a não destruir a espécie humana, alega que toda população tem seu ponto crítico – momento em que a manutenção do sistema se mostra inviável, obrigando a humanidade a pensar em alternativas. Ou seja, a crise, segundo o personagem, seria um momento de desestabilização, e por isso, uma forma neutra, natural e inexorável – portanto sem nenhum condicionamento ou conseqüência políticos e muito menos culpados ou vítimas – da humanidade chegar à sua redenção em relação à natureza.

Apesar desta aparente neutralidade de O dia em que a Terra parou, convém mencionarmos o comentário crítico e político, mesmo que não-intencional, produzido por uma montagem digital que circulou pela Internet dias antes da ida às urnas norte-americanas que elegeu Barack Obama como presidente do país. A imagem (Figura 2) associa sua figura ao cartaz do filme. O discurso do então candidato (aparentemente) oposto à ordem vigente capitaneada pelo governo Bush o fez ser comparado ao personagem alienígena que é ao mesmo tempo um anjo exterminador e uma fonte de esperança.

Fim dos tempos: quando a retaliação vem do próprio planeta.

Lançado no mesmo ano que O dia em que a Terra parou, o filme Fim dos tempos aborda o tema “humanidade versus natureza” sob uma outra perspectiva: nele, é a própria natureza, constantemente representada no filme através de árvores e outras formas de vegetação, que tenta exterminar a humanidade. É importante ressaltar que isso se dá como uma reação natural de defesa de todas estas espécies, que sem explicação aparente parecem levar pelo vento vapor venenoso invisível que faz quaisquer pessoas nos arredores cometer suicídio. Por um lado, o que chama atenção no filme é que novamente a humanidade, fruto da própria Terra e parte intrínseca à natureza, é considerada uma ameaça à própria Terra; por outro lado, a alteridade da natureza chega a nível agudo, já que se torna literalmente um ente que age e reage às ações humanas. Os personagens e a natureza do filme estão em plena batalha, em que o risco de extermínio da natureza é respondido com um ataque que põe também em risco a humanidade.

Logo nos primeiros minutos do filme, um professor de biologia que dialoga com seus alunos discute a falibilidade da ciência moderna. Ao mostrar que o homem não consegue ter certezas, utilizando como exemplo o desaparecimento de uma espécie de abelhas, o professor pede à classe formulação de hipóteses sobre o que poderia ter causado o fenômeno. As primeiras respostas são pouco surpreendentes: a maioria o atrela a uma causa antrópica, como o aquecimento global e a poluição. A última “hipótese” lançada é inesperada: “um evento da natureza que nunca iremos compreender”. O filme traz para sua narrativa a sensação de “certeza de que não há certezas”, que permeia a ciência atualmente, utilizando-a para a (não-)explicação do fenômeno apresentado à audiência. O intuito é mostrar o quanto, a despeito de sua racionalidade, a humanidade é frágil, principalmente quando diante da imprevisibilidade da natureza desta racionalidade nada se retira.

É interessante também perceber que o epicentro do fenômeno é o mesmo de O dia em que a Terra parou, o Central Park em Nova Iorque (Figura 3). A utilização de Nova Iorque e particularmente dessa locação nos nossos dois objetos de discussão – assim como também nos clímax de outros filmes do gênero como Independance Day (23) e Cloverfield – Monstro (24), por exemplo – parece ser parte de um imaginário hollywoodiano que considera conflituoso o diálogo, no espaço, de uma metrópole deste e a natureza do Central Park que, mesmo como simulacro, lhe é inerente. A contraposição entre Nova Iorque e seu “espaço verde”, portanto, mostra-se em inúmeros filmes estadunidenses como uma forma visual de se iniciar uma discussão, através da representação destes espaços, sobre a relação comumente vista como conflituosa, com alternância de dominação e subordinação, entre os seres humanos e os ambientes naturais.

O suicídio abordado pelo filme é um fato interessante: a morte contempla, uma forma indireta, porém irônica, de mea culpa ocidental, pois o extermínio da humanidade se dá por suas próprias mãos. Tal fato faz com que a narrativa se aproxime dos discursos de grupos ambientalistas mais radicais que propõem o suicídio coletivo da humanidade para preservação do meio-ambiente – uma forma extrema de neo-malthusianismo. Abordagem que traz em si problemas teóricos e éticos, como esclarece comentário do acadêmico neozelandês George Ball em artigo para o Wall Street Journal:

“Um ativista postula que o planeta pode suportar apenas um bilhão de pessoas - número que, sem dúvida, inclui o autor, seus amigos e sua família alargada. Outro ativista defende salvar o mundo através da eutanásia, aborto, suicídio e sodomia. No entanto, o que é verdadeiramente repugnante nesta história é que ambos são professores titulares de abastadas universidades”. (25)

Em uma seqüência de tensão do filme, o casal principal, vivido por Mark Whalberg e Zooey Deschanel, começa a andar junto com sua filha em pequenos bandos por um vasto capinzal, tentando evitar que o mesmo reaja (Figura 4). A utilização de imagens em que o ambiente natural é dominante e as figuras humanas são coadjuvantes reforça a inversão de percepção – é a natureza que domina o humano. Seqüências como estas exemplificam a visão neo-malthusiana de controle demográfico, inerente ao filme: a audiência é informada que populações pequenas não são afetadas pelo fenômeno do suicídio coletivo por não causarem estímulos suficientes para ativar as reações da natureza.

Novamente, então, é a grande metrópole, com suas enormes concentrações humanas, a maior culpada da crise ambiental (e, no caso do filme, da necessidade inexorável da natureza se defender), o que contraria autores como Martine:

“A concentração urbana e suas vantagens de escala representam uma forma mais sustentável do uso da terra. A proteção da biodiversidade dos ecossistemas naturais depende, por último, da absorção da população em atividades de setores não-primários e em áreas densamente povoadas”. (26)

Flavin é outro autor de argumentação semelhante, conforme citação abaixo:

“É particularmente irônico observar que a batalha para salvar os ecossistemas saudáveis que ainda restam no mundo será vencida ou perdida, não nas florestas tropicais e recifes de corais que estão ameaçados, mas nas ruas das paisagens mais não-naturais do nosso planeta”. (27)

Em seu desfecho, o assustador fenômeno é descrito no filme como algo “que desapareceu tão repentinamente como surgiu”. Mas antes que a audiência se tranqüilize e passe a pensar que tudo está em harmonia, uma autoridade em rede nacional afirma que só seria comprovada a ameaça natural se houvesse uma repetição das mortes em outro lugar do mundo. Ao que se segue, nos últimos minutos do filme, então, a sugestão de que o mesmo fenômeno está começando a ocorrer na França, espalhando o mea culpa ocidental para a Velha Europa.

Comentários finais

Além de recentes filmes-catástrofe como O dia em que a Terra parou e Fim dos tempos, outro fenômeno no cinema recente que se alinha a abordagem da “culpabilidade da humanidade” é o grande número de documentários sobre a problemática ambiental, de bastante visibilidade. O representante mais famoso com certeza é Uma verdade inconveniente (28), que de tão polêmico gerou uma resposta também em forma de filme da BBC, chamada A grande farsa do aquecimento global (29). Outro filme de destaque é o recente A última hora (30). A ação humana sobre a natureza está em pauta em todos esses filmes, sendo evidentes nestas representações catastróficas o posicionamento da natureza em uma relação de alteridade: ela é entendida como o Outro da humanidade, em permanente conflito. Tais filmes recorrem, como nos dispusemos a revelar neste breve artigo, a reveladoras estratégias narrativas de ultrapassados antropocentrismos e neo-malthusianismos: ao passo que a humanidade é responsabilizada pela crise ambiental, o que dentro de uma narrativa clássica cinematográfica a alçaria a categoria de vilã, também se discursa sobre uma necessidade inexorável de extermínio dessa humanidade – um dos mais comuns dos castigos imposto aos vilões de folhetins, por exemplo. Isto é bem diferente do auge do cinema-catástrofe nos anos noventa, e, sobretudo, nos anos setenta, quando era a natureza a antagonista da narrativa, dentro de tramas de acasos catastróficos que punham à prova a capacidade (heróica) de superação dos personagens.

Acreditamos, entretanto, que esta inversão entre os heróis e vilões narrativos não trouxe nenhum avanço ao discurso, na medida em que em todos estes filmes, mesmo nos documentários, pouco ou nada se questiona ou discute em relação ao modelo desenvolvimentista que é o grande gerador da crise ambiental. Culpabiliza-se “a” humanidade e “a” sociedade ocidental per se, o que é particularmente revelador através das representações da cidade, sua formação espacial mais evidente, como o constante elemento visual e discursivamente contraposto à natureza. Tudo isto contribui para se deslocar, na esfera das representações e da narrativa audiovisual, a discussão da crise ambiental do plano político para o plano da ação individual de “consciência ecológica” e “respeito à natureza”, e do plano econômico e técnico-produtivo para o plano demográfico. Ao contrário do que sugerem todos estes filmes, estamos de acordo com a visão de que o perigo não é a humanidade nem a cidade em si, mas que ele se encontra no fato de existir apenas um modelo de desenvolvimento disponível na atualidade, sendo este inexoravelmente predatório, independente de que solução paliativa “a” humanidade e “a” sociedade possam vir a tomar.

Evidentemente não estamos exigindo destes ou outros filmes um estatuto científico – embora os supracitados documentários tragam este estatuto para si. Também não estamos em busca de representações “corretas” e “verdadeiras” – as representações não devem ser combatidas a partir da censura, mas questionadas através da análise crítica e pelo exercício de comparação –, nem muito menos exigindo dos filmes uma discussão teórica densa, pois este, de fato, não é o seu papel. Mas como obras coletivas feitas para a massa, os filmes têm a capacidade de sintetizar pensamentos correntes e quase sempre apresentar de forma efêmera e furtiva visões hegemônicas da realidade – e, evidentemente, da natureza, das cidades e da condição humana e urbana. Nesse sentido, os filmes contêm refinadas e potentes formas de tratamento de conteúdos sobre a crise ambiental que estão em embate no mundo “real”, merecendo portanto, serem alçados a objetos de investigação.

notas

1
Ver: SCHIEL, Mark. Cinema and the city in History and theory. In: SCHIEL, Mark; FITZMAURICE, Tony (eds.). Cinema and the city. Film and urban societies in a global context. Oxford : Blackwell, 2001, p. 1-18.

2
Dentre outros autores, destacamos: CLARKE, David B. Introduction: previewing the cinematic city. In: CLARKE, David B. (ed.). The cinematic city. London : Routledge, 1997, p. 1-18; da COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. Espaço, tempo e cidade cinemática. Espaço e cultura, nº13. Rio de Janeiro, jan. / jun. 2002, p. 63-75; HOPKINS, Jeff. Mapping of cinematic places: icons, ideology and the power of (mis)representation. In: AITKEN, Stuart C.; ZONN, Leo E. Place, power, situation and spectacle. A geography of film. Lanham : Rowman & Littlefield Publishers, 1994, p. 47-65.

3
Ver: CALIL, Carlos Augusto. Cinema e indústria. In: XAVIER, Ismail (org.). O cinema no século. Rio de Janeiro : Imago, 1996. p. 45-70; CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo : Cosac & Naify, 2001; COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo : Scritta, 1995; GUNNING, Tom. Cinema e História: “fotografias animadas”, contos do esquecido futuro do cinema. In: XAVIER, Ismail (org.). O cinema no século. Rio de Janeiro : Imago, 1996, p. 21-44; GUNNING, Tom. Uma estética do espanto: o cinema das origens e o espectador incrédulo. Imagens, nº 5, p. 52-61, ago-dez de 1995 [1989].

4
São esclarecedores desta abordagem os seguintes trabalhos: GRAVARI-BARBAS, Maria. La “ville-decor”: accueil de tournages de films et mise en place d’une nouvelle esthetique. CyberGEO (revista eletrônica), nº 101, 27 mai. 1999, 18p. Disponível na INTERNET via www.cybergeo.presse.fr/culture/gravari/gravari.htm. Arquivo consultado em 26 de novembro de 2002; STRINGER, Julian. Global Cities and the International Film Festival Economy. In: SCHIEL, Mark & FITZMAURICE, Tony (eds.). Cinema and the city. Film and urban societies in a global context. Oxford : Blackwell, 2001, p. 134-144; SWANN, Paul. From workshop to backlot: The Greater Philadelphia Film Office. In: SCHIEL, Mark; FITZMAURICE, Tony (eds.). Cinema and the city. Film and urban societies in a global context. Oxford : Blackwell, 2001, p. 88-98.

5
Ver: DIDIER, Sophie. Disney urbaniste: la ville de Celebration en Floride. Anais do colóquio “Les problèmes culturels des grandes villes”. Paris, 1997, 14p. Disponível na INTERNET via www.cybergeo.presse.fr/culture/didier/didier.htm. Arquivo consultado em 26 de novembro de 2002; LARA, Fernando. Vizinhos do Pateta. Arquitextos (revista eletrônica), nº 11, abr. 2001. Disponível na INTERNET via www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq011/bases/02tex.asp. Arquivo consultado em 18 de agosto de 2002.

6
Apresentamos dois exemplos: da COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. Paisagem e simbolismo: representando e/ou vivendo o real? Espaço e cultura, Rio de Janeiro, v. 15, 2003, p. 41-50; NAME, Leonardo. O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência. Arquitextos, nº. 33, fev. 2003. Disponível na INTERNET via www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq033/arq033_02.asp. Arquivo consultado em 4 de novembro de 2006.

7
São trabalhos interessantes e relevantes: BARBOSA, Jorge Luís. As paisagens crepusculares da ficção científica: a elegia das utopias urbanas do Modernismo. 2002. Tese (Doutorado em Geografia) – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo; BENALI, Abdelkader. La fourmiliére imaginaire, “Metropolis” ou la ville à visage humain. Espace et societés, nº 86. Paris, 1996, p. 47-58; MARIE, Laurent. Jacques Tati’s “Play Time” as New Babylon. In: SCHIEL, Mark; FITZMAURICE, Tony (eds.). Cinema and the city. Film and urban societies in a global context. Oxford : Blackwell, 2001, p. 257-269; NEUMAN, Dietrich. . Before and after Metropolis: film and architecture in search of the modern city. In: NEUMAN, Dietrich (ed.). Film Architecture. From Metropolis to Blade Runner. Munich : London : New York : Prestel, 1999, p. 33-38; VIDLER, Anthony. The explosion of space. Architecture and the filmic imaginary. In: Warped space: art, architecture, and anxiety in modern culture. London : The Massachusetts Institute of Technology Press, 2000, p. 99-283.

8
Se utilizarmos como exemplo os filmes cujas narrativas transcorrem no Brasil, é referência obrigatória: AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói : Intertexto, 2000. Outros trabalhos que seguem linha semelhante são: FREIRE-MEDEIROS, Bianca. The travelling city. Representations of Rio de Janeiro in U.S. films, travel accounts and scholary writing. 2002. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arte e da Arquitetura) – Graduate School of Binghamton University, State University of New York, New York; FREIRE-MEDEIROS, Bianca & NAME, Leonardo. Como ser estrangeiro no Rio: paisagens cariocas no cinema brasileiro e norte-americano contemporâneos. Estudos Históricos, n. 31, 2003, p. 201-219; NAME, Leonardo. Rio de cinema: “made in Brazil, made in everywhere”. O olhar norte-americano construindo e singularizando a capital carioca. 2004. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

9
Conforme argumentado no Capítulo 4 (p. 117-155) de: WILSON, Alexander. The culture of nature. North-american landscape from Disney to Exxon Valdez. Toronto : Between the Lines, 1991.

10
Ver: GANDY, Matthew. Visions of darkness: the representation of nature in the films of Werner Herzog. Ecumene, vol. 3, nº 1, 1996, p. 1-21.

11
Ver: AITKEN, Stuart C. & LUKINBEAL, Christopher Lee. Disassociated masculinities and geographies of the road. In: COHAN, Steven & HARK, Ina Rae (eds.). The road movie book. London : New York : Routledge, 1997, p. 349-369; AITKEN & Stuart C. & ZONN, Leo E. Weir(d) sex: Representation of gender environment relations in Peter Weir’s “Picnic at hanging rock” and “Gallipoli”. Environment and Planning D: Society and Space, n 11, p. 191-212, 1993; NAME, Leonardo. Escalas da masculinidade e da feminilidade na cidade: imagens e palavras da capital carioca em “A Senhorita Simpson” e “Bossa Nova”. Interseções. Revista de Estudos Interdisciplinares, v. 7, nº 2, 2005, p. 87-100; ZONN, Leo E. & AITKEN, Stuart C. Of pelicans and men: symbolic landscapes, gender, and Australia’s “Storm boy”. In: AITKEN, Stuart C.; ZONN, Leo E. Place, power, situation and spectacle. A geography of film. Lanham : Rowman & Littlefield Publishers, 1994, p. 137-159.

12
Citamos como exemplo os seguintes trabalhos: CAPELLÀ-MITERNIQUE, Hugo. A tale right out of Hollywood – set in the desert of Almeria, in Spain? In: JUSSILA, Heikki & MAJORAL, Rose & CULLEN, Bradley. Sustainable development and geographical space. Issues of population, environment, globalization and education in marginal regions. Pippenham : Ashgate, 2002, p. 270-283; FOUCHER, Michel. Du désert, paysage du western. Herodote, nº 7, 1977, p. 130-147; JANIN, Nicole. Cadres e cadrages du western. Herodote, nº 7, 1977, p. 83-93.

13
The Day the Earth Stood Still, Scott Derrickson, EUA/Canadá, 2008. O original possui mesmo título e foi dirigido por Robert Wise em 1951, nos Estados Unidos.

14
The Happening, M. Night Shyamalan, EUA/Índia, 2008.

15
Definição encontrada em: HALL, Stuart. Formations of Modernity. Cambridge : Polity Press, 1992.

16
O exemplo mais famoso é Meteoro (Meteor, Ronald Neame, EUA, 1979). Filmes como Armageddon (Michael Bay, EUA, 1998) e Impacto profundo (Deep impact, Mimi Leder, EUA, 1998) voltaram ao tema duas décadas depois.

17
Terremoto (Earthquake, Mark Robson, EUA, 1974) é talvez o mais clássico filme do gênero.

18
Alguns exemplos são: Flood! (Earl Bellamy, EUA, 1976), Tempestade (Hard rain, Michael Solomon, EUA/Reino Unido, 1998) e o também no Brasil chamado Tempestade (Flood, Tony Mitchell, Reino Unido/África do Sul/Canadá, 2007).

19
O exemplo mais notório é da década de trinta: trata-se de Os últimos dias de Pompéia (The last days of Pompeii, Ernest B. Schoedsack & Merian C. Cooper, EUA, 1935). Na década de noventa, fizeram sucesso com esta catástrofe O inferno de Dante (Dante’s Peak, Roger Donaldson, EUA, 1997) e Volcano – A Fúria (Volcano, Mick Jackson, EUA, 1997)

20
Como explicado por Martine (1993) “o grau de degradação ambiental global é constituído pelos padrões de produção e consumo característicos da industrialização e do desenvolvimento, tal como conhecemos”, e não só, pelo ritmo do crescimento demográfico, como é defendido pelos neo-malthusianos.

21
MARTINE, George. População, Meio Ambiente e Desenvolvimento: O Cenário Global e Nacional. In: População, Meio Ambiente e Desenvolvimento. Verdades e Contradições. Campinas. Editora Unicamp. 1993.

22
HALL, op. cit.

23
Roland Emmerich, EUA, 1996.

24
Cloverfield, Matt Reeves, EUA, 2008.

25
In: BALL, George. Naturalism has been hijacked. Disponível na Internet via http://online.wsj.com/article/SB124484743270711329.html. Arquivo consultado em 23 junho de 2009. Tradução nossa.

26
In: MARTINE, George. O lugar do espaço na equação população/meio ambiente. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 24, nº. 2, p. 186.

27
In: FLAVIN, C. Preface. State of the World: our urban future. Washington : Worldwatch Institute, 2007, p. XXIV.

28
An incovenient truth, David Guggeheim, EUA, 2006.O filme é apresentado por Al Gore, que lhe serviu como espécie de “garoto-propaganda”, em escala global, e ganhou dois Oscar: o de melhor documentário em longa-metragem e, surpreendentemente, o de melhor canção.

29
The Great Global Warming Swindle, Martin Durkin, Reino Unido, 2007.

30
The 11th hour, Nadia Conners & Leila Conners Petersen, EUA, 2007. O filme tem roteiro de Leonardo Di, que também é seu produtor e narrador.

sobre os autores

Pedro Artur Baptista Lauria é bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Geografia da PUC-Rio.

Leonardo dos Passos Miranda Name (Leo Name)é arquiteto e urbanista (UFRJ), doutor em Geografia (UFRJ), professor adjunto 2 do Departamento de Geografia da PUC-Rio e professor substituto do Departamento de Urbanismo da UFF.

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided