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architexts ISSN 1809-6298


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português
Em foco, a união deliberada da arquitetura, design e segurança com o objetivo de inibir contatos entre indivíduos na cidade. Os dispositivos à prova de vândalos ou antimendigo e a arquitetura fortificada vistos como estratégia projetual para a segregação

english
Focus on the deliberated union of architecture, design and safety in order to inhibit contact between individuals in the city. The vandal-proof design, the devices against beggars and the fortified architecture are perceived as project strategy for segreg

español
El enfoque está en la deliberada unión entre arquitectura, diseño y seguridad a fin de inhibir el contacto entre las personas en la ciudad. Los dispositivos a prueba de vandalismo o contra mendigos y la arquitectura fortificada son vistos como estrategia


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ANDRADE, Patrícia Alonso de. Quando o design exclui o Outro. Dispositivos espaciais de segregação e suas manifestações em João Pessoa PB. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 134.05, Vitruvius, jul. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.134/3973>.

Cidade, diferença e exclusão

A cidade, enquanto agrupamento de pessoas diferentes, é um organismo complexo que envolve experiências de estranhamento e surpresa. A diversidade que é inerente ao conceito de cidade aproxima-se da desigualdade, afinal, são as diferenças que geram a heterogeneidade e vitalidade urbanas.

Ao longo de sua existência, as cidades sempre registraram, de variadas maneiras, as diferenças culturais, sociais e econômicas dos grupos que as compõem, muitas vezes através de dispositivos espaciais segregatórios.

Na Veneza renascentista, os judeus tinham o direito de fazer transações comerciais na cidade, mas eram confinados em um gueto construído em suas aforas, para onde deviam voltar ao fim do dia, e cujos portões permaneciam fechados e patrulhados durante a noite. Sennet menciona o temor à diferença dos cristãos venezianos, o qual se manifestava no fato de evitarem tocar os corpos judeus, considerados impuros:

Um simples detalhe no ritual dos negócios escancara esse medo de contato; enquanto os cristãos selavam seus contratos com um beijo ou um aperto de mãos, qualquer acordo que envolvesse um judeu concluía-se com uma curvatura – as partes não se tocavam (1).

O exemplo veneziano não é o único, pois colônias judaicas eram segregadas em guetos em várias cidades da Europa cristã medieval, com Londres, Frankfurt e Roma.

O desenho urbano dos séculos XVIII e XIX, que pretendia, dentro de ideais iluministas, renovar áreas e facilitar a circulação, teve exemplos com resultados excludentes, como ocorreu com a renovação urbana de Londres, que promoveu a retirada de habitações pobres para áreas distantes, substituídas por casas destinadas às classes mais abastadas, ou o plano de redesenho de Paris de Haussmann, que destruiu grande parte do traçado medieval e renascentista da cidade, retirando ou dividindo comunidades pobres com a abertura de grandes e retilíneas avenidas. afirma que o planejamento do século XIX, ao priorizar a circulação em detrimento da convivência, desvinculava as pessoas dos lugares, promovendo indiferença e individualismo (2).

Robert Moses, responsável pela reestruturação de Nova York na primeira metade do século XX, revelava seu desprezo pelo existente e pelas classes populares, dizendo que, ao atuar em uma metrópole superedificada, tinha-se que abrir caminho a golpes de cutelo, e que a diferença em relação a áreas rurais ou suburbanas era que tinha mais gente no caminho. Suas grandes obras, como túneis, parques, autoestradas, pontes e viadutos, favoreciam a locomoção individual em automóveis, fragmentavam a urbe e atentavam contra a diversidade. Berman relata como a construção de uma imensa via expressa cortou ao meio o bairro do Bronx, demolindo dezenas de quarteirões consolidados e povoados por operários e imigrantes, que foram expulsos, e a área, condenada à degradação e abandono (3).

Políticas higienistas também foram a praxe das ações estatais para as cidades brasileiras, desde o fim do século XIX até os anos 30, sob a visão preconceituosa de que as moradias precárias e insalubres dos imigrantes e trabalhadores pobres, com seus maus hábitos de higiene, seriam as causas dos problemas sanitários e urbanos. Então, deveriam ser controladas e, nos casos extremos, para extirpar o mal, expulsos os habitantes e interditados ou demolidos os edifícios. As intervenções urbanísticas nas áreas centrais das grandes cidades, nas primeiras décadas do século XX, ilustram bem essa prática: para abrir espaço para as grandes avenidas e obras de embelezamento urbano, os cortiços e velhos sobrados centrais eram colocados abaixo, e os seus moradores, expulsos, afastando-se a pobreza e decadência dos centros urbanos (4).

A remoção de favelas perdurou por décadas enquanto política pública para lidar com a informalidade urbana no Brasil. Seus habitantes eram relocados para conjuntos habitacionais de baixa qualidade construtiva e urbanística, longínquos e desprovidos de infraestrutura e serviços urbanos. Embora existam hoje paradigmas mais democráticos de atuação frente à cidade informal – como os projetos de regularização fundiária e de urbanização de favelas - os favelados ainda são estigmatizados e rejeitados. Maricato afirma que “o solo ilegal parece constituir a base para uma vida ilegal e esquecida pelos direitos e benefícios urbanos” (5). Em 2009, o governo do Rio de Janeiro decidiu murar 13 favelas cariocas com 14,6 Km de paredões de três metros de altura, sob o argumento de conter o avanço das casas e barracos sobre as áreas verdes (6).

Estratégias recentes de revitalização e gentrificação de sítios históricos no Brasil provocaram a valorização imobiliária dessas áreas e a consequente expulsão dos seus tradicionais moradores de classes mais pobres - caso da região portuária do Recife Antigo e do Pelourinho em Salvador (7). A exploração do patrimônio enquanto cenário e objeto de consumo, voltada prioritariamente para turismo cultural e lazer, visa à atração de investidores privados e à autossustentabilidade econômica das áreas históricas, sem, contudo, resolver suas questões sociais.

Se a segregação socioespacial sempre esteve presente nas cidades, revelando múltiplas faces, é certo que, na cidade contemporânea, ela vem (re)assumindo características cada vez mais rígidas. A conjunção dos problemas urbanos atuais – desigualdades sociais abissais, informalidade e irregularidade fundiária, precariedade e déficit habitacional, dificuldades de acessibilidade e mobilidade urbana, prevalência do automóvel particular como meio de transporte, crescimento desordenado e espraiamento das cidades, grandes distâncias e vazios urbanos, degradação e abandono de regiões centrais - levam a uma fragmentação da urbe, construindo uma atmosfera de insegurança e violência que se reflete em disposições espaciais que promovem isolamento, controle e privatização dos hábitos cotidianos.

Design e segregação: da arquitetura sitiada aos dispositivos “antimendigo”

Cada vez mais, espaços de uso coletivo, mas privados, fechados, vigiados e com entrada controlada, como os shopping centers, substituem os espaços públicos na preferência dos cidadãos - principalmente os de classes mais favorecidas – para o lazer. Os condomínios residenciais fechados vêm se expandindo, proclamando um “novo estilo de morar”: pode-se dispor de uma microcidade que congrega múltiplos usos – residências, espaços de lazer e de esportes, comércios e serviços – para uma vida intramuros, isolada, protegida por sistemas de segurança e por guaritas, e socialmente homogênea (8). As alegações para a adoção desses padrões espaciais insulados são comodidade, fuga da desordem e agitação da cidade, e sobretudo medo da violência urbana.

Os dispositivos espaciais podem contribuir sobremaneira para minimizar os problemas urbanos. Por outro lado, também podem concorrer para agravá-los. É dramático reconhecer que essa arquitetura sitiada não é inadvertida, mas uma estratégia projetual deliberada para a segregação socioespacial, que conta com o interesse e incentivo do mercado imobiliário, com a aprovação da parcela da sociedade que a consome e deseja, com a cumplicidade do Poder Público, que não só a permite como, em certos casos, a implementa, e com a participação ativa dos arquitetos, urbanistas e designers, que a projetam.

O projeto de Frank Gehry para a Biblioteca Goldwyn em Hollywood em 1984 - um edifício hostil e fortificado como um bunker, com o propósito de afastar os vândalos e maltrapilhos das imediações – exemplifica como os arquitetos podem ser insensíveis à humanização da arquitetura, quando se trata de atender às demandas do mercado ou do cliente (9).

Los Angeles é um caso extremo onde ocorre uma planejada fusão da arquitetura, urbanismo e aparato policial em um abrangente esforço de segurança e isolamento social, cujas consequências são introversão das dinâmicas urbanas, destruição dos espaços públicos e militarização da vida citadina. A cidade vive uma espécie de apartheid espacial, dividida entre células fortificadas da sociedade afluente e guetos pobres e marginalizados. A reestruturação do Centro, por exemplo, demoliu áreas inteiras, para a construção de uma hiperestrutura única programada para acolher grupos homogêneos e usos variados em seu interior, de forma a evitar a exposição às ruas externas e às classes indesejáveis. Já alguns centros comerciais empreendidos em bairros pobres exibem, como estratégia de design e gestão orientados para a segurança total, torres centrais de vigilância, plagiando o projeto do século XIX da prisão panóptica de Jeremy Bentham (10).

Percebe-se, nesse contexto, que arquitetura, design e segurança caminham deliberadamente juntos, com o objetivo de inibir contatos das pessoas com “o outro”, mantendo-o fora, excluído, ou mantendo-o dentro, confinado. Mais uma vez, Los Angeles se destaca por sua política oficial de contenção de sem-tetos em determinados setores degradados, sem, contudo, prover-lhes habitação adequada, em uma lógica ainda mais perversa que a dos guetos medievais e renascentistas.

Uma das versões mais radicais dessa inversão e introversão do design é a chamada arquitetura “antimendigo”, pautada por arranjos espaciais, soluções de design ou disposição de artefatos que visam a impedir a permanência de moradores de rua em certos locais públicos ou semipúblicos – geralmente os que, sem tais artifícios, seriam mais abrigados ou confortáveis para pernoite. A arquitetura “antimendigo” assume desde versões mais disfarçadas - como bancos cujo design dificulta seu uso como catres, pisos irregulares, grades que cercam espaços vazios ou jardins, ferragens pontiagudas - até hostilizações escancaradas – esguichos de água suspensos em marquises para molhar calçadas durante a noite; jogos incômodos de luzes; superfícies tipo camas de pregos; planos inclinados e/ou com revestimentos assentados de forma a evitar o contato. Há até casos de latas de lixo à prova de mendigos, como o modelo com espessas chapas de aço, cadeados blindados e espetos voltados para fora, adotado por um restaurante de Los Angeles (11).

Não apenas a iniciativa privada adota esse tipo de estratégia discriminatória, mas também o Poder Público que, ironicamente, deveria zelar pelo acesso universal à cidade. Em 2007, a municipalidade de São Paulo instalou, nas praças da República, da Sé e D. José Gaspar, bancos com divisórias de ferro, para limitar o espaço e obstar que desabrigados se deitassem neles. O mesmo tipo de design foi adotado em bancos públicos pela gestão municipal do Rio de Janeiro em 2009 (12). A prefeitura paulistana já havia erguido, em 2005, rampas de concreto “antimendigo” nas extremidades da passagem subterrânea da Avenida Paulista que leva à Avenida Dr. Arnaldo, ocupando toda a área entre a calçada e o teto do viaduto, onde antes viviam sem-tetos. A superfície bem inclinada e o acabamento chapiscado - áspero e incômodo – das rampas impossibilitaram o uso do local como abrigo (13). A atual gestão municipal de São Paulo começou a construir, neste ano, outra rampa “antimendigo”, desta vez no viaduto João Julião da Costa Aguiar, em Moema (14).

Os dispositivos “antimendigos”, assim como a arquitetura-fortaleza dos condomínios e shopping centers, dizem mais respeito ao grau de isolamento em relação aos grupos e indivíduos indesejáveis, do que à proteção pessoal ou patrimonial dos cidadãos. Embora tais arranjos possam parecer inofensivos ou corriqueiros às pessoas “protegidas” - que podem apreciá-los, acostumar-se a eles, ou nem sequer notá-los - são imediatamente compreendidos e sentidos por aqueles a quem são dirigidos: os outros, os excluídos.

Parece estar em xeque o espaço urbano como um espaço de vivência em meio à diferença. As pessoas ignoram ou repudiam os estranhos, principalmente os diferentes. A diferença passa a ser uma ameaça, um perigo. A oscilação entre a indiferença ou hostilidade urbana confirma Sennet: o código de credibilidade socialmente construído - que permitia que os estranhos interagissem na cidade - não é mais possível (15).

No processo de afastamento do outro, as barreiras urbanas e arquitetônicas, o mobiliário, detalhes e sinais de exclusão vão tolhendo as expressões corporais, os contatos humanos, os comportamentos e as interações das pessoas entre si e com a cidade, deixando-a com feições hostis frente a seus usuários. Como acredita Whyte, a simples constatação da existência ou não de lugares confortáveis para as pessoas sentarem é suficiente para aferir a qualidade de qualquer ambiente urbano (16). A configuração dos espaços públicos interfere na intensidade da vida social na cidade: espaços e equipamentos urbanos de qualidade são capazes de garantir contatos sociais mais frequentes e intensos (17). Os dispositivos espaciais de exclusão invertem esse raciocínio: a negação planejada dos contatos, traduzida no design e na arquitetura, tem gerado espaços urbanos de má qualidade.

Dispositivos espaciais de exclusão em João Pessoa

João Pessoa, capital da Paraíba, é uma cidade de porte médio, com pouco mais de 700.000 habitantes. Embora ainda seja considerada relativamente pacata, já conta com muitos dos problemas urbanos atuais: sofre com congestionamentos de trânsito frequentes; tem bairros com verticalização e adensamento excessivos; apresenta áreas centrais esvaziadas e com patrimônio edificado degradado; esboça um incipiente espraiamento na região do litoral sul; e contabiliza mais de cem favelas cadastradas pela municipalidade. Sua população não ficou imune ao medo crescente da violência urbana, nem ao desejo de isolamento socioespacial, assim como seu mercado imobiliário não deixou de explorar as possibilidades apresentadas pelas interações entre arquitetura, design e segurança.

Os condomínios residenciais fechados, com suas vastas glebas cercadas por muros contínuos e vigiadas por guaritas fortificadas, já fazem parte da paisagem urbana de João Pessoa. Eles estão fortemente concentrados, a maioria de forma contígua, na região do Altiplano e Portal do Sol, zona sul de expansão do município. Ali, há nove dos dez condôminos horizontais fechados de classe média alta e alta da cidade (além de um condomínio vertical em construção), todos com alto padrão construtivo, segurança rigorosa e diversificados equipamentos esportivos e de lazer. Como não interagem com o entorno, geram periferias ermas e paisagens monótonas, onde os elementos urbanos variados são substituídos apenas por altos muros. Há ainda cinco condomínios horizontais fechados de padrão popular, reunidos em bairros menos nobres. Também com muros e guaritas, mas com áreas menos extensas e com menos atrativos de lazer que os seus similares de alto nível, são uma demonstração de que as classes menos remediadas também aspiram ao isolamento, seguindo os mais ricos.

Os territórios murados não se restringem às imediações dos condomínios. Nos bairros mais nobres, erguem-se torres residenciais que gradativamente assumem ares de arquitetura militar, tamanha a altura dos muros e a profusão de artefatos de segurança, como gradis, cercas eletrificadas, câmeras de vigilância, além das guaritas elevadas e herméticas, verdadeiras releituras de torres medievais. No bairro de Manaíra - vizinho a uma das maiores e mais violentas favelas da cidade, a São José – a concentração de tipologias fortificadas transforma o caminhar pelas ruas em uma experiência de solidão e apreensão, já que a paisagem resume-se a um continuum de muros, vias asfaltadas e carros em velocidade.

João Pessoa já conta com elementos espaciais instalados no ambiente urbano contra vandalismo e contra a presença de sem-tetos e demais indesejáveis. Sua população de rua é pouco expressiva: dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, divulgada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), realizada em 2007, apontam para pouco mais de 200 indivíduos. Esse contingente de desabrigados se soma a pedintes que vivem em favelas e se faz notar em recantos variados da cidade – esquinas, ruas, calçadas, praças, viadutos – com maior concentração no Centro, onde, consequentemente, são mais presentes as manifestações de design de exclusão.

Na maioria das vezes, essas manifestações são relativamente discretas – o que não invalida seu sentido segregatório, nem as torna amenas ou invisíveis para seus destinatários - e implementadas pela iniciativa particular (clínicas, bancos, bares, hotéis, etc.) nas calçadas, ou nos espaços de transição entre o público e o privado. Contudo, há casos em que sedes de instituições públicas, ou que prestam serviços públicos – Assembléia Legislativa, Caixa econômica Federal, Banco do Brasil, Fórum da Justiça Estadual, Correios e Telégrafos, para citar algumas - também fazem uso de dispositivos de isolamento e exclusão.

Um exemplo curioso é a escultura de um reconhecido artista local instalada, em 2009, pela gestão municipal no Parque Solon de Lucena, conhecido cartão postal da cidade, com forte sentido de referência para seus habitantes. A obra, em homenagem a Ariano Suassuna, chama-se A Pedra do Reino e constitui-se de um imponente totem sobre uma base cúbica. Um olhar mais atento faz perceber os artefatos antivandalismo mesclados à obra de arte: além de ser rodeada por densos cactos, sua base apresenta, em todas as superfícies, entre azulejos pintados, vários espetos distribuídos uniformemente a cada 15 cm, com a finalidade óbvia de inibir qualquer aproximação má intencionada que vise à depredação. No entanto, o artifício dá ao monumento um aspecto agressivo, contraditório ao objetivo de sua colocação ali: humanizar, embelezar o lugar, e dar-lhe identidade.

Já em um laboratório de exames médicos, o canteiro que havia sob a marquise de entrada foi cimentado e salteado com seixos dispostos de forma fixa e pontiaguda, para impedir que moradores de rua pernoitem ali. Sob o imenso balanço da agência central da Caixa Econômica Federal, uma estrutura tubular horizontal de ferro, semelhante a um corrimão, que delimita o espaço entre a calçada e o lote, e que era passível de ser usada como encosto ou assento, recebeu uma sutil, mas incômoda, grade ondulada, para bloquear tal uso.

Em uma área movimentada do bairro litorâneo de Tambaú, uma espécie de boteco decadente e informal, construído no limite do lote de uma casa com a calçada, exibe, quando fechado, além de uma precavida grade, uma tábua cheia de pregos instalada na precária barra do bar, para que os mendigos e meninos de rua das redondezas não deitem, sentem ou encostem  ali. Eis uma ilustração de como até as classes mais pobres e a informalidade têm sua hierarquia de exclusão.

João Pessoa não teve ainda, diferentemente de São Paulo e Rio de Janeiro, experiências da execrável arquitetura “antimendigo” oficial, implementada pela própria gestão pública. No entanto, permanece a inquietação quanto ao futuro da cidade, pois a disseminação de padrões e dispositivos espaciais excludentes segue adiante. E, se não for refreada a tempo, pode levar a graves desagregações sociais e espaciais.

Inquietações quanto ao futuro

Certamente, nesse processo de endurecimento planejado do ambiente construído, a arquitetura e o design futuros se desenvolverão orientados para o uso das tecnologias de comunicação em prol da vigilância e segurança, com edifícios inteligentes que integrarão funções avançadas e automáticas de blindagem, observação, reconhecimento de pessoas e alarme, além de outras automações, emulando as criações da cultura pop de ficção científica. A configuração dos espaços de exclusão, ao que parece, tenderá a se dividir entre esse design high tech, que disfarça as funções de isolamento e segurança através das sofisticações tecnológicas, e o design low-tech, que as escancara com os muros, grades e cercas pontiagudas. Em um caso ou outro, os efeitos negativos sobre a paisagem e dinâmica urbanas são inegáveis, o que torna necessária e urgente a reflexão sobre as perspectivas que se delineiam para a cidade a partir da evolução da exclusão programada, a fim de buscar caminhos mais democráticos, inclusivos e humanizados.

Em cidades menores onde os espaços e dispositivos de exclusão ainda não se consolidaram de maneira mais extremada, como é o caso de João Pessoa, a tomada de consciência dos males dessa guerra fria urbana e a adoção de novos paradigmas para lidar com as diferenças da cidade podem alcançar resultados efetivos mais facilmente, revertendo e evitando as fragmentações socioespaciais.

É pertinente colocar algumas perguntas: Que futuro se deseja para as cidades, e qual o futuro possível? Poder-se-ão substituir as barreiras por pontes de contato em cidades com populações cada vez mais heterogêneas? Enquanto não se resolvem os problemas sociais, como devem ser tratados os espaços? E que papel devem assumir, nessa conjuntura, os projetistas, designers, arquitetos e urbanistas?

Esses são questionamentos complexos, e não se tem aqui a pretensão de respondê-los. Para tanto, há de se fazer um esforço permanente e coletivo para repensar, sob um olhar ético, os valores e propósitos da arquitetura e do design contemporâneos, e buscar (re)encontrar sua possível e justa contribuição para a melhoria da qualidade de vida do ambiente construído e das cidades. Fica uma certeza: uma arquitetura ou design cujo objetivo é afastar pessoas e embrutecer o ambiente, promovendo privações sensoriais, de contatos e de vitalidade, é uma antiarquitetura, um antidesign por definição.

notas

NE
Artigo publicado nos anais eletrônicos do NUTAU 2010 – 8º Seminário Internacional - Arquitetura Urbanismo e Design: Mensagens e produtos para ambientes sustentáveis. São Paulo-SP: FAU-USP, 2010.

1
SENNET, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997.

2
Idem, ibidem.

3
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

4
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade/Fapesp, 1998.

5
MARICATO, Ermínia. Favelas: um universo gigantesco e desconhecido. São Paulo, Laboratório de habitação e assentamentos humanos / FAU USP, 2001. Disponível em: <www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_favelas.pdf>.

6
SOARES, Ronaldo. A favela no limite. São Paulo: [s.n.], 2009. Disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/conteudo_451761.shtml> Acesso em: 25 jul. 2010. Artigo publicado na Revista Veja, São Paulo ed. 2109, 2009.

ZAHAR, André. Muro na favela Rocinha vai remover 415 famílias no Rio. Rio de Janeiro: [s.n.], 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u550240.shtml> Acesso em: 25 jul. 2010.

7
SCOCUGLIA, Jovanka B. C. Revitalização urbana e (re)invenção do centro histórico na cidade de João Pessoa (1987-2002). João Pessoa: Editora Universitária, 2004.

8
CALDEIRA, Teresa P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Editora 34 / Edusp, 2003.

9
DAVIS, Mike. Cidade de quartzo: escavando o futuro. São Paulo: Pagina Aberta, 1993.

10
Idem, ibidem.

11
Idem, ibidem.

12
SÁLES, Felipe. Prefeitura lança banco antimendigo, e entidades criticam medida. Rio de Janeiro: [s.n.], 2009. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.etc.br/index.php?option=com_content&view=article&id=323:rj-prefeitura-lanca-banco-antimendigo-e-entidades-criticam-o-projeto&catid=15:dhescas&Itemid=158>.

13
BALAZINA, Afra. Serra põe rampa antimendigo na Paulista. São Paulo: [s.n.], 2005. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u113368.shtml>. Acesso em: 27 jul. 2010.

14
FERRAZ, Adriana. Prefeitura constrói nova rampa antimendigo. São Paulo: [s.n.], 2010. Disponível em: <www.agora.uol.com.br/saopaulo/ult10103u751046.shtml> Acesso em: 27 jul. 2010.

15
SENNET, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Schwarcz, 1995.

16
DAVIS, Mike. Op. cit.

17
GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano: la vida social entre los edificios. Barcelona: Reverté, 2006.

bibliografia complementar

ABRAHÃO, Sérgio Luís. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume, 2008.

FERRAZ, Sonia Maria Taddei. Arquitetura da violência: morar com medo nas cidades. Quem tem medo de que e de quem nas cidades brasileiras contemporâneas? Rio de Janeiro: [s.n.], 2006. Disponível em: < http://br.monografias. com /trabalhos/ arquitetura-violencia- cidades-contemporaneas /arquitetura -violencia-cidades- contemporaneas.shtml > Acesso em: 23 jul. 2010.

PORTAS, Nuno; DOMINGUES, Álvaro; CABRAL, João. Políticas urbanas: tendências, estratégias e oportunidades. Lisboa: CEFA/FCG, 2003.

SENNET, Richard. Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro: Record, 2004.

sobre a autora

Patrícia Alonso de Andrade é Arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB (1997), mestre em Diseño de Interiores pela Universidad de Salamanca – España (1999), professora assistente do Departamento de Arquitetura da UFPB e professora adjunta do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).

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