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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Neste artigo, Carlos Eduardo Comas conta a história e analisa um dos mais importantes trabalhos do arquiteto Lúcio Costa: o Park Hotel São Clemente (1944-1945), em Nova Friburgo, RJ

english
In this article, Carlos Eduardo Comas explains the history of a major work by architect Lúcio Costa: the Park Hotel São Clemente (1944-1945), in Nova Friburgo, Rio de Janeiro State, Brazil

español
En esta artículo, Carlos Eduardo Comas explica la trayectoria y analiza uno de los proyectos más importantes del arquitecto Lúcio Costa: el Park Hotel São Clemente (1944-1945), en Nova Friburgo, Rio de Janeiro, Brasil


how to quote

COMAS, Carlos Eduardo. Arquitetura moderna, estilo campestre. Hotel, Parque São Clemente. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 123.00, Vitruvius, ago. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.123/3513>.

Park Hotel. Lúcio Costa
Foto Nelson Kon

Nova Friburgo é município fluminense em região montanhosa, 136 km ao norte do Rio de Janeiro, fundado por colonos suíços em 1818. Antonio Clemente Pinto Neto, o 2º Conde de São Clemente tinha ali uma vasta propriedade incluindo uma casa projetada para seu avô pelo arquiteto alemão Gustav Waenheldt por volta dos 1860 e um parque projetado para seu pai pelo botânico francês Auguste Glaziou por volta dos 1870 (1).

Planejada com pátio central coberto e pátio de fundos aberto de um lado, a casa de um andar e porão tem volume simétrico feito um A. É uma casa pátio com telhado de pouco caimento prolongada por duas alas. Exemplifica bem o ecletismo de estilo da segunda metade do século XIX, quando "formas evocativas de lugares e hábitos distantes se combinam com materiais estruturais e decorativos de produção industrial ou semi-industrial", como diz del Brenna (2). A planta leva jeito de vila romana e antiga, mas racionalizada. A alusão ao chalé alpino fica por conta da empena do corpo avançado na fachada principal, protegida por beirais avançados e ornamentados por lambrequins. Estes se repetem: primeiro na cobertura quase plana da varanda de entrada, à frente do corpo avançado, apoiada em colunas esbeltas de ferro fundido: segundo, nas marquises que protegem entradas secundárias laterais. O pátio interno é fechado por clarabóia de vidro e metal, mas tem conotações mouriscas: é circundado por galeria com colunas e arcos de ferro fundido revestidos com majólica, como a bacia do chafariz central. O salão nobre tem paredes suntuosamente pintadas com representação de flores e folhagens.

Romântico mas disciplinado, o parque se desenvolve à volta duma sucessão de três plataformas escalonadas, onde as grandes atrações são os lagos e cascatas obtidos modificando o leito de um arroio interno, tributário do rio Cônego que corre norte-sul por fora ao longo do limite urbano da propriedade. O acesso é um túnel verde de bambus no sentido leste-oeste. O túnel termina junto a uma ponte de ferro sobre o rio. Daí se vê a plataforma inferior, grande clareira oval. O passeio periférico foca no anel d’água que circunda uma ilha artificial com coreto circular ao centro. A casa se entrevê por trás da ilha, com a fachada principal voltada para nordeste e o eixo longitudinal passando pelo centro do coreto. Outro passeio, grosso modo retangular, conforma a plataforma intermediária, à volta da bacia d’água em forma de ampulheta. A plataforma superior, mais comprida, tem limites sinuosos replicando as bordas de outra bacia, mais estreita. Um quiosque com aberturas ogivais anima a margem sul. Comportas regulam o fluxo de água entre as três plataformas. Glaziou mistura espécies nativas e exóticas de diversas procedências, entre as quais cerejeiras japonesas, papiros egípcios, magnólias, bambus indianos, plátanos canadenses, cedros do Líbano e a gincgo bilobada chinesa. O resultado é um jardim onde o jogo entre os tons de verde na luz ou na sombra é permanente, complementado pelos reflexos na água e contrastado com a plumagem de diversas espécies de pássaros.

Em 1913, os herdeiros do Conde vendem a propriedade prestigiosa, batizada de Parque São Clemente, para Eduardo Guinle, filho do bilionário fundador da Companhia Docas de Santos. Em 1944, os herdeiros de Eduardo, liderados pelo engenheiro César Guinle, pedem para Lucio Costa o projeto de um pequeno hotel em empreendimento de alto padrão, batizado de Cidade Jardim Parque São Clemente. Loteamento residencial de 93 ha para casas de fim de semana ou veraneio, tem acesso próprio a 1 km do centro da cidade. A sucessão de plataformas e seu entorno imediato integram o parque de 22 ha preservado para usufruto dos moradores, depois incorporado como o Nova Friburgo Country Club (1957). Três hotéis são previstos. O lote do Hotel do Parque de Lucio é uma língua de terra dando para o parque a sul da plataforma superior. Instrumento das vendas imobiliárias, o hotel deve passar a imagem de lazer sofisticado mas informal. Dez apartamentos e dez anos de operação parecem suficientes. Mais ao sul, 7,8 ha se destinam a um Hotel de Montanha, até hoje não construído. Em 5,8 ha de um lado e outro do túnel de bambu, se pensa em um Grande Hotel e praça de esportes. Nenhum é levado adiante (3).

O folheto de lançamento insiste na proibição de construção de sanatórios, hospitais, casas de saúde, cocheiras de aluguel e estabelecimentos industriais, notando a reserva de 6200m2 para comércio de alimentos e a presença, nas imediações, de granjas modelo para abastecimento e de fornecedores de materiais de construção. A Cerâmica Parque São Clemente, de propriedade dos loteadores, pode abastecer o bairro com toda sorte de produtos cerâmicos, tijolos, telhas e manilhas. Uma pedreira atende as demandas de pedra para fundações, pisos, paredes e revestimentos. As matas, embora distantes, darão a madeira, completando a lista dos materiais básicos de uma construção campestre (4).

O decreto-lei n.º 70 da Prefeitura de Nova Friburgo, de 16 de fevereiro de 1944, descreve as exigências para loteamentos – como a obrigatoriedade de caráter específico. No caso dos hotéis, reza o parágrafo único do artigo 3, as dependências e seus chalés individuais obedecerão em seu estilo ao tipo hotel de montanha. O artigo 10 reforça e amplia: todas as construções deverão ter cunho marcadamente campestre, não se permitindo construções de madeira desmontáveis. A busca de harmonia com a paisagem leva à obrigatoriedade fechar os lotes com cercas vivas, artigo 15. Pelo artigo 20, alamedas curvas e pista de rolamento terão respectivamente 20m e 6m de largura; os passeios fundidos à vegetação não excederão 2m. O artigo 23 abre exceção para as duas pistas da Alameda Imperial de bambus nos dois lados do rio. O artigo 26 explica: “Tendo em vista o aproveitamento das essências existentes nas alamedas, a arborização será constituída, nesses casos, por conjuntos disseminados, assimétricos e em harmonia com o aspecto do Parque.” Pelo artigo 27, os compradores não poderão derrubar mais de um terço das árvores existentes em seus lotes sem autorização especial do Conselho Florestal Municipal.

Lucio não se incomoda em absoluto com a obrigação de projetar o hotel como uma composição pitoresca de estilo campestre. Duas são as decisões fundamentais. A primeira é dispor os apartamentos num andar superior, dada a exigüidade do terreno. A segunda é optar por estrutura mista de alvenaria e madeira, à base de paus roliços constituindo esqueleto independente. Não que a madeira fosse abundante no local. Como o folheto diz, as matas eram distantes. Lucio e César vão buscar em São Paulo o eucalipto seco da qualidade necessária. Construir com paredes de alvenaria portantes seria mais fácil. Entretanto, o uso da madeira era o modo mais contundente de obter caráter de cabana (com suas conotações de moradia primitiva, efêmera, precária) e evidenciar a independência moderna entre suporte e vedação. Lucio quer frisar que o hotel – que chama de “pousada" – se destinava "apenas à hospedagem de eventuais compradores de terrenos”, e, ao mesmo tempo, quer demonstrar que a arquitetura moderna é coisa mental, não questão de material. Ainda mais radical que Le Corbusier, não limita o uso da madeira à estrutura da cobertura, como aquele no projeto da Casa Errázuris (1931). Sem deixar de estabelecer um vínculo com a colonização local, que estaria ausente numa solução restrita ao pau-a-pique modernizado. Aliás, convicto do interesse eventual de um hibridismo de estrutura, Lucio já propusera, no projeto das casas geminadas de Monlevade (1934), caixa de pau-a-pique sobre pilotis de concreto, tampada por meia-água de cimento-amianto (5).

Park Hotel. Planta

O hotel – comprido de 42m – aparece por vez primeira em escorço, no alto na subida da alameda, coroando um talude abrupto. Sob a meia-água do telhado de barro, os balcões dos apartamentos a nordeste se voltam para o parque de Glaziou. Em balanço de largura aparente variável sobre o andar térreo, os balcões tem guarda-corpo de treliça azul, com peitoris presos aos postes de eucalipto na borda do piso do primeiro pavimento. A estrutura do pavimento e do telhado inclui outra sucessão de paus roliços, aparentes em intervalos curtos sob o tabuado do piso e do forro. Os postes rematam os tabiques de tábuas brancas entre os balcões; os tabiques prolongam as paredes entre os apartamentos, de pau-a-pique como as empenas caiadas. Excepcionalmente, os postes se soltam nos balcões extremos e os guarda-corpos dobram, morrendo no topo das empenas. Acima, os balanços dos telhados acentuam a leveza do conjunto. Esquadrias com bandeiras superiores acentuam a sua horizontalidade, enchendo os vãos entre as paredes divisórias, piso e forro. O andar superior se mostra sereno, fino, alveolar, rendado, delicado.

Park Hotel
Foto Nelson Kon


O pragmatismo do empreendimento é, como visto, relativo, no que tange à opção pelo eucalipto. A evocação de tempos distantes é parte da equação. Pau roliço rima com o assentamento inicial do português na terra americana e a morada índia que o precede. Pau-a-pique ou taipa de sopapo ou taipa de mão, técnica ainda prevalente no país rural da época, foi, parece, introduzida aqui pelo africano escravo. A treliça azul integra o vernáculo colonial. Como Lucio nota na memória da Cidade Universitária (1937), parafraseando Quatremère de Quincy, teórico da tradição acadêmica em que Lucio se formou, "as particularidades de planta" e "a escolha dos materiais a empregar e respectivo acabamento" podem dar "caráter local inconfundível" a um projeto, implicando no primeiro caso as particularidades de elevação e no segundo a definição de massas e tipos de construção igualmente assinaladas pelo francês. (6)

Contudo, Lucio também nota que a arquitetura moderna se funda na estrutura independente e na redução dos elementos técnico-construtivos primários à sua geometria essencial, no despojamento das suas superfícies de toda decoração. A proximidade entre os paus roliços garante a planeza virtual do piso e do telhado, expandindo a experiência com a cobertura do Grande Hotel de Ouro Preto, que Oscar Niemeyer projetara com Lucio de consultor (1940). Não bastasse, o andar térreo mostra uma varanda entre um volume de pedra, madeira e vidro à esquerda e uma caixa de madeira e vidro à direita. A pedra do primeiro se recorta para acomodar a janela de ângulo e os níveis diferentes do restaurante na esquina sobre a cave semienterrada e do estar junto à varanda. A esquadria de forro a piso com janelas guilhotina deixa entrever atrás a colunata periférica de madeira. A esquadria se chanfra junto à varanda, intensificando a conexão desta com o jardim. A colunata rompe a esquadria e se superpõe à lateral da escada, ao guarda-corpo da varanda e à caixa de madeira e vidro usada como sala de jogos.

A simplicidade repetitiva do andar superior se contrapõe ao drama térreo. A extroversão do mecanismo da planta livre é aqui tão exuberante quanto no Pavilhão Brasileiro na Feira de Nova York de 1939, ou no Grande Hotel de Ouro Preto. Como em Ouro Preto, a planta celular do setor privado em Nova Friburgo se superpõe à planta livre do setor social. À diferença de Ouro Preto, a varanda tem toda a largura do bloco; a porosidade é plena, sem intermediação de painel vazado. Variações sobre o tema do vazio total entre dois sólidos, os dois hotéis integram uma série que inclui, além do Pavilhão (feito por Lucio e Niemeyer) e da sede do Ministério de Educação (de Lucio, Niemeyer, Reidy, Moreira, Leão e Vasconcelos), a sede da Associação Brasileira de Imprensa, a colônia de férias do Instituto de Resseguros do Brasil e o aeroporto Santos Dumont dos irmãos Roberto, o Museu de Lucio para São Miguel das Missões, o projeto de Reidy para a sede da Prefeitura do Rio de Janeiro e a maioria dos edifícios de Niemeyer na Pampulha, a Capela, a Casa do Baile e o Iate Clube como o Hotel não terminado. A série atualiza um esquema secular, empregando elementos de arquitetura moderno cujas correspondências com a tradição construtiva nacional e racional se fazem notar. Assim, por exemplo, a janela horizontal e o pano de vidro se assimilam à janela corrida fechando as galerias internas de casario colonial; o esqueleto independente de madeira rústico, ao esqueleto de concreto ou aço metropolitano (7).

A fachada oeste do Hotel do Parque São Clemente surge ao chegar-se à esquina arredondada, quando o terreno se nivela com o passeio. Dois planos verticais modulam um espaço raso. Um é balizado pelas duas colunas externas apoiadas no chão e pelo piso inferior, elevado mas na mesma prumada. O outro é definido pelo piso superior em balanço, sustentado por duas toras amarradas às colunas. A empena branca em balanço avança em relação às colunas e seu contraventamento, peças de madeira entrecruzadas que evocam o enxaimel das casas do imigrante helvético tanto quanto uma treliça colonial desmesurada. Atrás dela, placas verticais brancas sobre um peitoril azul protegem a sala de jogos do sol da tarde. A composição se desdobra. Outra meia-água mais baixa e de sentido inverso, de projeção horizontal simétrica em forma de T, abriga o corredor superior e a caixa saliente com a recepção e a escada. A caixa é de pedra e sai do chão junto à varanda. O corredor é fechado por tábuas de madeira verticais e em balanço, no mesmo plano das colunas. Envernizado escuro, o volume contrasta com a empena branca e é equilibrado, no lado oposto, pelo guarda-corpo em L ocupando a esquina e pelo plano da meia-água principal, repousando em quatro toras de menor seção. A fachada lembra um zigurate invertido, evocando o chalé suíço, e o lugar distante, com mais verossimilhança que a casa de Wænheldt.

As faixas de janelas que iluminam galeria e escada correm junto ao forro, reforçando a planeza da parede em que se assentam e a do telhado que as protege. Os banheiros se iluminam por faixa mais alta de janelas entre as duas meias-águas. A solução é afim à das casas Murondins (1940), cuja estrutura de cobertura é em paus roliços ("rondins"), embora o telhado mesmo seja de palha e as paredes em taipa de pilão. É coincidência, porque o projeto corbusiano só se publica em 1947. Duas outras meias-águas intervém. Junto da varanda, a marquise de entrada se engasta numa ponta da caixa de pedra e se alça, no sentido inverso ao da cobertura da caixa, sobre paus roliços que integram apoios em V, parodiando, na sua materialidade deliberadamente canhestra, a marquise da vila Stein de Le Corbusier em Garches (1929) ou o Cassino da Pampulha de Niemeyer (1942), misturas de apoio metálico esbelto com laje pesada que remontam a Viollet-le-Duc passando pelo "art nouveau". Engastado na outra ponta da caixa e caindo no mesmo sentido da sua cobertura, um telheiro avança. Abriga carros e entrada de serviço e logo se retrai, recortado para tampar o banheiro e vestíbulo de serviço antes de morrer contra a parede da cozinha. Esta compõe com a casa do ecônomo em esquadro uma ala térrea que avança, iluminada por terraço rebaixado em relação à rua que sobe.

Numa visada desatenta, o arranjo parece casual. Contudo, o contraste formal entre fachadas opostas de uma barra tinha sido explorado plenamente no Pavilhão Brasileiro (como elevação estratificada para a rua que vira vertical no jardim) e no Grande Hotel de Ouro Preto (como elevação frontal endentada e rendada que ganha aos fundos textura de giz e baixo-relevo). Aqui, a adição de volumes (ou decomposição volumétrica) na fachada de entrada contradiz a contenção volumétrica na fachada oposta, e não se pode evitar remetê-la também ao Pavilhão Suíço corbusiano (1931), totalmente apropriada numa residência temporária em colônia de suíços. De fato, outras correspondências ligam os dois edifícios: a coexistência de planta celular e planta livre, a transferência de cargas do telhado para colunas na borda do primeiro piso em balanço, talvez mesmo a hibridação de sistemas estruturais, o aço e concreto metropolitano em Paris substituído pela pedra e madeira rurais em Nova Friburgo como na casa de veraneio de Le Corbusier em Mathes (1934). Certo, é alusão sutil e parcial. Além das óbvias diferenças em materialidade e, portanto, em ambiência, Lucio entra pelos fundos, por assim dizer, e ocupa o pilotis. O contraste entre as duas fachadas é menos incisivo e mais exacerbado em Nova Friburgo que em Paris, onde a barra pura e sólida comanda o espetáculo nos dois lados. A alusão à modernidade de ponta acompanha a extensão do vocabulário e da sintaxe modernos e se funde com a referência a características ordinárias dos edifícios chãos do Brasil rural. Lucio parece querer recapturar o jeito esparramado que a construção rural adquire no tempo, a "simplicidade, derramada e despretensiosa" tributária dos "bons princípios das velhas construções que nos são familiares" (8).

Park Hotel
Foto Nelson Kon


Contudo, a simplicidade aqui é das mais elaboradas. A marquise de entrada é a nota dissonante numa diretriz oblíqua que vincula a aresta do salão de jogos à aresta da cozinha. A diretriz se demarca por uma sucessão de planos que avançam progressivamente. O quebra-sol vertical superposto à esquadria da sala de jogos dá lugar ao pára-vento quadriculado e envidraçado na frente da varanda, preso no extremo do balanço acima. Em contraponto que reitera a autonomia entre estrutura e vedação, às duas colunas sobre o quebra-sol sucedem duas colunas atrás do pára-vento, separado por uma fresta da caixa de pedra. À esta se segue o plano de fechamento vertical virtual do telheiro da entrada de serviço e o recorte que constitui outra fresta e destaca a alvenaria da ala da cozinha. Os planos se sucedem com materialidade distinta. A ala da cozinha é construída com tijolo chato de seção peculiar, com macho boleado e fêmea côncava nos lados maiores opostos, feito lambris ou assoalho. A materialidade distingue progressões ternárias: o pára-vento ladeado pelos cheios do quebra-sol de madeira e da caixa de pedra áspera, o vazio do telheiro entre a caixa de pedra e a superfície corrugada e estriada da cozinha. A diagonalidade da apresentação se reitera no contraste entre a leveza relativa de biombo e pára-vento numa ponta e a cascata fosca de telhados ancorada por pedra e tijolo. Ressalta a condição de lote de esquina e engaja a superfície da rua na composição. Ao mesmo tempo, dificulta o reconhecimento de arranjos frontais quase simétricos definindo um trecho de composição piramidal; reiterando a alusão à vila de Garches, a marquise de entrada e o telheiro de serviço avançam de cada lado da caixa de pedra e esta por sua vez avança sobre o volume de madeira abrigando o corredor superior. Estilo campestre, mas desestabilizado pela geometria complexa; composição pitoresca, mas cerebral, de modo que até o toque açucarado dos canteiros de amor-perfeito no jardim se neutraliza.

Ao entrar, a abertura quadrada na parede de pedra atrás do balcão da recepção minúscula enquadra varanda, jardim e parque e se alinha com a porta de entrada, reiterando-se a porosidade observada fora. Estrutural enquanto resistência e agenciamento, a parede organiza o trajeto dilatado e sinuoso. Registrado, o hóspede desce três degraus e mais um patamar, num giro de 90º que o põe na frente de outra abertura para a varanda, desta vez uma porta. Mais um giro e tem a opção de subir a escada ou ingressar no salão, normalmente em movimento oblíquo. A caixa de escada dissimula armários por trás da vedação cálida e barata em tábuas de pinho de nó; balaustres planos compõem guarda-corpos que reproduzem a silhueta de um modelo colonial brasileiro. A entrada no salão mostra o balcão do bar com o tampo de bordos serpenteantes em latão e as superfícies cônicas invertidas em madeira de sua parede. A esquadria facetada se abrindo conduz o olhar para a plataforma mais alta das refeições, para acomodar a adega abaixo e proporcionar um esplêndido mirante comandando interior e exterior. O nível do bar é o mesmo das muretas que contém a plataforma e os degraus que lhe dão acesso, perpendiculares à largura do salão. Ganhar a área de refeições partindo do estar demanda dois giros de corpo, uma curva reversa. No espaço relativamente pequeno de 120 m2 e cinco intercolúnios, a coreografia do movimento engaja o visitante de maneira surpreendente e visceral.

Lucio é responsável pelo projeto dos interiores junto com o decorador Pierre Volko. Desenha as mesas e cadeiras de pé palito, a lâmpada de pé de ferro forjado e abajur cilíndrico de pergaminho, os apliques de mesma linha acima da lareira. Escolhe as cadeiras dobráveis tipo safári, as poltronas e os sofás despretensiosos forrados de tecido azul com vivos brancos ou de listas azul e branco com vivos azuis, a louça branca com filete vermelho comprada junto com o proprietário, os talheres pesados e os copos de cristal bojudos. Desaforado na rejeição de qualquer ortodoxia, o ecletismo idiossincrático de Lucio tem a ver mais com o apartamento Beistegui do Corbusier dos 1930 que com o Pavilhão de L'Esprit Nouveau do Corbusier dos 1920, apesar da seriedade máscula da cadeira safári, tradicional em acampamentos de caça. Os estofados combinam o conforto britânico com o colorido luso-brasileiro. Luminárias e balcão do bar adotam uma frivolidade francesa. Os globos de vidro suspensos replicam um modelo da antiguidade romana.

Park Hotel
Foto Nelson Kon


A provocação, se não ironia, continua na varanda. Seus quatro intercolúnios se subdividem em dois setores. Um tem sabor de passadiço, comprimido entre a caixa de pedra e a escada que conduz ao jardim cuidado. O outro se expande, entre o guarda-corpo e o pára-vento. Visto de dentro, o pára-vento recua deixando isentas as duas colunas entre a caixa de pedra e o salão de jogos pentagonal. O peitoril se superpõe a três colunas frente ao jardim. Encostado à quina da parede de pedra, o aviário em tela metálica tem o mesmo tipo de superfícies cônicas que o balcão do bar. A estrutura é em ferro pintado branco, como o sofá de volutas rococó ou as cadeiras de jardim parisiense, similares às que Le Corbusier usava no terraço do apartamento na Porte Molitor. As espreguiçadeiras contra o salão de jogos intimam comparações entre a varanda e o convés de navio.

Após a sequencia de compressão e a expansão, a descida ao jardim requer outro giro de corpo para ingressar na escada paralela à fachada. A transição entre edifício e jardim se faz pelo patamar afilado que o chanfro do salão limita e a laje de pedra irregular pavimenta. Uma nova experiência de expansão se segue ao estreitamento dos degraus. O movimento de penetração oblíqua se repete. Contudo, uma vez ao ar livre, mesmo desfrutando da vista da plataforma do jardim superior de Glaziou, não há descanso, por que, ao longo do edifício, o jardim plano se resume a uma nesga, outro passadiço, mas de pedra. O remanso só se encontra nos extremos, na ponta em proa do terreno observada na chegada e no pátio traseiro, popa configurada pela empena do restaurante e pela ala do ecônomo. O arranjo bi-nuclear do andar térreo se repete a céu aberto, a metáfora do navio se reafirma, a viagem chega ao fim (9). Com direito à expansão do panorama no quiosque, lagos, passeios, plataformas e chalé do velho Império, a clareira antes do bosque.

Nos quartos, o apainelamento em pinho de nó na altura de porta dissimula armários e gera um rebaixamento de forro virtual. As cortinas se mantém na mesma altura, livrando a bandeira de venezianas móveis para ventilação. O rebaixo traz intimidade sem prejuízo da integridade da cobertura inclinada. As lâmpadas de pé e o aplique são do mesmo modelo do salão. Lucio desenha as camas e mesas de cabeceira em madeira também escura. Aquelas são plataformas elevadas, precursoras, recobertas de grossos cobertores de padrão escocês de um lado e lisos do outro. As mesas de cabeceira se engastam à parede e de outro lado se apóiam num só pé palito inclinado, a formalização contemporânea evocando elemento típico de mobiliário alpino. As bordas do tampo se desbastam e as quinas se arredondam numa maneira que sugere Gaudí. Nos banheiros brancos, "espessas toalhas brancas de banho-grandes, que disto fazia questão" (10).

Park Hotel
Foto Nelson Kon


Sincretismo tecnológico, ecletismo de agenciamento, dualidade exacerbada em planejamento, volumetria, composição e caráter, tudo se credita enfim à inclusividade da arquitetura moderna de que Lucio já falara antes, na mesma memória da Cidade Universitária já citada. Cabem nela a cabana e o palácio. Pode-se nela justapor aspereza e doçura, amadorismo e sofisticação, modéstia e luxo, improvisação e preparo, naturalidade e mundanismo. E encenar, à base de fotogramas que se descobrem no “passeio arquitetônico”, a transformação que leva dum termo a seu oposto. Diferenciadas intrinsecamente, as faces do edifício denunciam as fases dum processo. Mostradas sequencialmente, são o equivalente arquitetônico da decomposição do movimento na escultura de Boccioni ou no quadro de Duchamp. A própria transformação vira tema de representação privilegiado. A pousada que “muito tocou o coração” do autor, “concebida e inaugurada num prazo mínimo” e “fruto de uma comunhão de propósitos do arquiteto e do proprietário”, é bem menos fácil e inocente que parece (11). Afinal, sua linhagem inclui a pequena aldeia que Maria Antonieta havia construído e povoado para brincar de pastora. Anunciando, na sua inconsciência, a transformação da unidade produtiva em decoração, a futura encarnação do parque aristocrático no subúrbio jardim industrial e burguês.

A evocação de lugares e tempos distantes de Wænheldt se faz com ornamento, historicismo, folclore. O chalé exemplifica o ecletismo de estilo, a expressão proposta por Henry-Russel Hitchcock (12) para designar "traços de diferentes estilos usados juntos no mesmo edifício". A composição inclui a cópia, feita com boa dose de estilização, de fragmentos originários de distintos tempos, que permanecem formalmente diferenciados. A heterocronia de origem corresponde à heterocronia de aparência, mas a axialidade e a simetria rígidas unificam a composição e minimizam a impressão de uma colagem. A modernidade se expressa no elemento material de proporções específicas (a telha, a coluna de ferro). A evocação de lugares e tempos distantes de Lucio aceita textura, admite relevo, mas vem sem ornamento, sem molduras. Dispensa o historicismo e o folclore (13). As alusões ao passado mais remoto não se equacionam estilisticamente. A balaustrada da escadaria é a exceção conspícua, mas planar, confirmando que a fonte de remissão privilegiada é a arquitetura vernácula. Em qualquer caso, Lucio visa a fusão com a elaboração moderna, a heterocronia (i.e., a temporalidade distinta) de origem submersa na isocronia (i.e., a temporalidade idêntica) de aparência. Adota um ecletismo filosófico, a expressão proposta por Richard Etlin para indicar "a extração de princípios da arquitetura de culturas passadas sem tomar de empréstimo rasgos estilísticos" (14). A modernidade do elemento material é secundária, e mesmo, no caso, descartada. O ônus de assinalação do presente se transfere à composição, em última instância à planta livre.

Tudo isso posto, o hotel de Lucio frisa a artificialidade do bucolismo republicano tanto quanto o chalé de Wænheldt e o parque de Glaziou frisam a artificialidade do bucolismo aristocrático. Sua vizinhança realça a comunidade de origem de hotel e loteamento, chalé e parque. Realizados em tempos diversos, evocam a mesma Arcádia primitiva que a música do deus Pã civilizou. A vizinhança não é deliberação do arquiteto. Mas a ênfase na impermanência material do hotel sim, e uma comunidade de destino se insinua, se não como ameaça, ao menos como constatação. Nenhuma Arcádia dura; quando muito se transforma. Dadas as condições brutas da Arcádia real, para muitos a transformação é sempre ganho, progresso acompanhado de democratização, viagem da barbárie para a civilização. A idade de ouro está à frente. Para outros, saudosos da suposta simplicidade e coerência da vida tribal e pastoral, a transformação é perda, é a queda, o distanciamento cada vez mais corrompido de uma idade de ouro mais perfeita. Emblema do engajamento de Lucio na arquitetura moderna, a planta livre ajuda a purgar de melancolia a referência à Arcádia imaginária, implicada pela seleção de materiais e técnicas construtivas. Enquanto, em plena Guerra Mundial, a seleção ajuda a purgar o engajamento de uma exultação indevida e demasiado ingênua.

notas

1
Os Clemente Pinto foram uma das famílias mais ricas do II Império brasileiro. Não há, que o autor saiba, monografia sobre o alemão Gustav, que veio para o Brasil em 1852 tendo ganho concurso para o Theatro Lyrico do Rio, e fez para o primeiro Antonio Clemente Pinto, Barão de Nova Friburgo, o Palácio do Catete no Rio de Janeiro, exemplo de ecletismo de estilo como diz Henry-Russel Hitchcock, e a sede da Fazenda Gavião além da casa em questão. Sobre Glaziou, a informação é abundante. Ver Hugo Segawa. Ao amor do jardim (São Paulo: Nobel/Edusp, 1996) e Carlos Gonçalves Terra, O Jardim no Brasil do Século XIX: Glaziou Revisitado (Rio: UFRJ/EBA, 1993).

2
Giovanna Rosso del Brenna, "Chalets, quiosques etc.: o gosto pelo pitoresco no último quartel do século XIX", in Annateresa Fabris (org), Ecletismo na arquitetura brasileira (São Paulo: Nobel/ Edusp, 1984), pp 36

3
Folheto de lançamento, 1945, cópia cedida ao autor por Maria Helena Guinle, filha de Cesar Guinle.

4
Idem.

5
Ver Lucio Costa, Sobre arquitetura (Porto Alegre: CEUA, 1962), pp 42- 55.

6
Ver Lucio Costa 1962 ( ver nota 2), p. 85 e Quatremère de Quincy, verbete caractère, in Dictionnaire Historique (Paris: le Clère, 1832)

7
Para um tratamento completo, ver a tradução em português da minha tese de doutorado, Carlos Eduardo Comas, Precisões brasileiras: arquitetura moderna 1936-45 (Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2002).

8
Ver Lucio Costa 1962 (ver nota 2), p. 85.

9
O Parque São Clemente, que foi por indicação dos proprietários, tombado como área de interesse nacional em 28/11/1957.

10
Lucio Costa, Lucio Costa: registro de uma vivência (São Paulo: Empresa das Artes, 1995), pp. 214-217. Parque Hotel, Friburgo, 1940.

11
Costa 1995 (ver nota 6).

12
Henry-Russel Hitchcock, Modern Architecture: Romanticism and Reintegration (New York: Payson and Clarke,1929) p.6.

13
Como mostra o relatório das Museu das Missões, Lucio não é avesso à composição de fragmentos originais de distintos tempos formalmente diferenciados, à heterocronia de aparência e origem que equivale a uma assemblage de despojos. Ironicamente, no caso das Missões, os fragmentos acabaram por ter de ser na maioria réplicas. Ver Carlos Eduardo Comas (org.), Lucio Costa e as Missões: um museu em São Miguel (Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2007).

14
Richard Etlin, Frank Lloyd Wright and Le Corbusier: the Romantic legacy (Manchester and New York: Manchester University Press, 1994), pp. 150-151.

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Carlos Eduardo Dias Comas, arquiteto, professor titular da FAU UFRGS

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