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architexts ISSN 1809-6298

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português
Este artigo apresenta uma perspectiva científica, com base histórica e arqueológica, sobre a história das maquetes e sobre os recursos tridimensionais de representação arquitetônica no Egito Antigo

english
This paper presents a scientific approach, with historical and archaeological bases, to the history of architectural models and three-dimensional resources for architectural representation in Ancient Egypt

español
Este artículo presenta una perspectiva científica, con base histórica y arqueológica, acerca de la historia de las maquetas y de los recursos tridimensionales de representación arquitectónica en Egipto Antiguo


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ROZESTRATEN, Artur Simões. Aspectos da história das maquetes e modelos tridimensionais de arquitetura no Egito Antigo. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 137.00, Vitruvius, out. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.137/4037>.

Quais são as origens das maquetes de arquiteto?

O que se conhece sobre a história da modelagem tridimensional na arquitetura da Antiguidade?

Qual o percurso histórico das maquetes e modelos tridimensionais?

Este artigo pretende investigar essas questões de forma científica, com base em evidências materiais – objetos e registros textuais datados –, interpretadas como fontes, documentos indispensáveis para a construção de uma perspectiva histórica sobre os modelos arquitetônicos e as maquetes de arquiteto no Egito antigo.

Quando se trata das origens e do papel de maquetes e modelos tridimensionais na História da arquitetura, especialmente na Antiguidade, são comuns as fantasias, as especulações e os anacronismos, que geralmente transpõem formas modernas do trabalho de arquitetos ao passado e às culturas construtivas tradicionais.

Um exemplo desse tipo de anacronismo foi registrado no cinema no filme “Land of the Pharaohs” (Terra dos Faraós, 1955) de Howard Hawks, que apresenta arquitetos no Egito antigo valendo-se de maquetes para apresentar seus projetos ao Faraó (1). Trata-se de um épico hollywoodiano no qual a imaginação cinematográfica se sobrepôs à veracidade de aspectos históricos acerca das formas de trabalho dos antigos arquitetos egípcios. Este filme é um clássico das grandes produção cinematográficas norte-americanas dos anos 50, bastante exibido na televisão, que merece ser visto (ou revisto) com atenção voltada à caracterização do trabalhos dos arquitetos e ao papel dos modelos tridimensionais.

Para os arquitetos contemporâneos a monumentalidade e a beleza da arquitetura antiga podem parecer inconcebíveis sem um processo de projeto imaginativo e experimental, envolvendo maquetes e conjuntos completos de desenhos em escala reduzida (plantas, cortes e elevações). Mas quais são as evidências arqueológicas do uso de maquetes na prática dos arquitetos no mundo antigo?

Frente à escassez de documentos que comprovem o uso de maquetes de arquiteto na Antiguidade costuma-se formular o argumento a silentio de que essas maquetes existiram sim, mas não deixaram vestígios, pois provavelmente foram feitas com materiais perecíveis.

Para reforçar este argumento, em alguns casos contemporâneos, modelos tridimensionais continuam sendo feitos assim. Como exemplo há o caso descrito pela arquiteta Cristina Sá entre os indíos Karajás da aldeia Santa Isabel do Morro, na ilha do Bananal em Tocantins. Para mostrar como é a casa tradicional da estação chuvosa, o chefe Arutana escolhe uns gravetos e, de joelhos, constrói no chão uma estrutura em miniatura que representa esta arquitetura (2). A partir deste caso podemos afirmar extensivamente que sempre existiram maquetes, desde as sociedades neolíticas? É razoável transformar a ausência de prova material em uma suposta prova científica a favor de uma hipótese plausível? Como lidar com estas questões?

Um aspecto necessário a se considerar neste âmbito é o entendimento do propósito da confeção de modelos tridimensionais, e a imprescindibilidade ou não de sua fatura para a construção da arquitetura. Em suma, faz-se necessária uma compreensão da natureza projetual arquitetônica contextualizada. No caso, o “capitão” Arutana faz um modelo para mostrar aos pesquisadores como é a casa da estação chuvosa, que não está construída naquele momento de seca. O propósito é expositivo e representativo – torna presente em “modelo reduzido” (3) um objeto ausente –, mas esta modelagem não parece indispensável para que a arquitetura tradicional da casa se faça quando se anunciarem as chuvas. Afinal, as formas arquitetônicas e as técnicas construtivas das casas tradicionais são conhecidas pelo grupo indígena, e o projeto original tem origens mitológicas que se diluem no passado longínquo. A montagem das casas Karajá, da estação seca e chuvosa, se repete, é cíclica, convencional, e não envolve novas configurações espaciais nem novos materiais a cada vez.

Distintas do modelo reduzido do chefe Arutana, as maquetes que estão no foco deste estudo são aquelas indispensáveis para o enfrentamento de desafios espaciais e/ou construtivos, logo estão inseridas em um processo de conhecimento sistemático ou um processo projetual inventivo, experimental, especulativo, que avança amparado em problemas, dúvidas e possibilidades, sobre um território desconhecido.    

Para se construir uma história da modelagem arquitetônica é preciso refutar argumentos a silentio a princípio, e buscar apoio na materialidade dos documentos datados (objetos e textos) atualmente conhecidos entendimentos sobre as necessidades que envolveram a confecção de tais objetos. Há que se considerar que, se de um lado há a possibilidade de terem existido maquetes confeccionadas com materiais perecíveis que não deixaram vestígios, por outro lado, dentre os vestígios existentes, isto é, dentre os inúmeros objetos com formas arquitetônicas reduzidas que resistiram ao tempo, confecionados em terracota, pedra e madeira, raríssimos são aqueles que se caracterizam como maquetes de arquitetura, relacionadas ao projeto de arquiteturas futuras ou ao conhecimento da arquitetura existente. O que leva a outra questão: se, eventualmente, havia uma prática de confecção de maquetes de arquitetura difundida nas culturas antigas porque ela não se evidencia materialmente neste acervo de objetos? Porque restaram praticamente apenas modelos de uso votivo, ritualístico, simbólico? O que excluiu os modelos utilitários, as maquetes de arquiteto, os modelos de estudo, de caráter técnico- experimental desta seleção feita pelo tempo?  

Para avançar neste território é fundamental ampliar o alcance desta indagação para além dos objetos isolados, contextualizando-os e posicionando-os no âmbito da história da arquietura, da história da técnica e da tecnologia, buscando assim um entendimento mais abrangente que considere, para cada cultura e também universalmente, as práticas construtivas, as interações entre projeto e obra, e os recursos e necessidades de representação da arquitetura, em especial de modelagem tridimensional desta arquitetura.

Neste artigo, as questões apresentadas se contextualizam no Egito antigo, civilização que sintetizou a tradição construtiva mesopotâmica e próximo-oriental, que acrescentou a esta suas contribuições originais como bases da arquitetura monumental ocidental, e que veio a fundamentar técnica e plasticamente as culturas arquitetônicas minôicas, micênicas e gregas. Amplamente difundidos a partir da campanha napoleônica no Egito, em fins do séc. XVIII (1798-1801), o Nilo, as pirâmides, obeliscos e esfinges, os templos e suas divindades, múmias, tesouros e faraós encantaram e estimularam o imaginário ocidental, assim como estimularam gerações inúmeros arquitetos, tão heterogêneos quanto  Boulée (1728-1799), L’Enfant (1754-1825), Schinkel (1781-1841), Albert Speer (1905-1981) e I.M. Pei. O imaginário contemporâneo sobre o suposto uso de maquetes por parte dos arquitetos egípcios enraíza-se nesta mesma fonte, desdobrando-se do contato frontal e conflituoso entre modernidade e tradição.   

Escavações Arqueológicas

No final do século XIX, o arqueólogo inglês William Matthew Flinders Petrie encontrou mais de uma centena de objetos cerâmicos em sepulturas nos cemitérios da região do Médio Nilo. Alguns desses objetos funerários com formas arquitetônicas em escala reduzida, denominados bandejas de oferendas e “Soul Houses” (“Casas da Alma”), foram catalogados, estudados e publicados por Petrie (4) no início do séc.XX.

“Casa da Alma” em terracota com pátio de oferendas e canal para escoamento de libações, Império Médio, c. 1900 a.C., 37 x 40,6 cm de base, e 17,5 cm de altura
© Trustees of The British Museum [The British Museum, Londres, Inglaterra]

A partir da divulgação junto à comunidade científica deste conjunto de objetos – organizados em tipologias e interpretados quanto a seus significados simbólicos e suas prováveis funções ritualísticas – arqueólogos, pesquisadores, colecionadores e curadores se interessaram em conhecer melhor as peculiaridades dos modelos arquitetônicos do Egito Antigo.

Desde então os modelos arquitetônicos egípcios compõem coleções específicas nos acervos dos museus e têm sido estudados por diversos pesquisadores, dentre os quais se destacam: Badawy (5), Winlock (6), Niwinski (7), Staldemann (8), Tooley (9), Adam (10), Leclère (11), Traunecker (12) e Laroche-Traunecker (13).

O conjunto de modelos arquitetônicos egípcios atualmente conhecido compreende centenas de objetos de pequenas dimensões confeccionados em terracota, pedra e madeira, como por exemplo as bandejas de oferendas, as “Casas da Alma”, os modelos “animados”, oratórios tipo naískoi, e alguns exemplares sui-generis como os modelos do Rei Sety I e de Dashour.

O contexto arqueológico funerário é característico da grande maioria destes modelos egípcios. As bandejas de oferendas e suas variações, como as próprias “Casas da Alma”, eram utilizados como suporte para libações em ritos funerários, e foram encontradas em sepulturas comuns, tipo poço, dispostas ao lado do corpo ou por sobre o corpo.

Os modelos “animados”, feitos em madeira pintada, com detalhes minuciosos, foram encontrados em túmulos de pessoas de posse, altos funcionários como o chanceler Meketre, e são interpretados como oferendas votivas. Nesses modelos é comum existirem representações de grupos de figuras humanas exercendo alguma atividade cotidiana como o trabalho em silos ou em oficinas.

Modelo “animado” em madeira policromada de um silo com carregadores e escribas, Tumba de Meketre, Império Médio, c. 1975 a.C., c.15,5 cm de altura. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA
Foto William Cromar [Creative Commons]

O principal exemplo de oferenda arquitetônica são as “Casas da Alma”, feitas em terracota ou pedra calcárea que, conforme a crença egípcia de que a vida após a morte seguiria o mesmo padrão desta vida, seriam os “substitutos” das coisas desse mundo no outro mundo. Acreditava-se que, através do uso de uma “mágica” adequada, a ordem natural poderia ser subvertida: o modelo reduzido de uma “Casa” poderia ser transformado em uma “Casa” real, assim como figuras de pessoas poderiam ser transformadas em pessoas de carne e osso (14).

Mas além desses modelos arquitetônicos ritualísticos e funerários o que dizer sobre os vestígios materiais de modelos e “maquetes de arquiteto” no Egito antigo?

Há enigmas e controvérsias sobre o assunto. Os estudos especializados mencionam apenas três casos que se aproximam de uma caracterização como modelo e “maquete de arquiteto”:

O primeiro é o modelo do Rei Sety I que, supostamente, representaria um templo em Heliópolis, construído em escala reduzida com elementos típicos da arquitetura egípcia do Novo Império.

O segundo modelo também é em escala reduzida, feito de pedra, proveniente de Dashour, ainda pouco divulgado e pouco estudado, que certos autores, como Jean-Pierre Adam, acreditam ser uma “maquete de arquiteto”, mais especificamente uma maquete de apresentação de projeto de uma câmara mortuária.

O terceiro é o provável modelo para a construção da galeria de entrada da pirâmide de Quéops (15). Nesse caso, trata-se de um modelo de grandes dimensões, com mais de 25 metros de extensão linear e mais de 10 metros de profundidade, construído em escala real, 1:1.

O Modelo do Rei Sety I

O Brooklyn Museum em Nova Iorque possui em seu acervo a base de um modelo arquitetônico egípcio, com cerca de 3.300 anos, que é um dos maiores e mais bem preservados da Antiguidade (16). Trata-se de uma peça de quartzito, grande e pesada, encontrada em Tell el Yahudiya, na região do Delta, próxima ao Cairo, no último quartel do século XIX, conhecida como o modelo do Rei Sety I.

Base do Modelo do Rei Sety I em quartzito, procedente de Tell el Yahudiya, XIX Dinastia, 1290-1279 a.C., 111,8 x 86,4 cm de base, e 24,1 cm de altura, peso 464,9kg. Brooklyn Museum, Nova York, EUA
Charles Edwin Wilbour Fund [Creative Commons]

A partir das inscrições existentes nas laterais da base do modelo, e de exemplos da arquitetura egípcia da época, o egiptólogo Alexander Badawy conduziu um estudo sobre o provável uso deste modelo, que amparou a reconstituição do modelo feita por Albert Fehrenbacher no início da década de 1970 (17). A arquitetura do modelo corresponderia às formas típicas dos templos do Novo Império, como o de Luxor, e estaria construída em escala aproximada de 1: 21 com relação à realidade. Embora haja suposições de que este objeto representaria a entrada principal de um suposto templo consagrado a divindades solares construído por Sety I em Heliópolis, até o momento não foram encontrados vestígios arqueológicos desse templo que permitissem confirmar tal relação.

Reconstituição do Modelo do Rei Sety I amparada por estudos de Alexander Badawy e conduzida por Albert Fehrenbacher
Charles Edwin Wilbour Fund, 66.228 [Creative Commons]

Seria esse modelo uma “maquete de arquiteto”?

É pouco provável. Badawy interpreta o modelo como uma representação pars pro toto de um suposto templo a divindades solares, que teria sido usado como objeto cerimonial em ritos de fundação ou inauguração de templos.

Os ritos de fundação egípcios envolviam diversas etapas: marcação do terreno, corte e purificação da corda usada como referência de medida, modelagem do tijolo inaugural, etc (18). Uma etapa fundamental das cerimônias de fundação egípcias, geralmente a última, consistia em “Apresentar a Casa ao seu Senhor (Deus)”. Em um relevo de Dendera que registra essa etapa cerimonial de “apresentação” a casa é representada por um desenho simplificado de um portal em vista frontal que pode ser um símbolo para modelos tridimensionais usados em ritos de fundação.     

É provável que o modelo do Rei Sety tenha sido um objeto utilizado na “apresentação” durante os ritos de fundação de um templo. Três aspectos atestam seu uso ritualístico, e colocam em xeque a hipótese de que se trata de uma “maquete de arquiteto”:

  • A ênfase artística dada às representações do rei Sety I no ato de ofertar. As laterais da base da maquete possuem 8 representações em baixo-relevo de imagens do Rei Sety, praticamente deitado, ofertando bandejas com objetos às três formas da divindade solar Khepri (sol nascente) Re-Horakhty (sol a pino) Atum (sol poente) (19).
  • O fato de ser uma peça maciça de pedra, de grandes dimensões e peso exagerado.
  • A variedade e a riqueza de materiais usados na feitura do modelo. O quartzito da base, por exemplo, é uma pedra rara dificilmente utilizada na arquitetura de templos da época. As inscrições na base do modelo, aliás, fazem referência a outros materiais nobres que teriam sido usados para os demais elementos arquitetônicos da peça, e que não eram utilizados nas construções da época.

Além disso, há que se considerar que até o momento não se conhece nenhum templo egípcio que corresponda à arquitetura do modelo, o que abre dúvidas se o modelo correspondeu em algum momento a um templo real. Afinal, a arquitetura representada no modelo pode ser interpretada como um esquema tipo de templo ideal, genérico, simbólico, como ocorre nas representações gráficas do tipo Seh encontradas em Dendera.

Relevo de Rito de Fundação, Dendera, parede externa leste. Na base do relevo, aos pés de Ísis e Osíris, a forma esquemática da fachada ou elevação de um templo, Seh
Foto Bernard Gagnon [Wikimedia commons]

Em uma das incrições existentes na base do modelo traduzida por Badawy há uma referência ao termo sekhem que significa “imagem” ou “escultura” e que pode ser o termo específico egípcio para designar esse tipo de modelo arquitetônico ritualístico:

“Ele procedeu às fundações para seu pai, Ra Atum Khepry, dedicando-lhe um majestoso modelo (sekhem) à semelhança do horizonte dos céus...” (20) (Tradução do autor).

O próprio modelo arquitetônico pode ser interpretado como uma oferenda. Nos relevos frontais da base do modelo o Rei Sety I aparece de joelhos ofertando, representado como o “doador” deste templo, o Rei-Construtor que oferece aos deuses uma arquitetura, um templo, uma “Casa”. É provável que essa seja uma das mais antigas representações conhecidas do “doador” de uma arquitetura, imagem que se tornaria bastante comum na arte bizantina e medieval desdobrada na iconografia do portador do modelo arquitetônico (21).

Detalhe dos relevos do Rei Sety I ofertando sobre o trecho frontal da base do modelo
Charles Edwin Wilbour Fund, 66.228 [Creative Commons]

O Modelo de Dashour

Este modelo de pedra, em escala reduzida, foi encontrado por Rainer Stadelmann (22) no conjunto funerário do templo do vale de Amenemhat III, XII Dinastia, em Dashour, e representaria as câmaras funerárias da pirâmide de Hawara, ao sul de Meidoum, túmulo do faraó Amenemhat III, conforme Jean-Pierre Adam (23). Tal suposição, contudo, não pôde ser comprovada já que os desenhos referentes às câmaras funerárias da pirâmide de Hawara – a que se teve acesso ao longo dos estudos conduzidos sobre o tema – são pouco detalhados e não constituem uma base confiável para contestar tal hipótese. A iconografia a que se teve acesso se resume a uma imagem fotográfica (24) e um único desenho em perspectiva do modelo. No momento ainda não há elementos suficientes para precisar o uso social do modelo de Dashour, entretanto seu contexto funerário dificulta uma caracterização como “maquete de arquiteto”.

A “Passagem de teste” de Gizé

Em 1883, Flinders Petrie, escavando a cerca de 85m da base da pirâmide de Quéops, percebeu a existência de duas galerias subterrâneas em rampa, alinhadas, que se encontravam a cerca de 5 metros de profundidade (25). No ponto de encontro havia uma terceira passagem que descia perpendicular ao plano do solo, como um poço. A partir do ponto de encontro das galerias apenas uma delas prosseguia aprofundando-se, com inclinação constante, cerca de 10 metros abaixo do nível do solo.

Desenho em corte com figuras indicando uma escala aproximada da “Passagem de Teste de Gizé”, mostrando os dois corredores inclinados em rampa, um túnel de acesso vertical no ponto de encontro, e a continuação do corredor à direita em direção à câmara mort
Desenho de Flinders Petrie com inserção de escalas humanas [Creative Commons]

Concluído o levantamento arquitetônico minucioso dessas galerias foram compostos conjuntos de desenhos (plantas e cortes) em escala que Petrie comparou aos desenhos dos acessos, galerias e câmaras da Grande Pirâmide de Quéops. Na análise dos cortes transversais, essa comparação revelou uma enorme semelhança entre as duas galerias escavadas no solo e as galerias que partem da entrada principal da pirâmide, uma ascendente em direção à grande galeria e a outra descendente em direção à câmara subterrânea. A partir dessa constatação, Petrie interpretou o conjunto de galerias subterrâneas como um modelo em escala real que teria servido de teste ou ensaio à construção do acesso principal da pirâmide de Quéops e as designou como “trial passages” (passagens de teste).

A hipótese de Petrie é de que o arquiteto teria construído essas galerias experimentais como um teste construtivo dos acessos, e também como referência tridimensional para a execução das galerias na pirâmide. Neste modelo em escala real, 1:1, os mestres de obras e operários poderiam facilmente verificar medidas, inclinações e transpô-las para a Grande Pirâmide. O trabalho com o modelo teria facilitado sobremaneira a comunicação dos conteúdos arquitetônicos a um grupo enorme de trabalhadores, o que dificilmente ocorreria se fossem utilizados desenhos.

Desenho em corte da Pirâmide de Gizé, sem escala, mostrando os dois corredores inclinados em rampa, um ascendente e outro descente, como na “Passagem de Teste”
Desenho de 1909, sem indicação de autoria, domínio público

Aceita esta interpretação de Petrie, o conjunto de galerias junto à base de Quéops seria o mais antigo modelo de arquiteto atualmente conhecido, com cerca de 4.500 anos. Cronologicamente, antecedendo supostas maquetes egípcias em escala reduzida, há um modelo subterrâneo, escavado no solo, em escala real.   

Considerações finais

Como se viu, no Egito antigo objetos com formas arquitetônicas em escala reduzida foram utilizados com várias funções:

  • Suportes de libação em ritos funerários, como as bandejas de oferendas e suas variações;
  • Oferendas votivas deixadas em túmulos, como as “Casas da Alma” e os modelos “animados”;
  • Oferendas em ritos de fundação, como o modelo do Rei Sety I.

Esses modelos estabeleciam com a arquitetura real da época uma relação artística, com grande liberdade de criação. Considerando-se os cânones e os rígidos padrões formais da arte egípcia antiga, a fantasia e a liberdade formal que podem ser percebidas nos modelos arquitetônicos egípcios são qualidades raras para a produção material da época. Por mais que os modelos não pretendessem um registro preciso da arquitetura da época, esses objetos constituem hoje uma rica base material que possibilita aos estudiosos estabelecer relações entre a sociedade, a arquitetura e a arte egípcia antiga.

O contexto arqueológico funerário, seus usos ritualísticos e as características formais desses objetos não permite, contudo, caracterizá-los rigorosamente como “maquetes de arquiteto”.  É improvável que esses objetos tenham sido confeccionados por arquitetos visando o conhecimento arquitetônico específico, espacial e construtivo, ou a representação de um projeto em elaboração. A “passagem de teste” da Pirâmide de Quéops, segundo a interpretação de Flinders Petrie, e a crítica de Jean-Pierre Adam, seria o único modelo de arquiteto egípcio atualmente conhecido.

Não se trata, entretanto, de um modelo em escala reduzida, uma maquete em senso estrito, mas sim de uma construção de teste em escala real. É um modelo construído no canteiro de obras, aparentemente sem nenhuma função simbólica e nem religiosa explícita. É um modelo prático, útil como referência construtiva, e que visava, aparentemente, o conhecimento arquitetônico – espacial e construtivo – e o domínio projetual de uma obra singular.

Não há registro de outros modelos de arquiteto egípcios nas referências bibliográficas específicas. Na iconografia egípcia, rica em representações de espaços arquitetônicos as representações plásticas de modelos reduzidos restringem-se a convenções gráficas do tipo Seh.

Quanto ao modelo de Dashour, somente um aprofundamento dos estudos relativos ao seu contexto arqueológico, suas características plásticas, e suas possíveis relações com a arquitetura da época poderá permitir averiguar a validade da hipótese de que se trata de uma “maquete de arquiteto”para a câmara funerária de Amenemhat III. 

Frente à profusão de modelos com formas arquitetônicas, não deixa de ser enigmática a inexistência de evidências materiais do uso de maquetes pelos arquitetos egípcios. Como esses arquitetos enfrentaram ao longo de séculos desafios monumentais?

Provavelmente valendo-se de “modelos de estudo” em escala natural e desenhos, estes sim em escala reduzida. Isto se considerarmos que a “passagem de teste” de Quéops não é um caso isolado excepcional, mas sim parte de um procedimento convencional de projeto e construção. Em um determinado trecho do mesmo filme de Howard Hawks “Terra dos Faraós”, o arquiteto Vashtar apresenta ao Faraó um engenhoso sistema de areia e vasos cerâmicos que possibilita o deslocamento de blocos de pedra, e faz esta apresentação valendo-se de um modelo de ensaio ou teste de grandes dimensões. Neste caso a fantasia cinematográfica de Hollywood aproximou-se de fato dos vestígios históricos atualmente conhecidos acerca da modelagem egípcia de apoio ao projeto arquitetônico.

Quanto aos desenhos, há várias evidências materiais de sua existência no Egito ao menos desde o Império Antigo, III Dinastia, época do legendário arquiteto Imhotep (c. 2.700 a.C.) (26). Instrumentos de desenho, como réguas e esquadros, também foram encontrados em escavações arqueológicas no Egito (27). Esses desenhos de arquitetura foram feitos em escala reduzida sobre pedra, madeira ou papiro, e geralmente conjugavam vistas em planta e elevação no mesmo plano. Raros são os desenhos em corte. Como as maquetes e modelos é que estão em foco aqui, a riqueza dos desenhos arquitetônicos egípcios extrapola o âmbito deste artigo, e merece um estudo específico.

Não deixa de ser intrigante que frágeis desenhos sobre papiro, datados em cerca de 1.500 a.C. tenham sobrevivido ao tempo, mas nenhuma “maquete de arquiteto”, nem mesmo mais recente, que porventura tenha existido no Egito, conseguiu o mesmo feito.

A construção de conhecimento quanto ao papel das maquetes no trabalho dos arquitetos egípcios depende de estudos mais detalhados e aprofundados sobre a documentação material que hoje se dispõe, como os três modelos sui-generis aqui apresentados (o modelo do Rei Sety I, o modelo de Dashour, a “Passagem de Teste” de Gizé). Este processo de contrução de conhecimento depende também de estudos comparativos que aproximem e relacionem esses objetos egípcios a outros modelos arquitetônicos e especialmente a outras supostas maquetes de arquiteto da Antiguidade. Caracteriza-se assim o “estado da arte” sobre o tema, o que reformula algumas idéias correntes quanto ao papel histórico das representações tridimensionais nos processos projetuais, reconhece a amplitude cultural dos objetos em pauta, e identifica a necessidade de ampliar e aprofundar pesquisas científicas nesta área. Afinal, o entendimento dos papéis históricos das maquetes e modelos no passado, adquire no mundo contemporâneo uma dimensão estratégica, tecnológica e metodológica, que ampara reflexões críticas e proposição experimentais sobre os usos da modelagem tridimensional nos processos projetuais da arquitetura e do urbanismo.

notas

NE
Este artigo é parte da dissertação de mestrado do autor disponível na íntegra no Biblioteca Digital de Dissertações e Teses da USP no link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde-09062009-145825/pt-br.php.

Este texto é o primeiro de uma série de três sobre o tema da modelagem arquitetônica na Antiguidade, o texto seguinte concentra-se em Creta e na Grécia, e o terceiro no Mundo romano.

1
AZARA, Pedro. Maisons d’âme. In Dossiers d’Archéologie – Maquettes antiques: architecturales, réelles ou symboliques. Dijon, n.242, p.4-7, Abril, 1999.

2
SÁ,Cristina Cunha da Costa e. A Aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro. Revista Projeto, S.Paulo, v. 23, 1980.

Neste artigo há uma fotografia, feita por Eduardo Bacellar, de um índio Karajá apresentando aos pesquisadores uma maloca valendo-se de uma modelagem tridimensional, uma maquete, feita no chão, na hora, com varetas.

3
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.

4
FLINDERS PETRIE, William Matthew. The Soul Houses. In Gizeh and Rifeh, Londres: British School of Archaeology in Egypt and Egyptian Research Account Thirteenth Year, 1907.

5
BADAWY, Alexander. A Monumental gateway for a Temple of King Sety I: An Ancient Model Restored. “Miscellanea Wilbouriana”, 1, Nova York, The Brooklyn Museum, p.1-20, 1972.

6
WINLOCK, Herbert Eulis. Models of Daily Life in Ancient Egypt from the Tomb of Meket-Re at Thebes. Cambridge: Harvard University Press, 1955.

7
NIWINSKI, Andrezj. Plateaux d’offrandes et Maison d’âme. Academia Polonesa de Ciências, Estudos e Pesquisas, 8, 1975.

8
STADELMANN, Rainer. Hausmodelle, In Lexikon der Ägyptologie, 2,15, Otto Harrassowitz, Wiesbaden, 1977, p1067-1068.

9
TOOLEY, Angela. Egyptian Models and Scenes. Buckinghamshire: Publicationes Shire, 1995.

10
ADAM, Jean-Pierre. Maquettes et dessins d’Égypte : le projet et sa présentation. In “Maquettes Architecturales” de L’antiquité. Actes du Colloque de Strasbourg, 1998. Paris: De Boccard, 2001. p.211-225.

11
LECLÈRE, François. Modèles Égyptiens de Bâtiments. In Dossiers d’Archéologie – Maquettes antiques: architecturales, réelles ou symboliques, Dijon, n.242, p.8-17, Abril, 1999.

12
TRAUNECKER, Claude. Temple –Maquette ou Maquette de temple dans l’Égypte Ancienne. In “Maquettes Architecturales” de L’antiquité. Actes du Colloque de Strasbourg, 1998. Paris: De Boccard, 2001. p.497-503.

13
LAROCHE-TRAUNECKER, Françoise. À propos des fragments de colonnes inédits découverts à Douch (oásis de Kharga) et de la maquette de chapiteau de Strasbourg. In “Maquettes Architecturales” de L’antiquité. Actes du Colloque de Strasbourg, 1998. Paris: De Boccard, 2001. p.87-97.

14
HAYES, William Christopher. The Scepter of Egypt. New York: Harper & Brothers in co-operation with the Metropolitan Museum of Art, 1953.

15
ADAM, Jean-Pierre. Dibujos y maquetas: la concepción arquitectónica antigua. In Las Casas del Alma. Catálogo da exposição “Las casas del alma (5.500 a.C. – 300 d.C.) do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997. p.25-33.

16
Imagens em: http://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/3543/Base_for_Votive_Model_of_a_Temple_Gateway (Acesso em 05/01/2011)

17
BRAND, Pete James. The monuments of Seti I: epigraphic, historical and art historical analysis. Brill: Leiden, Boston, Köln, 2000.

18
KOSTOF, S. Architecture in the ancient world: Egypt and Greece. The Architect, Chapter in the history of the profession. Oxford: Oxford University Press, 1986. Cap. I, p.3.

19
FAZZINI, R. Ancient Egyptian Art in the Brooklyn Museum. Thames & Hudson: New York, 1989.

20

BADAWY, Alexander. Op. Cit., p.14.

21
A iconografia do portador do modelo arquitetônico é o tema da tese de doutorado do autor disponível na íntegra no Biblioteca Digital de Dissertações e Teses da USP no link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-20082009-090910/pt-br.php

22
ARNOLD, Dieter. Building in Egypt, pharaonic stone masonry. Oxford: Oxford University Press, 1991.

23
ADAM, Jean-Pierre., Op. Cit., p. 215.

24
Disponível em: <http://www.ancient-egypt.org/index.html> (Acesso em 05/01/2011).

25
ADAM, Jean-Pierre., Op. Cit.

26
TOOLEY, Angela. Op. Cit.

27
ADAM, Jean-Pierre., Op. Cit.

sobre o autor

Artur Simões Rozestraten é Arquiteto e urbanista, professor doutor junto ao Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

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137.01

Arquitetura e ciência

topologia e intencionalidade em projeto, fronteiras

Eunice Abascal and Carlos Abascal Bilbao

137.02

Montbau: de cidade satélite a bairro de Barcelona. 1959-2011

Alcilia Afonso de Albuquerque Costa

137.03

Arquitetura tradicionalista nos edifícios de escritório de Jacques Pilon

Tiago Seneme Franco

137.04

Fotografia de arquitetura

Uma escrita da cultura

Eduardo Costa

137.05

Viagem em torno de um palácio

Sartre nas entranhas do século clássico

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

137.06

Segregação socioespacial nas cidades da Região Metropolitana de Londrina – Paraná - Brasil

Nestor Razente

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