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Impacto do projeto de revitalização da marina da Glória para o Parque do Flamengo e para o panorama da Baía de Guanabara e Pão de Açúcar


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GIRÃO, Claudia. Parque do Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil: o caso da marina – parte 1. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 135.01, Vitruvius, jul. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.135/4014>.

“Acreditamos que vivemos, hoje, no Brasil, período equivalente ao da revolução modernista de 1922, só que determinado por causas mais profundas. Foram também razões de natureza econômica e política, vale dizer cultural, que determinaram, naquela época, a redescoberta da realidade brasileira pelos artistas. Mas, desta vez, devido às características mesmas do tempo, essa redescoberta se faz menos em termos literários do que humanos, menos em termos estilísticos do que políticos. O País redescobre, não a sua realidade lírica, mas a sua realidade social dramática. Não se trata, nesse sentido, de uma operação estética, mas ética, e a urgência da justiça social já se tornou o conteúdo da arte em vários campos da atividade expressiva no Brasil de hoje”.
Ferreira Gullar, 1963 (1)

Enquanto Ferreira Gullar escreve estas palavras, constrói-se o Parque do Flamengo, obra de modernistas, cuja beleza plástica se multiplica quando se conhece seu cunho social, razão pela qual foi criado. A análise do caso da marina do Parque insere-se nestes pressupostos, envolvendo fundamentos éticos ― e estéticos ― que não devem ser esquecidos ou relativizados.

1. Essência e preservação

Rio, década de 1960. A cidade se prepara para comemorar seus 400 anos de fundação. Destaca Hélio Vianna, em 1964 (2):

“A maior e mais notável transformação urbana do Rio de Janeiro quadricentenário será, entretanto, o aproveitamento, como grandioso parque, do imenso aterro de 1.200.000 metros quadrados, marginado de praias artificiais, resultante do desmonte do Morro de Santo Antonio. De Santa Luzia à Glória, Russel, Flamengo, Morro da Viúva e Botafogo, teremos uma orla marítima única no mundo, diante do panorama da entrada da baía de Guanabara. Ali, onde o Museu de Arte Moderna e o Monumento aos Brasileiros Mortos na Segunda Guerra Mundial também afirmam a nova fase da arquitetura e da escultura brasileiras, os jardins e arvoredos do arquiteto-paisagista Roberto Burle-Marx urbanisticamente mostrarão que a cidade de Estácio de Sá continua fiel ao seu destino, engrandecendo-se sem prejuízo de suas belezas naturais”.

A associação de idéias de Hélio Vianna é clara: Parque, quarto centenário da cidade, entrada da barra. Segundo a historiografia oficial, para combater tamoios e franceses estabelecidos na costa entre o Morro da Viúva e a Ilha de Villegaignon, Estácio fundara o primeiro povoado no Morro Cara de Cão (1565), após aportar na Praia de Fora, “ao pé de um penedo, que se vai às nuvens, chamado o pão de Açúcar” (3), este o principal referencial geográfico para a navegação na chegada ao Rio de Janeiro. Fora também em uma praia defronte ao Morro da Urca que alguns historiadores afirmam ter fundeado Martim Afonso (1531).

Obras da natureza vinculadas culturalmente à fundação e formação da cidade, esses montes de contorno marcante, cujo valor histórico e artístico fora assinalado no tombamento em conjunto (1938), também foram objeto de tombamento individuado por seu valor paisagístico (1973), requerido pelo paisagista Roberto Burle Marx e por abaixo-assinado da artista plástica Djanira e dos escritores Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Austregésilo de Athayde, Luiz Antonio Villas-Boas Corrêa e Marques Rebelo, dentre outras personalidades preocupadas com eventual desfiguração.

Ao defender o tombamento paisagístico desses morros, o escritor e incansável pesquisador Gilberto Ferrez começou seu parecer destacando: “Parece inacreditável que tenhamos que alinhar dados e fatos para provar a necessidade do tombamento do Pão de Açúcar – o símbolo de nossa maravilhosa cidade. Não só o símbolo mas o marco, a baliza histórica da entrada da mais bela baía do mundo, desde a sua descoberta até hoje e sempre” (4).

O Parque do Flamengo foi criado em associação com esse panorama.

Obra memorável do urbanismo moderno brasileiro, o Parque projetado a partir de 1961 foi inaugurado simbolicamente em 1964, no dia da criança, e reinaugurado oficialmente em 1965, pelo Governo do Estado da Guanabara, como parte das comemorações do quarto centenário da cidade. Foi tombado pelo IPHAN nesse mesmo ano, em sessão do Conselho Consultivo de que participaram, dentre outros, Afonso Arinos de Mello Franco, Alfredo Galvão, Gilberto Ferrez, Josué Montello, Manuel Bandeira e Pedro Calmon. Desde o início, este parque público impregnou-se no imaginário carioca como espaço de atividades lúdicas em paisagens entrelaçadas com o panorama da fundação e primeiros anos da cidade ― a entrada da Baía de Guanabara com o promontório e morro do Pico, em Niterói, e a ilha da Laje e o conjunto dos morros Cara de Cão, Urca e Pão de Açúcar, no Rio.

A relação geográfica e simbólica do Parque com tal panorama sempre foi óbvia. O historiador da modernidade Yves Bruand, que residiu no Brasil entre 1960-1969, se refere ao objetivo de, na área de aterro, “oferecer à população um parque magnífico, pontilhado de monumentos dignos do local extraordinário onde seria criado” e também alude à paisagem ao examinar a arquitetura do Museu de Arte Moderna (1954-1967), projetado por Affonso Eduardo Reidy, e do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, de Hélio Ribas Marinho e Marcos Konder Netto (5).

Sobre o MAM, Bruand observa que o partido adotado “Permitia, inicialmente, a transparência completa do edifício e evitava cortar a esplêndida paisagem da Baía por um obstáculo que não podia ser penetrado pelo olhar; no caso, o respeito pelo panorama e a integração da arquitetura nele eram as qualidades primordiais de sua composição válida”. Sobre o Monumento aos Pracinhas, diz Bruand: “Estes [Ribas Marinho e Konder Netto] conseguiram tirar um proveito notável do programa complexo e do local excepcional que lhes foram propostos. Eles respeitaram ao máximo a paisagem, esforçando-se para não cortar o panorama com um anteparo opaco e conseguiram integrar a arquitetura ao contexto natural, sem prejudicar sua personalidade própria: a dominante horizontal das cadeias de montanhas que encerram a Baía e os contrapontos bruscos feitos pelos célebres pães-de-açúcar semeados nelas inspiraram o ritmo da composição [...]; então, chega-se facilmente a um compromisso, tanto com a natureza, quanto com o ambiente urbanístico, onde se impõe o estilo muito próprio dos edifícios de Reidy associados aos jardins de Burle Marx”.

Esta parte tão valorizada da orla marítima brasileira é, constantemente, alvo de propostas especulativas. Assim, Maria Carlota de Macedo Soares ― de quem partiu a idéia de criar um parque público semelhante ao Central Park no aterro carioca (onde antes haveria apenas autopistas), e a responsável por convencer o governador Carlos Lacerda a construí-lo ― também convenceu Lacerda a pedir o tombamento federal do Parque. Iniciado o processo de tombamento, o diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de Andrade, solicitou ser juntado aos autos do processo o projeto geral do Parque e recebeu correspondência de Lota de Macedo Soares (6) com as seguintes palavras, transcritas depois pelo Conselheiro-Relator Paulo Santos, em seu Parecer favorável ao tombamento, acolhido por unanimidade pelo Conselho Consultivo da DPHAN:

“Pelo seu tombamento o Parque do Flamengo ficará protegido da ganância que suscita uma área de inestimável valor financeiro, e da extrema leviandade dos poderes públicos quando se tratar da complementação ou permanência de planos. Uma obra que tem como finalidade a proteção à paisagem, e um serviço social para o grande público obedece a critérios ainda muito pouco compreendidos pelas administrações e pelos particulares”.

Planta geral do Parque do Flamengo, 1965

O tombamento paisagístico (7) realizou-se com o Parque quase completo e abarcou expressamente uma faixa marítima de 100 metros em toda a sua extensão marginada de praias de areias e pedras. Para assegurar que a obra não seria desvirtuada e possibilitar a correta execução dos poucos equipamentos e jardins que faltavam, o Plano Geral do Parque, constando da Planta Geral, relação de 46 itens do programa, e projetos de pavilhões (8), foi juntado aos autos do processo de tombamento como anexo do Parecer do Conselheiro-Relator Paulo Santos (9).

Parque do Flamengo, delimitação de tombamento

Paulo Santos, além de enumerar, no fim de seu Parecer, os itens integrantes do programa, enfatiza o caráter do tombamento ao esclarecer que toda edificação no Parque do Flamengo limita-se ao que está previsto na Planta Geral de 1965 e mesmo os pavilhões previstos devem ser condicionados pela contenção, sendo tais parâmetros de preservação cultural estabelecidos, portanto, desde o tombamento (10). Em 1988, considerando a inserção, pela municipalidade, de construções precárias e irregulares no Parque e as numerosas propostas de intervenção, o Conselho Consultivo da SPHAN delibera que todos os projetos referentes ao Parque do Flamengo sejam submetidos ao Conselho (11). Na mesma Reunião, o Conselheiro-Relator Gilberto Ferrez apresenta ao Conselho seu Parecer aprovado por unanimidade, referente a quatro propostas de intervenção, e explicita, para não deixar margem a qualquer dúvida, a condição estabelecida por ocasião do próprio ato do tombamento: salvo as construções previstas, toda a área é non aedificandi (12). Tal condição não edificável do Parque é lembrada dez anos mais tarde pelo Conselheiro Italo Campofiorito, em declaração de voto, de acolhida unânime, contrário ao anteprojeto de revitalização da marina da Glória então apresentado ao IPHAN (versão 1997) (13).

Criado pelo Grupo de Trabalho para a Urbanização do Aterro (1961-1965) e com execução pela Sursan, o Parque contou com colaborações de peso (14). O Grupo era presidido pela intelectual Maria Carlota de Macedo Soares e chefiado pelo arquiteto e urbanista Affonso Reidy (que já projetara o MAM), autor do traçado e de vários projetos arquitetônicos, e dentre os profissionais contratados destacam-se o arquiteto-paisagista Roberto Burle Marx na criação dos jardins, Alexandre Wollner na programação visual e Richard Kelly na iluminação ― o último, mandado trazer dos Estados Unidos por Lota, que também solicitou a vinda, de lá, da premiada educadora brasileira Ethel Bauzer Medeiros para integrar o Grupo; afinal, a intenção era criar um parque de caráter recreativo e educacional, com profissionais prestando orientação pedagógica às crianças nos pavilhões dos playgrounds e organizando brincadeiras e roteiros educativos (15). O programa abarca ARTES (MAM), CIVISMO (Monumento aos Pracinhas), NATUREZA (Jardins, Pavilhão de Flores, Aquário, Aviário, Enseada, Praia), LITERATURA (Biblioteca), ESPORTES (Playgrounds, Campos de peladas, Quadras, Clubes Náuticos) e RECREAÇÃO (Brinquedoteca, Aldeota, Pavilhão Japonês, Coreto, Pista de Danças, Teatro de Fantoches e Marionetes, Pistas de Aeromodelismo, Tanque de Modelismo Naval, Área de Piquenique, Praia). Estimula-se a caminhada a pé, além dos passeios de trenzinho (pistas do trenzinho) e em barcos a vela que podem atracar (píeres na enseada). São previstos dois restaurantes, os únicos permitidos no Parque: um no MAM (interior do edifício), outro próximo à praia na altura do Morro da Viúva (item 40, erguido nos anos 1970 sob projeto de Marcos Konder Netto).

Morros de Niterói e entrada da barra, foto tomada da praia do Flamengo, 2008
Foto Claudia Girão

A criação do Monumento a Estácio de Sá pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa ― que demorou quase uma década para atender ao convite feito por Lacerda de erguer ali um monumento para o quarto centenário ― assinalou simbólica e materialmente a indissociável relação do Parque com o panorama da fundação do Rio: o obelisco é uma seta apontando para a Praia de Fora, onde Estácio fundou a cidade de São Sebastião que viria a ter uma flecha em seu brasão, referência ao padroeiro da cidade, morto a flechadas assim como o seria o próprio Estácio.

Pão de Açúcar, foto tomada das proximidades do Monumento a Estácio, 2006
Foto Claudia Girão

O trevo de quatro folhas, ícone dos 400 anos do Rio criado por Aloísio Magalhães, foi materialmente desenhado no trevo viário construído no trecho inicial do Parque, logo após a praça Senador Salgado Filho, cujo projeto paisagístico, como os jardins de Botafogo, era também de Burle Marx. A intenção do paisagista, ao criar jardins contínuos entre o Aeroporto Santos Dumont e o Morro do Pasmado, também era propiciar um extenso jardim aberto para o panorama da Baía e dos morros. Ampliava-se, assim, o conceito da avenida Beira-mar do início do século 20, de emoldurar sem obstáculos um panorama que mesmo o remodelador Pereira Passos soube respeitar.

Conjunto do Pão de Açúcar, entrada da barra e Baía da Guanabara, foto tomada trecho inicial do Parque, 2005
Foto Claudia Girão

Não bastasse sua importância, a priori, como espaço público em consonância com o panorama de fundação do Rio, o Parque foi concebido segundo um planejamento urbano notável e ainda hoje é o maior parque à beira-mar do mundo. Há, ali, lugar para o silêncio: contemplação, inspiração criativa, o simplesmente estar em meio à paisagem; há lugar para atividades lúdicas de recreação e lazer e há lugar para a finalidade educativa pensada originariamente. Tudo isto se rege por um fio condutor coeso, que lhe confere unidade. Sob o aspecto funcional, tais atividades, embora diferenciadas, inter-relacionam-se urbanisticamente mediante meticuloso estudo de massas arquitetônicas e ajardinadas; sob o aspecto formal, integram-se, em um mesmo vocabulário plástico, traçados, construções, jardins e projetos complementares.

Vegetação variada, 2008
Foto Claudia Girão

Abricó-de-macaco, espécie recorrente como as várias palmeiras, 2006
Foto Claudia Girão

Além da presença de elementos tipicamente brasileiros, como avarandados e pátios, consolidando sem arcaísmos um sentido de continuidade, referências formais a mar, montanha e floresta materializam de modo admirável o conceito de harmonia com a identidade paisagística e cultural carioca. Neste sentido, há, nos traçados, alusões biomórficas a formas da natureza e paisagens relacionadas à cidade, sobretudo relevo, ondas do mar, flora, fauna e figuras humanas, além das proto-estruturas amebóides – conhecidas como espontaninho – características do modernismo. Basta observar, do alto, o Trevo de quatro folhas com caule, ramos e raízes formados pelas vias expressas e suas transversais em toda a extensão do Parque, ou divisar a forma estrelada do Coreto, a estrutura essencial de uma concha na Pista de danças e de um caracol na Brinquedoteca, o ‘tubo’ das ondas na cobertura do Pavilhão Japonês e a forma serpeante do jardim alongado conhecido como ‘minhocão’. Ou perceber, ainda, o desenho ondulado da calçada de Copacabana nos caminhos e canteiros dos jardins formais do MAM e do Restaurante; a imagem refletida do Pão de Açúcar no contorno em curvatura do Parque circundando o morro da Viúva; a alusão a outras formas no traçado de jardins e caminhos em pedra portuguesa e saibro e a própria ondulação da linha costeira da Baía de Guanabara que se enrosca como Enseada da Glória formando outros desenhos associados ao mar – caracol marinho, peixe, onda, barco – e é toda marginada por praias de areias e pedras e por uma praia de banhos, a praia do Flamengo. As alusões biomórficas estendem-se aos altos postes de iluminação que, à noite, proporcionam o efeito de luar e durante o dia têm sua sombra projetada no solo mostrando sua forma de flor.

Maquetes do Coreto, da Pista de Danças, do Pavilhão do Playground Flamengo (Pavilhão Japonês), do Pavilhão do Playground Morro da Viúva (Brinquedoteca) e do Teatro de Marionetes
Fotos divulgação [Módulo n. 37, 1964]

Victor Vasarely, fundador da Op-Art, também fez essa associação de morros cariocas, calçada de Copacabana e Baía de Guanabara como imagem da Amérique du Sud na pintura (1946) de um cartaz publicitário da Air France que se tornou famoso (16).

Não se pode deixar de perceber a intenção plástica de se produzir efeito pictórico tridimensional na composição deste parque urbano em meio à paisagem marcante e pitoresca da Guanabara, tema de inúmeras representações depois de abertos os portos da cidade (1808). Salvaguardá-lo tem sido uma das preocupações ao longo dos anos, pois sempre surgiram propostas de inserção de construções não previstas e de ampliação de áreas e de atividades constantes do programa, mediante a apropriação de jardins – canteiros, largos, caminhos e demais espaços ao ar livre. Como apontou Lota, o Parque era (e ainda é) uma obra de caráter social pouco compreendida pelas administrações públicas e por particulares.

Coreto e Pista de Danças na década de 1960 / Pavilhão Japonês antes de 1967
Fotos divulgação [FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Affonso Eduardo Reidy / BRUAND, Yves. Arquitetura moderna]

Não se trata somente de preservar a composição dos jardins, a criação de áreas de luz e sombra intencionais, a circulação de ventos na costa ou a função vital e espiritual das chamadas áreas naturais, cuja importância é hoje reconhecida pelos organismos internacionais e nacionais de preservação e pela sociedade brasileira. Os grandes espaços abertos e descobertos são o lugar da organização de atividades, definindo roteiros para percursos e percepção da paisagem. Constituem áreas de convivência coletiva e uso compartilhado integrantes do Plano original. De modo geral, os espaços urbanos abertos nas cidades são essenciais para a percepção da tridimensionalidade da paisagem que integram. No Plano do Parque do Flamengo, os grandes espaços abertos constituem elementos ainda mais importantes, pois além de sua inter-relação com as formas arquitetônicas e vegetais projetadas, ‘abrem’ para o espelho d’água da Baía e Pão de Açúcar ao fundo, sendo este panorama a referência primordial na disposição de planos e volumes arquiteturais e ajardinados.

Canteiro de jardim em ondas do MAM com o Monumento aos Pracinhas ao fundo, 1968-69 / Jardins com destaque para o canteiro conhecido como ‘minhocão’ na década de 1960 / Trevo dos Estudantes em 1967, em fase final de construção
Fotos Carmen Szabas / autor não identificado / Gilberto Paixão

Tal conceito é uma das bases fundamentais da arquitetura moderna brasileira. Gropius já observou que “o espaço limitado, seja ele aberto ou fechado, é o meio de plasmação da arquitetura. A relação harmônica entre os volumes da construção e os espaços que os limitam ou encerram é essencial para o efeito arquitetônico” e por este motivo “os espaços abertos entre as construções, como ruas, praças e quintais são tão significativos quanto o próprio volume da construção” (17). Os espaços abertos são essenciais para a percepção da tridimensionalidade da paisagem que integram.

Le Corbusier, que, em 1962, passou pelo Rio pela segunda vez (conta Italo Campofiorito, que esteve com ele), era a principal influência de Reidy e autor de conhecidos desenhos sobre a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar; ele destacava a importância da natureza e da percepção tridimensional em uma paisagem constituída “por vegetação ao alcance imediato, por extensões planas ou acidentadas, por horizontes longínquos ou próximos” (18).

Pavimentação de mosaico em ondas junto ao MAM, Brinquedoteca, Teatro de Marionetes em 2008, e postes da iluminação original, em 2006
Fotos Claudia Girão

Nas idas e vindas ao longo do Parque, o Pão de Açúcar, sobretudo, imprime uma atmosfera especial à dinâmica de trajetos e vai-se impondo na paisagem à medida que nos aproximamos da enseada de Botafogo, configurando-se ali, do início ao fim, algumas das mais aprazíveis vistas do Rio de Janeiro, cuja candidatura ao título de Patrimônio da Humanidade, pela Unesco incluindo-se o Parque – é fato já amplamente divulgado.

A escala urbano-paisagística do Parque do Flamengo tem em pavilhões como o Pavilhão Japonês e a Brinquedoteca, de autoria de Reidy, seu melhor exemplo quanto ao volume e implantação. São edificações simples e sofisticadas, onde a pureza do concreto se abre em vazados para propiciar a visibilidade e a integração com a paisagem circundante, com efeito de grande leveza. Há um perfeito equilíbrio na relação entre a escala humana e a paisagem. O partido adotado revela, por si só, a coerência formal com o programa firmado: trata-se de um Parque.

Todas as construções do Parque do Flamengo são térreas e as dimensões dos pavilhões previstos são discretas, conforme indicam as representações em escala na Planta Geral (1965). A altura é maior, certamente, no Museu de Arte Moderna (1954-58) e no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (1957-1960), que já haviam sido erguidos na área aterrada. A escala monumental destes dois edifícios de concepção moderna, que se integrariam ao Plano Geral, não seria seguida, intencionalmente, nas construções projetadas especialmente para o Parque.

Os jardins criados por Roberto Burle Marx no Parque do Flamengo são produtos de arte, associando formas vegetais, de florescimento em estações distintas e de variada textura e coloração, a traçados de caminhos, calçadas, composições em seixos e desenhos geométricos em pedras portuguesas. A disposição de volumes, em sua concepção original, oferece recantos mas prioriza, notadamente, a visão desimpedida da paisagem. Na escala urbano-paisagística estabelecida pelo Grupo de Trabalho, a arquitetura e os jardins confluem como valores em perfeita harmonia, formando um todo admirável.

Michel Racine, aliás, já observou: “O mais surpreendente no modernismo brasileiro é que é um movimento-modernista-com-jardim”... (19)

Inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN, o Parque do Flamengo tem hoje seu valor cultural multiplicado pela própria percepção do sentido desta paisagem material da cidade, tendo em vista seu significado como paisagem cultural e referência etnográfica carioca, espaço coletivo simbólico de sua origem, desenvolvimento e permanência.

As seguintes premissas essenciais, em síntese, norteiam a preservação do Parque do Flamengo a partir do tombamento (20):

  • O tombamento tem por objetivo maior a proteção da paisagem do Parque e das inter-relações simbólicas e visuais com o panorama da Baía de Guanabara e conjuntos de morros cujas vistas dele se descortinam.
  • O tombamento do Parque do Flamengo inclui sua enseada e também a faixa costeira da Baía de Guanabara, abrangida pelo Parque até 100 metros da costa, em toda sua extensão de praias de areias e pedras.
  • À exceção dos itens constantes do Plano original do Parque, não podem ser inseridos, inclusive em suas áreas ajardinadas, quaisquer construções e agenciamentos (pavilhões de diversões, restaurantes, cinemas e qualquer edificação), ou monumentos e instalações de arte (bustos de figuras nacionais, marcos comemorativos, peças decorativas, obras de arte etc.) – inserção que tendo a justificá-la o interesse prático ou cívico das iniciativas, poderia sacrificar irremediavelmente a beleza do conjunto.
  • Os pavilhões previstos no Plano original, erguidos ou por erguer, já representam o máximo que a área do Parque comporta e podem justificar-se menos pela sua finalidade prática do que em razão de conferirem escala urbanística ao conjunto, mas mesmo esta será sacrificada se não houver contenção na distribuição dos valores que a determinaram.
  • Qualquer construção deve ser examinada sob este aspecto da unidade com o todo e não se destacar do conjunto nem desvirtuá-lo.
  • A altura de qualquer construção deve ser considerada em relação ao nível do mar e são vedadas movimentações de terras.
  • Assim como as edificações originais, jardins, enseada, praias e demais espaços abertos são partes integrantes do Projeto do Parque do Flamengo e possuem funções próprias no conjunto, sendo vedadas quaisquer construções, agenciamentos e ações que os destruam, mutilem ou alterem seus traçados e demais características.

Salvo as construções previstas no Projeto original, portanto, toda a área do Parque do Flamengo é non aedificandi.

notas

NE
Ver também a segunda parte do artigo: GIRÃO, Claudia. Parque do Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil: o caso da marina – parte 2. Arquitextos, São Paulo, n. 12.136, Vitruvius, set. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.136/4048>. 

1
GULLAR, Ferreira. A pintura posta em questão. In: Revista Módulo nº 35/36. Rio de Janeiro: Ed. Módulo, out./dez.1963.

2
VIANNA, Hélio. O Rio de Janeiro de 1952 a 1964, jun. 1964. In: CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro. vol.2. 3ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. Apêndice 1, edição do 4º centenário.

3
SALVADOR, Vicente do. Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1889 [escr. ant.1627].

4
FERREZ, Gilberto. Parecer de tombamento do Pão de Açúcar, 14.6.1973. In: Processo n° 869-T-73, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro.

5
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981 [ed.franc. 1971].

6
LACERDA, Carlos, Ofício GGG 1014, ao diretor da DPHAN, pedindo o tombamento do Parque, 27.10.1964 ; ANDRADE, Rodrigo M. F. de, Ofício 1265 à presidente do GT do Parque do Flamengo, solicitando o projeto geral e pormenores, 10.11.1964 ; MACEDO SOARES, Maria Carlota C. de, Carta ao diretor da DPHAN, 3.12.1964. In: Processo n° 748-T-64, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro.

7
Inscrição nº 39 do Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, 28.7.1965, IPHAN.

8
A Planta Geral foi fornecida à DPHAN pelo Grupo de Trabalho entre janeiro e abril 1965, após a ida, ao local, de Paulo Santos, que informa em seu Parecer ter pedido, na ocasião, cópia reduzida da prancha original, “para com facilidade figurar no processo”. Esta Planta Geral – onde há uma etiqueta com o trevo-ícone do quarto centenário e o título “PARQUE DO FLAMENGO” – recebeu no IPHAN a data de “20.IV.1965”, rubricada em caneta azul pelo secretário ad hoc Alfredo T. Rusins e pelo diretor Rodrigo M. F. de Andrade, por ocasião da numeração dos autos do processo, após deliberação do Conselho Consultivo favorável ao tombamento. A mesma data e as mesmas rubricas foram apostas na relação de 46 itens do programa do Parque, enumerados por Paulo Santos. A Planta Geral é a fl.32, e a relação de 46 itens, as fls. 33-34 do Processo nº 748-T-64.

9
Também foram reunidas ao processo cópias de artigos sobre o Parque de duas revistas: Módulo nº 37 e Arquitetura nº 29, respectivamente de agosto e novembro de 1964; as representações gráficas ali reproduzidas ainda estão incompletas.

10
SANTOS, Paulo Ferreira. Parecer de tombamento do Parque do Flamengo (com relação de 46 itens) e documentos anexos (Plano original e 10 desenhos), 7.4.1965. In: Processo n° 748-T-64, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro.

11
Ata e transcrição fiel da 134ª Reunião do Conselho Consultivo. Rio de Janeiro, 19.8.1988.

12
FERREZ, Gilberto. Parecer sobre projetos no Parque do Flamengo, 19.8.1988. In: Processo n° 748-T-64.

13
Ata da 13ª Reunião do Conselho Consultivo. Rio de Janeiro, 14.3.1998.

14
Enaldo Cravo Peixoto arrola todo o Grupo (1964): “Lota Macedo Soares (presidente), Jorge M. Moreira (arquiteto), Affonso Eduardo Reidy (arquiteto), Bertha C. Leitchic (engenheira), Hélio Mamede (arquiteto), Luiz Emygdio de Mello Filho (botânico), Hélio Modesto (assessor de urbanismo), Ethel Bauzer Medeiros (assessor de educação), Magú Costa Ribeiro (assessor de botânica), Flávio de Britto Pereira (assessor de botânica), Alexandre Wollner (programador visual), Carlos Werneck de Carvalho (arquiteto), Cláudio Marinho de A. Cavalcanti (arquiteto), Maria Hanna Siedlikowski (arquiteta), Celso Paciello da Motta (arquiteto), Juan Derlis Scarpellini Ortega (arquiteto), Sérgio Rodrigues e Silva (desenhista), Mário Ferreira Sophia (desenhista), Fernanda Abrantes Pinheiro (secretária) e o Escritório Técnico de Roberto Burle Marx”. PEIXOTO, Enaldo Cravo. Urbanização do Parque do Flamengo. Módulo, Rio de Janeiro, n. 37, ago.1964. Reidy e Mamede também eram do Departamento de Urbanismo do Distrito Federal/DUR.

15
MEDEIROS, Ethel Bauzer. Um milhão de metros quadrados para recreação pública. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, n. 29, IAB, nov.1964.

16
O desenho de ondas via-se também na calçada da avenida Beira-mar, suprimida com o novo aterro iniciado para a construção de quatro vias expressas, reduzidas a duas para propiciar a criação do Parque. Hoje se atribui a inspiração das ondas em mosaico português preto-e-branco à remanescente calçada de Copacabana, junto à faixa de areia. Depois do novo aterro na praia de Copacabana, foram criados, por Burle Marx, a calçada geométrica e os jardins (1970).

17
GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. 3ªed. São Paulo, Perspectiva, 1977.

18
CORBUSIER, Le. Maneira de pensar o urbanismo. Portugal/Lisboa, Europa-América, 1977.

19
RACINE, Michel. Roberto Burle Marx, o elo que faltava. In: LEENHARDT, Jacques (org.). Nos jardins de Burle Marx. de 1ªed., 2ªtir. São Paulo, Perspectiva, 2000.

20
Com base nos pareceres sobre o tombamento do Parque pelo Iphan, em especial o de Paulo Santos.

sobre a autora

Claudia Girão, arquiteta do Iphan.

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