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architexts ISSN 1809-6298

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português
O artigo realiza um breve comentário histórico-cartográfico acerca da ampliação do espaço citadino curitibano; analisa alguns aspectos discursivos do Plano Preliminar de Urbanismo (PPU, décadas de 60/70) e traça algumas considerações políticas e sociais


how to quote

BOTTON, Fernando. Os traços do invisível. Aspectos peculiares de história, urbanização e projetos urbanísticos na cidade de Curitiba. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 138.05, Vitruvius, nov. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.138/4123>.

A cidade de Curitiba é conhecida internacionalmente por seu exemplar sistema de planejamento urbano, caracterizado pelo rigoroso ordenamento e pela pontual precisão com que cada detalhe foi planejado. Não podemos negar que a cidade contou com excelentes arquitetos e urbanistas e que não se pouparam esforços para fazer dessa cidade um modelo a ser seguido como exemplo pelas principais capitais brasileiras. Por tal constatação podemos justificar o presente estudo que visa traçar uma breve  genealogia crítica do processo de urbanização curitibano, focando alguns aspectos discursivos acerca do Plano Preliminar de Urbanismo (PPU).

Pensando nessa análise, partimos de uma perspectiva teórica que compreenda os espaços urbanos e suas construções como manifestações de estratégias institucionais e governamentais que se baseiam, dentre outros fatores, em processos políticos. Tais processos são envoltos pelos saberes, poderes e verdades a fim de implantar um discurso constituidor da “governamentabilidade” (1), que busca regularizar as formas de ação social, influenciando nas espacialidades individuais e coletivas.

Como perspectiva metodológica pretendemos nos utilizar de mapas e documentos históricos buscando perceber algumas características particulares do processo de urbanização curitibano. Também buscamos interpretar algumas nuances dos discursos proferidos pelos planejadores e políticos referindo-se ao PPU. Nosso objetivo é realizar o cruzamento das fontes cartográficas e de alguns discursos urbanísticos buscando perceber certas características argumentativas e ideológicas que o PPU herdou de seus formuladores.

Breve genealogia histórico-cartográfica da construção urbanística da cidade de Curitiba

A pequena povoação da vila de Curitiba fez com que fosse eleita uma Câmara de Vereadores no ano de 1693, sendo que os registros do crescimento da cidade puderam ser analisados dois séculos depois com relatos de Saint-Hilaire que a descreve como sendo "de forma mais ou menos circular. Compõe-se de duzentos e vinte casas de pequenas dimensões, cobertas de telha, quase todas de um só pavimento, sendo muitas, porém, construídas de pedra" (2). Segundo dados do Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), Curitiba possuía nessa época 27 quadras, 5.819 habitantes, 308 casas e mais 50 em construção (3). Como primeira fonte, analisemos o primeiro mapa da cidade

Mapa de Curitiba, 1857
IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [http://ippucweb.ippuc.org.br:8090/ippucweb/sasi/home/default.php]


Pela presente fonte Curitiba é retratada como um espaço pouco amplo, mesmo já sendo capital da província do Paraná desde 1853 (4). O cartógrafo desenhou uma cidade cujo modelo urbanístico era tipicamente colonial, especialmente se tratarmos da localização da capela como o centro referencial e posição centrípeta, determinante na localização dos demais edifícios que se construíam em seu redor. Já nesse período Curitiba sofreu sua primeira intervenção urbanizadora planejada pelo engenheiro francês Pierre Taulois que estabeleceu um traçado de inspirações racionalistas. Usando de desenhos regulares e ângulos retos objetivou delinear quadras e ruas bastante retilíneas e ordenadas, se comparadas com as demais capitais de província da época. Nesse mesmo momento iniciaram-se as construções dos primeiros teatros, escolas e clubes, com o intuito de transformar a cidade num referencial intelectual para uma região ainda desprovida de edificações com motivos culturais.

Ao analisar os dados apresentados pelo documento veiculado pelo IPPUC encontramos a imigração como um discurso passível de ser repensado, segundo o site do órgão:

A partir de 1820 e até o início dos anos 1900 ocorrem as imigrações. Os primeiros imigrantes chegam à Curitiba atraídos pela política nacional do "open door" a partir de 1822. Mas é depois de 1860 que as grandes levas de imigrantes vão povoar os vazios demográficos da cidade (5)

Essa argumentação é imprecisa se pensarmos em termos universais justamente por referir-se a um pretenso “fim da imigração” datado no ano de 1900. O órgão se refere apenas e especificamente à chegada dos europeus na região, realmente influenciados pela favorável política imigrantista brasileira. Nesse sentido podemos ampliar as afirmações do IPPUC que não dão a devida ênfase nas migrações posteriores, principalmente as nacionais. Isso provavelmente não se deve a um simples equívoco histórico, trata-se de uma linha argumentativa que visa priorizar a importância dos grupos migrantes europeus tradicionalmente estabelecidos na cidade em contraste ao grupo dos migrantes nacionais.

Mas não se pode negar a real prosperidade econômica e demográfica da “cidade sorriso” na segunda metade do século XIX, como argumenta o discurso do IPPUC supracitado. A partir do próximo mapa fica evidente o crescimento da cidade se comparado ao primeiro mapa, seis anos anterior.

Mapa de Curitiba, 1863
IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [http://ippucweb.ippuc.org.br:8090/ippucweb/sasi/home/default.php]


Observamos o crescimento do numero de quadras, uma vez que é o principal perfil que podemos relacionar ao primeiro mapa. Ainda percebemos uma formação urbanística nuclear, onde os edifícios desenhados não se estendem de forma desordenada para nenhum dos pontos cardeais.

Outro fator a ser analisado é a existência de algumas instituições recém criadas que podem ser interpretadas como índices de prosperidade político-econômica, no caso, a existência de hotéis, sinal de circulação de pessoas de outras regiões havendo demanda por hospedagem na cidade de Curitiba.

Outro aspecto interessante, e aparentemente contraditório, é a legenda do mapa que pronuncia o numero de 3000 habitantes residentes na cidade morando em 282 casas. Essa fonte é destoante se comparada com os dados informados pelo IPPUC que somam “5.819 habitantes, 308 casas” (6) na mesma época citada, ou seja, há uma leve alteração no numero de moradores\casas entre o documento e o discurso, fenômeno passível de ser compreendido se as fontes utilizadas forem distintas. Não podemos ser rigorosos quanto a compatibilidade de dados com mais de cento e cinquenta anos de idade, embora que tal imprecisão pode ser utilizada como embasamento de estratégias discursivas, especialmente no sentido de aumentar ou diminuir a relevância de determinado período da história da cidade.

Mapa de Curitiba, 1915
IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [http://ippucweb.ippuc.org.br:8090/ippucweb/sasi/home/default.php]


Quanto ao terceiro mapa podemos perceber a prosperidade da cidade de Curitiba através da ampliação do numero de quadras e vias, de forma que o centro da cidade se mostra como núcleo e a expansão habitacional se dá em seus redores.

A cidade presente nesse mapa já exime exuberantes novidades dignas de uma metrópole para a época, como o moderno sistema de bondes elétricos importados da França e instalados em 1910. Também nessa época se exibia como jóia a Universidade Federal do Paraná (UFPR) que fora concluída em 1912 sendo a primeira Universidade do Brasil, o que demonstra a prosperidade da cidade e sua expansão graças aos ideais modernizadores das autoridades e dos intelectuais curitibanos. Não podemos esquecer que esse é um momento em que estão abertas as feridas e temores oriundos da Guerra do Contestado, momento específico em que Curitiba criou um reforçado laço de identidade e fraternidade entre os paranaenses em torno de uma simbologia unificadora e particularizante, especialmente galgada na figura do imigrante, o que originou o moderno movimento artístico/cultural Paranista. Segundo Camargo:

Intelectuais vindos das famílias estabelecidas elaboram suas idéias e artistas plásticos, descendentes de imigrantes de formação profissionalizante, sua apresentação visual e, ao mesmo tempo, sua interpretação das formas modernas em arte. Neste contexto, em 1927, é definida a noção de Paranismo. (...) A partir daí, vemos no cenário paranaense uma produção ligada às formas das artes decorativas e a um paisagismo de teor simbolista, em que a imagem do pinheiro paranaense e do pinhão passam a ser o assunto dominante (7)

Não por acaso, ao caminharmos pelas calçadas da cidade de Curitiba encontremos insígnias de pinhões e pinheiros por todos os lados. Trata-se de uma ornamentação embasada nos experimentos artísticos e identitários provenientes das primeiras décadas do século XX em Curitiba. Assim percebemos que se constitui uma ideia cultural de nós e de eles, uma noção de identidade paranaense que se baseia justamente na figura do colonizador como o habitante modelo da cidade (8), no mesmo momento em que a cidade recebe seu maior número de imigrantes.

Norbert Elias e John Scotson, em seus estudos sociológicos na comunidade de Winston Parva, criaram uma ferramenta de análise sociológica que definiram como “os estabelecidos e os outsiders”. Para os autores a posição de estabelecimento é visível através da recusa do individuo em manter relações sociais com os membros do grupo considerado estrangeiro, pois esses são vistos como ameaça à identidade e coesão do grupo estabelecido. Essa identidade é baseada em rígidas normas sociais criadas pelos insiders, sendo que a pré-condição básica para a inclusão de seus “membros” nesse “grupo seleto” é a antiguidade da associação e o respeito\cumprimento às normas estabelecidas. Para os sociólogos , a estigmatização dos outsiders é uma arma poderosa para a afirmação da superioridade dos estabelecidos, e com isso, conservarem sua identidade e seu código de condutas particular. Isso acaba gerando um “equilíbrio instável de poder, com as tensões que são inerentes” (9) sendo que um grupo só pode estigmatizar outro se estiver bem instalado e coeso. Com tal ferramenta teórica podemos direcionar um olhar específico para esse momento da urbanização curitibana, que busca estabelecer uma distinção entre estabelecidos e outsiders no interior de suas estruturas, especialmente num momento em que a imigração do interior para a cidade começa a ser considerada uma ameaça ao grupo estabelecido.

Mapa de Curitiba, 1935
IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [http://ippucweb.ippuc.org.br:8090/ippucweb/sasi/home/default.php]


O quarto mapa, em diferencial de 20 anos com o terceiro, exibe um ponto fundamental para a construção da nossa contralinha argumentativa: podemos perceber a contínua ampliação expressiva do espaço urbano de Curitiba. O que se deu por vários fatores sendo um deles, senão o principal, a migração do interior dos estados para as capitais que ocorreram após a instalação das industrias nas primeiras décadas do século XX. Ou seja, já na segunda década do século percebemos uma migração em massa para a cidade de Curitiba que não é a primeira leva de migração europeia.

Frente a avassalador crescimento urbano fez-se necessária a produção de um novo projeto urbanizador para comportar tamanha população e uma cidade com tais proporções: “78.986 habitantes, 11.819 prédios e 11.609 domicílios” (10). Nesse contexto demandou-se um novo projeto urbanístico, que embasado pelo modelo republicano nacionalista de modernização do Brasil proporcionou a criação de extensas estruturas de modelo hermeticamente racional, muito inspiradas nos projetos modernistas franceses haussmanianos, que foram transpostos para as principais cidades brasileiras. Assim criam-se avenidas longas e retilíneas, com vazão acentuada e adaptada para o movimento dos carros que cada vez mais se popularizavam na época, essa é a origem das atuais avenidas Visconde de Guarapuava, Sete de Setembro, Silva Jardim, Iguaçu e Getúlio Vargas.

Outra nuance a ser analisada, é a divisão espacial da cidade, que segundo o IPPUC se deu da seguinte forma:

As funções são [foram] reavaliadas e a cidade dividida em três zonas: a Zona I, central, é destinada ao comércio e moradias de alto padrão; a Zona II, às fábricas e moradias dos operários qualificados; a Zona III, às moradias de operários menos qualificados e pequenos sitiantes. (grifos meus) (IPPUC, 2008) (11)

Lamentamos o fato do IPPUC não ter divulgado o mapa da divisão dessas três áreas (no banco de dados on-line), o que dificulta a análise de tais afirmações. Mas através do discurso, já é possível compreender o intuito urbanista da época em uma “cidade dividida” entre as moradias, e obviamente, os moradores. Havendo desde já a valorização da Zona I (moradias de alto padrão), em detrimento das Zonas II e III. Não só há uma diferença, mas uma oposição entre tais zonas. É evidente que tal divisão não é embasada em nenhum fator senão político, e a partir desse momento, com a divisão de zonas, todos os projetos urbanísticos da cidade de Curitiba se basearão nesses “distintores sociais”, articulando e direcionando os projetos urbanísticos e suas distribuições espaciais de acordo com interesses políticos. Parece bastante claro que nesse exato momento os novos projetos de urbanização, por modelos internacionais e por readaptações a pretensões locais, buscaram a segregação social baseada no critério da posição social/salarial dos moradores.

Nota-se que o centro da cidade continua nuclear, porém há prolongamentos habitacionais nos sentidos leste, oeste, nordeste e sudoeste. Contudo, não vemos nenhuma exacerbação nesses prolongamentos. Dessa forma, vemos as bases e traçados urbanos da cidade de Curitiba pautados e delineados de forma radial.

Como o crescimento populacional continuou aumentando em progressão geométrica, novos desafios urbanísticos se fizeram presentes, não apenas no sentido de  comportar o contingente humano, mas de distribuir os recursos na cidade. Nesse contexto se constituiu o Plano Agache em 1943. Esse ambicioso projeto urbanístico foi encomendado à empresa Coimbra & Cia e foi projetado e executado pelo arquiteto francês Alfred Agache, fundador da Sociedade Francesa de Urbanismo. O importante a frisar é que tal plano “define a distribuição dos espaços abertos e a reserva de áreas para a expansão da cidade, segundo a previsão demográfica da época” (12). Sob essa perspectiva, é evidente no mapa um traçado racional que define o espaço de forma fragmentada, setorizando as zonas. A preocupação modernista do plano agache era de criar e organizar os setores funcionais, onde as várias atividades da cidade fossem exercidas em territórios polarizados ao mesmo tempo que integrados. Nesse intuito criou-se, por exemplo, os projetos da Cidade Industrial como centro para o trabalho fabril; o Centro Politécnico da UFPR como um núcleo de pesquisas, especialmente nas áreas de tecnologia e engenharia; o Mercado Municipal, na região central da cidade, como um centro de comércio e escoamento de produtos de consumo (13).

Muitas modificações foram implantadas no espaço urbano curitibano, sendo que em 1953 aprova-se a Lei nº 699/53 de Zoneamentos em que Curitiba é dividida em 8 zonas principais. Cada zona da cidade ficou sob responsabilidade de uma empresa concessionária responsável pelo transporte, segundo os dados do IPPUC, isso dura até 1973 quando se implanta a Rede Integrada de Transportes (RIT), vigente até os dias de hoje.

Mesmo que a cidade se manteve no sentido radial e centrípeto de integração, os esforços do estabelecimento de setores de atividades específicas foi se estabelecendo como tendência moderna aos futuros projetos urbanísticos.

O argumento do Plano Preliminar de Urbanismo

Na década de 60 a população de Curitiba continua crescendo e se faz necessária a implementação de um novo plano, para isso aprovou-se a Lei nº 1908/60 que instituiu o Plano Piloto de Zoneamento de Uso, estabelecendo as Unidades de Vizinhança (UVs) que nortearam as intervenções urbanísticas seguintes. Tal plano abriu o campo para um projeto mais grandioso e ambicioso: o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU). Para que tal plano fosse implantado, seria necessário desconstruir o discurso radial presente no Plano Agache:

"Uma das necessidades mais agudas, sentidas junto à população foi a de uma revisão do Plano Agache. Não que o plano tivesse defeitos, mas ele não acompanhou a evolução. As linhas principais do Plano Agache - as grandes avenidas - estavam traçadas, mas os prefeitos que se sucederam não o continuaram e ele ficou meio na gaveta, enquanto a cidade crescia desmesuradamente. O Plano Agache ficou meio obsoleto. Foi com estas idéias na cabeça que pensamos não só em revisar o plano de Curitiba, mas em criar um instrumento de acompanhamento de sua evolução".(Grifos meus) (14)

Nesse discurso podemos perceber certo ofuscamento dos princípios do plano Agache e sua disposição setorizada e radial em prol de um projeto mais “moderno”, assim cria-se o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) no ano de 1966, que possuía um argumento novo de classificação e espacialização da cidade.

O Plano Preliminar de Urbanismo nasce de um concurso público lançado em 1964 pela Prefeitura Municipal de Curitiba. Vencem a concorrência a Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda. e Jorge Wilheim Arquitetos Associados. (15)

Os Projetistas vencedores do concurso, ambos da cidade de São Paulo, elaboraram e encaminharam os Planos de Urbanização do PPU à Prefeitura Municipal de Curitiba, que os utilizou como Plano Diretor (PD), sendo que sua execução foi realizada pelo próprio IPPUC.

O plano foi realizado dentro desse contexto de modernização e progresso do Brasil propiciado pelo discurso militar-ditatorial da época. O argumento urbanista adotado pelos técnicos do PPU foi pautado no ideal de “cidade orgânica”, onde se delimita os padrões desejáveis em oposição aos indesejáveis para a capital paranaense. Para isso era preciso redefinir certas prioridades como a divisão espacial entre os recursos e os benefícios a serem direcionados pelo PPU. Tais modificações tinham o intuito de tornar Curitiba uma “cidade modelo”, exemplo de urbanização para as demais capitais mundiais.

Defende-se uma utopia de gerar igualdade e paz social através do planejamento urbano, ordenando o caos e normalizando os comportamentos das populações residentes. O objetivo implícito era de direcionar os tipos de intervenções segundo o perfil e as “necessidades” dos habitantes das diferentes regiões, segundo Souza:

Equipamentos urbanos planejados devem ser entendidos como equipamentos de poder, pois atuam dividindo certos espaços, integrando, combinando ou bloqueando outros, reforçando as hierarquias sociais e normalizando comportamentos. Os equipamentos distribuídos na cidade, a partir de estudos técnicos rigorosos, codificam os fluxos, regulam as exclusões, ou inclusões parciais, dos diferentes habitantes urbanos diante dos múltiplos espaços (...) Os equipamentos urbanos cuidadosamente planejados e distribuídos na cidade [de Curitiba] expressam, e ao mesmo tempo atuam sobre, o jogo de forças pela apropriação dos bens urbanos de ordem material e simbólica. (16)

Nesse ponto podemos notar uma distribuição específica desses “equipamentos” no sentido de reduzir a prioridade das intervenções urbanísticas em determinadas regiões em prol da melhor implementação das demais regiões.

É visível um discurso presente nos traçados do PPU em que a cidade é “partilhada” segundo eixos principais, diretrizes para a atuação do PD, onde a classificação do que é “orgânico” baseia-se em dados fundamentados no “perfil da população” (17).

A partir da argumentação de Souza, notamos uma peculiaridade no banco de dados utilizado pelos projetistas do PPU em sua construção teórico-urbanística. Os projetistas não se basearam em dados do Censo, mas sim nos cadastros do TRE (Tribunal Regional Eleitoral). Com isso os números dos cidadãos analfabetos, não eleitores e re-imigrantes não constavam nos dados do PPU. Tal colocação fez parte da própria argumentação dos engenheiros que reconhecem pertinência de seus dados ao argumentarem referindo-se aos “sulistas” de forma diferenciada:

O eleitor tende a ser das camadas sociais mais altas, e assim deixando de ser representada a população de camadas mais baixas. Isto em parte é contrabalançado pelo alto índice de alfabetização dos habitantes da Região Sul do país, e que constituem a maior parte dos imigrantes (18).

Novamente se aposta na argumentação da imigração do sul como sendo diferente das outras, mais civilizada e alfabetizada. Nesse ponto Souza se questiona “como afirmar que os imigrantes do sul são a maioria?” (19). Dessa forma a justificativa do PPU estabelece uma versão histórica de Curitiba em que a imigração sulista é o núcleo civilizacional da cidade, e, contraste com a imigração nacional, especialmente das regiões norte e nordeste. Quanto a esses a própria Prefeitura Municipal de Curitiba, através do texto do PPU, estabelece certa valoração ao afirmar que o desequilíbrio urbano de Curitiba começou com:

[...] uma certa imigração, especialmente de nacionais [...]. Comparece então, com muito maior vigor o mecanismo do loteamento [...], sem controle do poder público. Tal fenômeno ocorreu especialmente no setor sul, mais plano de menor valor comercial, em virtude das freqüentes inundações da baixada [...]. Em decorrência desta atividade comercial indisciplinada, a ocupação do solo deu-se parcialmente em terrenos de difícil drenagem e de serviços públicos onerosos (20).

Nota-se que o desequilíbrio urbano de Curitiba é atribuído ao estabelecimento dos imigrantes nacionais que lotearam de forma “indisciplinada” a zona sul da cidade. Essa é a mesma base argumentativa dos discursos das primeiras décadas do século XX onde a tensão entre imigrantes recentes e imigrantes antigos estabelecia-se no padrão estabelecidos-outsiders. Elias e Scotson (21) comentam que a posição de estabelecimento é visível através da recusa de ter contato social com os estrangeiros (principalmente contato físico), pois esses são vistos como ameaça à identidade e coesão do grupo estabelecido. Na comunidade de Winston Parva a espacialização da cidade foi delineada pela total separação e setorização das comunidades estabelecidas e outsiders.

Tal discurso é fundamental para a sustentação das intervenções urbanísticas modernas, especialmente o PPU que deixou de privilegiar certas regiões, como é o exemplo do bairro Boqueirão. Segundo Souza (22), os projetos urbanistas direcionaram menor numero de investimentos naquela região e indicaram as áreas que deveriam ser privilegiadas pelas qualidades “naturais” ou “históricas”. Tal argumento é presente no discurso da Prefeitura Municipal de Curitiba através do relatório do PPU ao selecionar as áreas a serem beneficiadas:

Se compararmos qualquer prancha gráfica de serviço público com a localização de edificações e de loteamentos, perceber-se-á terem as redes permanecido a grosso modo na direção sudoeste-nordeste, enquanto os loteamentos levaram os limites da zona urbana abranger vastas glebas ao sul, a sudeste e a leste do setor urbano contínuo. Desejaríamos insistir no caráter inorgânico desta ampliação de Curitiba (23)

Nesse discurso encontramos a tendência de privilegiar o sentido sudoeste-nordeste e desprivilegiar as demais áreas circundantes, dado o fator “inorgânico” de tais regiões. Ressaltamos que somente a partir do PPU que se define a faixa sudoeste-nordeste como privilegiada, desde os mapas do início do século XX podemos perceber que a cidade de Curitiba não possuía necessariamente esse perfil. É dentro desse plano retilíneo, e não mais radial, que se traçam as zonas de influência do PPU.

Plano Preliminar Urbanístico de Curitiba, 1965
IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba [http://ippucweb.ippuc.org.br:8090/ippucweb/sasi/home/default.php]


É visível nesse mapa certa tendência à classificação da cidade em sentido sudoeste-nordeste, região classificada como “residencial” e com isso alvo de maiores investimentos. A categoria classificatória foi realizada pela densidade demográfica, que segundo os dados do TRE, apontam como núcleo em importância as Zonas Comerciais centrais (ZC1, ZC1, ZC3 e ZC4), as zonas consideradas “Especiais” e “Verdes” (ZE e ZV) e as Zonas Residenciais de alto custo comercial\imobiliário (ZR1, ZR2, ZR3 e ZR4).

Notemos que a parte sudeste, onde se localiza o bairro Boqueirão é classificado como Zona Residencial de Baixa Densidade (ZDB), ou seja, a categoria que define o bairro como “pouco habitado” é justificativa para a redução dos investimentos urbanísticos aplicados naquela região. Mesmo que o bairro já possuía expressiva densidade demográfica decorrente da presença de migrantes nacionais, que na maioria das vezes não era eleitor nem alfabetizado.

Para os projetos do PPU se fez necessária a organização de rotas de isolamento ou contenção da região menos populosa através de alguma barreira física, assim se criou o argumento das Unidades de Vizinhança (UVs). Os técnicos do PPU adotaram como “barreira natural” na formulação das UVs a BR-116 (traçado em evidência no mapa), que é a linha divisória entre as partes sul e leste do resto da cidade. Percebe-se a rodovia enquanto barreira\fronteira que separa um pólo da cidade de “outro”.

Mapa de Densidade demográfica por unidade de vizinhança em Curitiba, 1964
Elaborado a partir do original do PPU [SOUZA, Nelson Rosário de. Op. Cit., p. 11]


Outra questão a ser resolvida era a criação de rotas alternativas para o acesso da cidade de Curitiba ao aeroporto Afonso Pena, situado a sudeste, na cidade vizinha de São José dos Pinhais, A rota mais evidente para tal destino passaria pela avenida Marechal Floriano Peixoto que cruza no interior de bairros como o Boqueirão. Assim, investiu-se em uma rota alternativa que ligaria Curitiba à cidade vizinha, cria-se assim a Avenida Comendador Franco, mais conhecida como “Avenida das Torres”. Notemos o intuito da fala do principal projetista do PPU, Jorge Wilheim:

[...] as observações locais me permitiram identificar certas coisas que as pessoas locais não enxergavam. Durante muito tempo, nas reuniões com o grupo local de acompanhamento, eu falei da Avenida das Torres. Primeiro nada diziam, eu achava que não sabiam onde era e que, de repente, descobririam. De repente alguém 'ousou' perguntar: 'mas Jorge, esta Avenida das Torres de que você tanto fala, onde é?' Disse: 'é a avenida que está na frente do nariz de vocês e que vocês não enxergam! Vocês têm uma ligação direto do aeroporto, em São José dos Pinhais, até o centro de Curitiba. É área toda desapropriada, existem só as torres: basta limpar e pavimentar (24)

Com isso percebemos uma explícita tendência na abertura de uma rota alternativa, que não perpasse o perímetro do Boqueirão ou das demais áreas degradadas da cidade, embora que atualmente próximo à “Avenida das Torres” tenha se estabelecido uma das áreas de maior fragilidade econômica e social de Curitiba. Em depoimento mais recente Wilheim esclarece os interesses:

Entre nós entendíamos que tudo deveria ser feito para avançar a cidade, desenvolvê-la, a sudoeste: isto é, para não atravessar a rodovia e para não ocupar o Boqueirão. As razões para tal eram bastante sólidas. Ocupado, o Boqueirão seria destinado a uma população carente – porque o preço da terra seria sempre baixo e não haveria infra-estrutura, a não ser a um preço bastante alto [...]. Era isto, ou aquilo que propúnhamos: o desenvolvimento da cidade para Oeste e Sudoeste. Como, de fato, se fez (25)

Não se trata de distribuir democraticamente os recursos do projeto para a cidade, o “desenvolvimento da cidade para oeste sudoeste” se mostrou mais importante, uma vez que as terras do bairro Boqueirão foram consideradas como uma região

baixa, inundável e de solo inadequado para construções. A oferta de terrenos loteados levou parte da população a ocupá-la, tornando inorgânico o desenvolvimento da cidade. Recomenda-se não estimular novos loteamentos nesta região (26)

Com tal argumento retira-se a possibilidade de investimentos equânimes do município, pois se justifica o viés “inorgânico” das regiões menos abastadas. Ressaltamos que desde os primeiros mapas analisados não encontramos referência a um desenvolvimento direcionado ou perimetral. O que se percebe é um desenvolvimento urbanístico radial, que se expande “democraticamente” para todos os pólos da cidade, demandando a responsabilidade de dividir equanimente os recursos a fim de privilegiar todas partes presentes no complexo urbano de Curitiba.

Apontamentos finais

É bastante próprio dos discursos históricos e histórico-urbanísticos serem utilizados como forma argumentativa para o estabelecimento de políticas públicas determinadas, implantadas via projetos de urbanização, mesmo que tais discursos muitas vezes não disponham de um embasamento adequado. Ainda que não temos a pretensão de apontar qualquer conclusão definida, podemos esboçar um diagnóstico que aponta para a carência de um dialogo possivelmente frutífero entre a história, a sociologia e o urbanismo enquanto disciplinas afins. Atividade que poderia criar novas metas de urbanização mais condizentes com a realidade social da população estabelecida na cidade.

Também sugerimos que os futuros projetos de urbanização poderiam ser planejados a partir dos interesses e anseios das populações que vivem na cidade, especialmente as menos abastadas, que mais necessitam dos benefícios do poder público, desta maneira seria possível determinar estratégias de intervenções urbanísticas que visem melhorar a qualidade de vida dessa população que ainda sofre com as disparidades da ordem socioeconômica ainda vigentes nesse país.

notas

1
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2007.

2
SAINT-HILAIRE, 1820. Apud IPPUC: http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

3
http://www.ippuc.org.br/ippucweb/sasi/home/ (Acesso em 23/06/2008)

4
Na época a região hoje compreendida por Paraná era província do estado de São Paulo.

5
http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 24/06/2008)

6
http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

7
CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: Arte, Ideologia e Relações Sociais no Paraná. 1853 - 1953. Tese de Doutorado pela UFPR. Curitiba, 2007.

8
Atualmente muitos meios de comunicação curitibanos gostam de comparar a cidade com as capitais europeias como Londres ou Paris. Tal estratégia argumentativa data desde as primeiras décadas do século XX, para maiores detalhes na comparação entre Curitiba e as cidades europeias Cf. BOTTON, Fernando Bagiotto. De Como se faz um Homem: Os Discursos Constituintes da Masculinidade na Modernização Curitibana. Monografia de Conclusão de Curso pela UFPR. Curitiba, 2010.

9
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000. pp.17-50

10
http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

11
http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

12
http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

13
RODRIGUES, Janelize Marcelle Diok. Em Busca de Modernização: O Legado do Arquiteto Donat Alfred Agache Para a Cidade de Curitiba. Monografia de Conclusão de Curso em História. UFPR, 2010.

14
ARZUA, Ivo. apud IPPUC: http://www.ippuc.org.br/ (Acesso em 23/06/2008)

15
SOUZA, Nelson Rosário de.Planejamento Urbano em Curitiba: Saber técnico, classificação dos citadinos e partilha da cidade”. In. Revista de Sociologia e Política. Retirado de Scielo, <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782001000100008&lng=&nrm=iso&tlng=> Data de acesso: 07/06/2008

16
SOUZA, Nelson Rosário de. Op. Cit.

17
Idem. Ibidem

18
PMC. Plano preliminar de urbanismo de Curitiba. Curitiba, Prefeitura Municipal de Curitiba/Serete & Wilheim Associados, 1965, p. 12.

19
SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento Urbano em Curitiba:
Saber técnico, classificação dos citadinos e partilha da cidade. In. Revista de Sociologia e Política

20
PMC. Plano preliminar de urbanismo de Curitiba. Curitiba, Prefeitura Municipal de Curitiba/Serete & Wilheim Associados, 1965, p. 81.

21
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. pp.17-50.

22
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Op. Cit.

23
PMC. Plano preliminar de urbanismo de Curitiba. apud SOUZA, Op. Cit.

24
Wilheim apud, SOUZA, Nelson Rosário de. Op. Cit.

25
Idem. Ibidem

26
Idem. Ibidem

bibliografia complementar

IPPUC. Memória da Curitiba urbana. Curitiba: Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba. 1989-92.

_________  Pensando a Cidade. Curitiba: Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba. <http://www.ippuc.org.br/pensando_a_cidade/index_hist_planej.htm> Data de acesso: 23/06/2008.

_________ Curitiba em Dados. Curitiba: Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba. <http://ippucnet.ippuc.org.br/Bancodedados/Curitibaemdados/Curitiba_em_dados_Pesquisa.asp> Data de acesso: 24/06/2008.

sobre o autor

Fernando Bagiotto Botton possui graduação no curso de História da Universidade Federal do Paraná, é mestrando em
história pela UFPR e bolsista CNPq.

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