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architexts ISSN 1809-6298


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No Brasil colonial, a onipresença da Igreja vai muito além da esfera religiosa. Assistência social, educação, arte, cultura e lazer. Contudo, é na economia que sua presença é mais decisiva, embora subjacente


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TORELLY, Luiz Philippe. Por que construir igrejas? Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 139.01, Vitruvius, dez. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.139/4172>.

“O encanto da miragem barroca é mais atraente aqui do que em qualquer outro lugar, exatamente pela ausência de qualquer outro sistema de referência oferecido ao espírito. É sem dúvida, na América Latina e principalmente no Brasil, onde não existia qualquer forma anterior, que é possível captar o alcance humano dessa ficção" (1). Esta frase do historiador e esteta francês, Germain Bazin, autor de Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, nos dá a medida da importância do barroco brasileiro, desde as origens, na formação histórica da cultura e das artes no País e de seu reconhecimento internacional.

Mesmo aos espíritos mais desatentos, é impossível conter o entusiasmo e deleite, ao adentramos em igrejas barrocas, pelo País afora, de Norte a Sul. Fachadas muitas vezes austeras e singelas ocultam interiores surpreendentes, em formas, cores, texturas, brilhos e sensações. Quem já visitou a Capela de Nossa Senhora do Ó em Sabará/MG, a Igreja de São Francisco de Assis em Salvador/BA, ou a Igreja do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro/RJ, sabe do que estamos falando. Face aos edifícios civis e residenciais – onde ainda existem conjuntos preservados – é possível constatar a proeminência e a dominância da arquitetura religiosa, sobre as demais, o que evidencia a importância da Igreja, na “superestrutura” do Brasil colonial, seja nas questões transcendentes de natureza espiritual, seja na legitimação do status quo sócio-econômico e das relações de trabalho, especialmente a servil.

Tanta beleza carrega consigo um paradoxo: muitas igrejas, talvez centenas, foram construídas e eram administradas por irmandades de cativos e libertos. Especialmente aquelas consagradas a Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, São Benedito, Santo Elesbão e Santo Antônio de Catalagerona ou Catageró. É esta questão que este ensaio pretende examinar, considerando a premissa de que a liberdade é o direito mais precioso a ser adquirido por um escravo (2). Por que construir igrejas, em vez de restituir a liberdade a si próprio e a seus iguais, investindo os parcos e incertos recursos que lhes era possível auferir, em realizações que, apesar da beleza e do esplendor, eram parte das cadeias que os prendiam? Ou será que eram caminhos de resistência e solidariedade, em uma sociedade preconceituosa e hostil?

No Brasil colonial, a onipresença da Igreja vai muito além da esfera religiosa. Assistência social, educação, arte, cultura e lazer. Contudo, é na economia que sua presença é mais decisiva, embora subjacente. Diante das dificuldades na submissão dos indígenas ao trabalho forçado e da crescente demanda por braços, inicialmente na lavoura de cana e posteriormente na mineração, Portugal deu continuidade ao tráfico negreiro, já seu conhecido em escala crescente, desde o século XV. Enquanto na Europa o renascimento floresce, secundado pelo Iluminismo, que alterou os paradigmas da condição humana, a escravidão é institucionalizada em prol do processo colonizador das Américas, da África e da Ásia. Foram deportados para o Brasil cerca de 3,5 milhões de africanos (3), nas estimativas de Maurício Goulart, ou 4,02 milhões, nos cálculos mais recentes de Luiz Felipe de Alencastro (4). Homens, mulheres e crianças, de diversas nações, do final do século XVI, até meados do XIX. A grande diáspora africana.

A Igreja, onde parte do Clero combateu o cativeiro dos índios com destemor, não teve o mesmo procedimento para com a escravidão negra, embora várias bulas papais, como a de Urbano VIII, a tenham condenado. É importante lembrar, que o Brasil colônia estava subordinado ao padroado português, subordinado à Coroa, que ditava as diretrizes do processo de colonização, nem sempre afinadas com Roma. O tráfico negreiro era visto como um antídoto ao aprisionamento do indígena. Padre Antônio Vieira (5), uma das maiores figuras da história e da literatura luso-brasileira, cuja obra está em grande parte compilada em seus Sermões, manifestava-se de forma ambígua e contraditória. Ora criticava com firmeza os males da escravidão. Ora propugnava que a melhor forma de assegurar a liberdade dos índios e preservar os interesses econômicos dos colonizadores era a manutenção do cativeiro dos negros. Defendia a redenção das almas pelo sofrimento e pela obediência, a exemplo da paixão de Cristo (6). A escravidão tornou-se uma instituição disseminada em toda a sociedade. A tal ponto que, mesmo forros e escravos (7), bem como suas irmandades, eram proprietários de escravos. Tão arraigada, pode-se dizer monolítica, que, apesar dos ventos libertadores do iluminismo no século XVIII, no Brasil, só começa a ser efetivamente contestada em meados do XIX, quando seu final já estava em curso, fruto das mudanças sociopolíticas e tecnológicas determinadas pela expansão capitalista e do fim do tráfico, que induziram o aumento da demanda por mão de obra, onde o trabalho escravo deixou de ser competitivo em relação ao trabalho livre (8).

Igreja e Estado formam um único aparato ideológico, com o objetivo de legitimar os interesses metropolitanos. A religião, utilizada como instrumento de conversão e catequese dos índios, com resultados muito aquém dos desejados, mostrou-se incapaz de impedir a violência institucionalizada do colonizador, sempre convencido da superioridade de sua cultura e da legitimidade de suas ações, mesmo aquelas reconhecidamente cruéis, como a tortura, as mutilações e as execuções por motivos torpes. A população indígena foi sistematicamente eliminada, em um genocídio que só encontra paralelo, no passado recente especialmente, na II Grande Guerra Mundial e na dominação colonial da África, pelas potências européias, no último quartel do século XIX.

Embora a utilização institucionalizada do índio como escravo, tenha perdurado sob várias formas, até tempos recentes, a escravidão do negro se impõe, seja pela necessidade crescente de braços, seja como elemento estruturador do comércio no Atlântico Sul. Para legitimá-la, a luta contra os “infiéis”, assume ares de “cruzada”. Trata-se de conquistar, para o cristianismo, as almas que teriam perecido para sempre, no paganismo ou no Império do Islã.

Oriundos de culturas e geografias diversas, da África subsaariana à oriental, os negros foram arrancados de seu habitat, para outro totalmente diverso, destituídos de suas relações sociais, econômicas e culturais, que envolviam especialmente sua cosmogonia e sua organização familiar. Foram, em princípio, nos séculos XVI e XVII, dispersos no meio rural, em virtude das características da monocultura açucareira. Face ao desenvolvimento da economia, do surgimento de atividades e necessidades decorrentes da expansão mercantil, da qual o próprio tráfico era uma das principais atividades, as cidades crescem em importância demográfica e passam a concentrar uma população cativa crescente. O surgimento da mineração, em fins do século XVII, especialmente em Minas Gerais, mas também em Goiás e Mato Grosso, amplia em muitas vezes o espaço territorial e econômico a ser administrado e multiplica a demanda por braços, que Portugal era incapaz de suprir.

Em muitas províncias e cidades, e no País como um todo, o número de escravos e de forros era bem superior ao de brancos. Por exemplo, em 1786, no estado de Minas Gerais, para uma população de 362.847 habitantes, os brancos representavam 18,09%, da população total. Os pardos e negros livres, 33,91%; os escravos, negros e pardos, 48,00%. Se somarmos a população escrava, com a de negros e pardos livres, chegamos a 81,91%, ou 297.183 pessoas (9). Na cidade de Salvador e arredores, censo realizado em 1808 informa números bem próximos aos de Minas, quanto à estratificação da sociedade. Para uma população total de 247.851 habitantes, os brancos representavam 20,35%; os negros e mulatos forros, 42,21%; e os escravos, 37,74% (10). O somatório da população cativa e forra de origem africana é de 79,95%. Esses números permitem algumas conclusões:

  • A população de origem africana, sejam escravos ou forros – 81,91% e 79,95%, respectivamente –, é bem superior a de origem supostamente europeia – 18,09% e 20,05%, na proporção de 5:1;
  • Dado que Minas Gerais começou a ser povoada na última década do século XVII e, cerca de 90 anos depois, 33,91% da população de origem africana ser livre, evidencia que as possibilidades de alforria eram significativas. Afirmativa que também pode ser estendida para a cidade de Salvador e arredores;
  • A sociedade de então, embora fundada no preconceito racial, na exclusão e na prevalência da escravidão como relação principal de trabalho, assistia a expressiva e crescente participação de trabalhadores livres, que, embora estigmatizados e marginalizados, se inseriam em uma economia cada vez mais diversificada e complexa.

Nesse contexto, as irmandades de cativos e forros irão desempenhar um papel preponderante para a manutenção da ordem vigente. Por um lado, como instituições capazes de “assimilar” e controlar um contingente demográfico bem maior que o da população branca, em grande parte associada aos interesses econômicos vigentes. De outro, subsidiariamente, serão importantes para a organização social, viabilizando ações de ajuda mútua, com vistas a amparar seus membros e suas famílias, em caso de doença, prisão ou morte. Além disso, serão responsáveis pela preservação e manutenção da identidade cultural, com mecanismos e graus de intensidade distintos, a depender da norma de filiação à irmandade. Em muitas delas, a aceitação dependia da origem étnica, Mina, Angola, Moçambique. Em outras havia mais flexibilidade, permitindo a associação de escravos, independentemente da nação, de forros, mulatos e brancos.

Igualmente relevante, no que diz respeito à adoção em maior ou menor grau da religião católica, ou sua sincretização com práticas religiosas africanas ou afro-brasileiras, é a localização geográfica da irmandade. Nas do Rio de Janeiro, de Pernambuco e, especialmente, da Bahia, há claramente uma maior permanência de práticas e elementos da religiosidade africana, materializadas, na atualidade, no candomblé, na umbanda e no xangô. Nesses estados, onde algumas irmandades começaram a funcionar, ainda no século XVI, houve um tempo maior de sedimentação dos valores culturais africanos. Ademais, a demanda por mão de obra cativa e o comércio com a África perduraram até meados do XIX, mantendo um fluxo cultural e econômico constante (11). Enquanto em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, ao contrário, esta percepção não é tão evidente. Deve-se principalmente ao eclipse do Ciclo do Ouro, na primeira década do século XIX, fazendo com que esses estados, em grande parte, ingressassem em uma economia de base agropecuária, muitas vezes de subsistência, o que provocou a redução da população, especialmente a urbana, e a consequente ruralização.

A administração altamente centralizada protagonizada por Portugal (12) determinava a exportação de instituições para as colônias, em moldes praticamente idênticos aos existentes em Lisboa e outras cidades portuguesas. As Santas Casas da Misericórdia são um exemplo dessas instituições, que remanescem até a atualidade. Da mesma forma o são as irmandades, confrarias e ordens terceiras, com origens no medievo europeu. As primeiras – dado o seu apartamento das ordens religiosas, o que permitia um grau maior de liberdade de organização – foram locais de religiosidade, associativismo e sociabilidade de negros, crioulos, forros, pardos, mulatos e brancos.

O esforço de catequese empreendido pelos portugueses, no Brasil e na África, inicialmente no Congo, desde o século XVI, encontra nas irmandades e confrarias um espaço privilegiado. A Igreja e o Estado, os donatários e os colonizadores se articulam para imprimir às irmandades uma configuração litúrgica culturalmente mais próxima dos cativos. Nossa Senhora do Rosário, vinculada ao trabalho dos dominicanos na África e em Portugal (13), onde os negros já tinham relevante presença antes do Brasil, é entronizada como a “mãe” dos africanos, cativos ou libertos. Basta ver a quantidade de igrejas a ela consagradas em todo o País. Contudo, e isso pode ser observado com a trajetória histórica das religiões afro-brasileiras, uma santa branca, embora poderosa na qualidade de mãe de Jesus Cristo, não seria suficiente para atrair para o culto católico um contingente populacional que era então majoritário, com raízes culturais cuja diversidade é uma das características.

A valorização como objeto de culto, de santos e santas negros, etíopes e núbios, foi parte de uma estratégia utilizada no processo de cristianização. Em resumo, pretendia-se que, através do trabalho e da obediência, os africanos se tornassem cristãos, sem deixar de ser escravos. As ordens religiosas mais importantes, como os jesuítas, dominicanos, franciscanos e as carmelitas, desenvolveram um grande esforço para a promoção dessas entidades. De 322 irmandades coloniais mineiras, identificadas por Caio Boschi, 73 eram diretamente ligadas a oragos invocados por cativos e libertos, sobressaindo-se Nossa Senhora do Rosário, com 62 (14).

São Benedito é até hoje o mais popular, faz parte do folclore e do cancioneiro, estando presente em um sem número de orações, cantigas e folguedos. Embora menos populares, Santa Efigênia, Santo Elesbão e Santo Antônio do Categeró são devotados em várias igrejas e capelas, especialmente na Bahia, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais (15). A divulgação dos seus testemunhos de vida, igualmente marcados pela humildade e obediência e pelo trabalho, foram utilizados para ampliar a identidade de escravos e forros, com os fundamentos da Igreja católica. Perseguia-se uma “igualdade” no plano religioso e espiritual, que não deveria abalar o estatuto da escravidão. Paradoxo de difícil compreensão na atualidade era então aceito como uma determinação divina e um imperativo econômico. Desse encontro desigual de povos e nações, uma determinada a submeter às outras, é que irá emergir não só uma nova religiosidade, mas uma nova cultura e um novo País. Darcy Ribeiro, em seu último livro, “O Povo Brasileiro”, em sua visão profética de profundo conhecedor da gênese do país, nos lega uma acurada percepção desse processo contraditório e violento: “A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente a nação” (16).

Da mesma forma, Alberto da Costa e Silva, historiador, poeta e diplomata, e um dos maiores estudiosos das relações Brasil/África, sintetiza a relevância histórica e social da escravidão: “O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja a nossa origem. Afinal, sem a escravidão, o Brasil não existiria como hoje é e não teria ocupado os imensos espaços que os portugueses e mamelucos lhe desenharam. Com ou sem remorso, a escravidão foi o processo mais importante de nossa história” (17).

As irmandades eram bastante disseminadas por todo o País, especialmente na Bahia, em Pernambuco, Minas Gerais e no Rio de Janeiro, estados onde a documentação disponível e o número de estudos e pesquisas são maiores. Embora tipicamente urbanas, dada a concentração demográfica e o aparato administrativo, militar e econômico, ocorriam também em vilas e arraiais, estabelecendo vínculos com o meio rural. Seu crescimento e sua expansão estão no cerne de sua dicotomia e contradição: de um lado Igreja e senhores – nem sempre com propósitos e métodos convergentes – estimulando a associação para estabelecer o controle social e assegurar a continuidade da escravatura e a manutenção da ordem; de outro, o contingente de cativos e libertos a procura de espaços de sociabilidade, ajuda mútua e identidade cultural e da almejada liberdade, em uma sociedade discriminatória, onde a vida do escravo, segundo Charles Boxer, era “dura, brutal e curta”. (18)

Para cumprir suas finalidades sociais, tarefas em sua maior parte, hoje típicas de Estado, as irmandades demandavam, na terminologia contemporânea, sustentabilidade financeira. Some-se a essa já excessiva responsabilidade, pela qual hoje pagamos vultosos impostos, a de construir igrejas, legado mais aparente de sua existência na atualidade. Para tanto se valiam de várias fontes de receita, dentre elas: 1) Contribuições dos irmãos, na forma de “jóias” e anualidades; 2) Esmolas; 3) Doações diversas e receitas de festas; 4) Ofícios religiosos – enterros, casamentos, batizados, missas; 5) Legações testamentárias; 6) Aluguéis de imóveis herdados (19). Além das receitas mencionadas, havia as expressivas contribuições dos senhores, seja na forma de “jóias” ou anualidades de seus escravos, seja no apoio financeiro à construção de templos, segundo registram autoras como Julita Scarano e Célia Maia Borges (20). Tal atitude, fundamental para o financiamento e funcionamento das irmandades, decorria da necessidade de demonstrar prestígio social e estava integralmente em conformidade com a orientação da coroa portuguesa, de difundir um catolicismo “obediente” entre os cativos e libertos.

Os encargos associativos variavam de duas a oito oitavas de ouro (21), fora a anualidade em média de duas oitavas. Para os irmãos que ocupavam cargos nas “mesas”, o equivalente às diretorias atuais, os valores eram ainda maiores. Especialmente os “reis’, as “rainhas” e os “juízes”, posições de destaque e de grande expressão na hierarquia das irmandades. Valores muito elevados, mesmo para os escravos de ganho, que compartilhavam suas rendas com os senhores, considerando-se que, ao final do século XVIII, um escravo custava entre 250 e 300 oitavas de ouro (22).

Embora sejam escassos os registros e livros-caixa das irmandades, especialmente as de escravos e forros, o que dificulta sobremaneira o trabalho de apuração das receitas e despesas, as responsabilidades para com os seus associados eram muitas, agravadas pelo quadro de pobreza e abandono, especialmente no que diz respeito aos idosos, já sem capacidade de trabalho. Era comum serem “libertados”, passando a viver de esmolas ou da ajuda de seus pares e da caridade pública. O número de doentes e enfermos, assim como dos órfãos, era muito elevado. A expectativa de vida na primeira metade do século XIX era inferior a 35 anos. A de um escravo era menor ainda (23), dada as duras condições de trabalho, o que tornava negativo o crescimento demográfico desse segmento e incentivava ainda mais o tráfico.

Apesar de todos esses aspectos críticos, a população de negros e mulatos forros cresce de forma consistente na província de Minas Gerais, situação que pode ser considerada análoga para as demais unidades territoriais do País. Em 1786, como já citado anteriormente, era de 35% da população total. Em 1808, 22 anos depois, esse percentual ascende a 41%. Várias são as razões apontadas por diversos autores. O crescimento mais rápido do contingente de mulatos, sobre o total de forros – 73% –, indica a aceleração do processo de miscigenação, onde as uniões eventuais ou duradouras, entre senhor e escrava, eram principalmente determinadas pela relação servil, que, muitas vezes, dentro da penosa situação de adversidades do cativeiro, resultava em algum benefício, que poderia ir de um melhor tratamento até a alforria de mãe e filho (24). Situações como batismo, casamento e morte, bem como o reconhecimento à prestação de bons serviços, também eram utilizadas para alforria. Esta poderia ser gratuita, condicional, ou onerosa.

A coartação (25) foi uma modalidade também muito utilizada. Consistia em um acordo prévio entre o cativo e o senhor, pelo qual a alforria era concedida, mediante o pagamento de quantia pré-estabelecida, amortizada em prazo determinado. Foi muito facilitada pela existência dos denominados “escravos de ganho”, que compartilhavam o produto de seu trabalho com seus senhores e eram um contingente expressivo nas cidades nos séculos XVIII e XIX. Embora tenham atuado no sentido de promover a alforria de seus membros, estudos e pesquisas hoje disponíveis não permitem mensurar qual a dimensão da participação das irmandades no processo de emancipação do trabalho servil. Algumas funcionaram com regularidade, como a de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos, citada por Verger (26). As alforrias gratuitas, condicionais e por coartação, eram com certeza amplamente majoritárias, frente às decorrentes da ação solidária de emancipação das irmandades (27).

 Contudo, existem registros relevantes, como o da Irmandade do Rosário dos Pretos de Antônio Dias – localizada em Ouro Preto/MG – da qual em seus primórdios teria feito parte o lendário “Chico Rei”. Reza a tradição, que, com seu trabalho nas lavras, acabou por libertar seu filho, a si próprio e a vários membros de seu povo de origem, o que lhe teria permitido recuperar a realeza. Em função das datas ou minas muito ricas que explorava, Chico Rei e sua irmandade ficaram conhecidos pelo fausto de suas missas cantadas, onde os irmãos usavam roupas vistosas e coloridas e eram acompanhados por cantos e instrumentos africanos.

Segundo registro no Livro de Belas Artes do Iphan, ao final das missas, havia a lavagem das carapinhas das negras, nas pias de água benta da igreja, depositando o ouro que traziam como pagamento de suas anuidades. Embora a história de “Chico Rei” seja hoje reconhecida como parte do imaginário local, fruto de uma nota do livro História Antiga de Minas, de 1904, de autoria de Diogo de Vasconcelos, não comprovada documentalmente, o fato é que a irmandade era economicamente poderosa, conforme atestam os numerosos recibos de encomendas, feitas a mestres e artífices locais, quando da construção da Igreja de Santa Efigênia, um dos mais vistosos templos de Ouro Preto (28).

O incentivo e patrocínio da classe senhorial inibiam as iniciativas e manifestações de liberdade das irmandades, seja pela alforria decorrente de ajuda mútua, seja por revoltas ou insurreições. O que não quer dizer que elas não ocorressem. É importante mencionar que a rebelião urbana mais importante e massiva do período escravocrata foi a denominada “Revolta dos Malês”, ocorrida em 1835, na cidade de Salvador, formada em grande parte por negros nagôs islamizados – afastados, portanto, do aparato ideológico da Igreja, organizados que estavam em torno de outra identidade religiosa e étnica (29).

Aos beneficiários da escravidão, não interessava a libertação de seus cativos, seja por razões econômicas, seja por razões psicossociais, decorrente de uma tradição elitista e preconceituosa de aversão ao trabalho manual. Contudo, embora tardiamente, o preço do escravo foi se tornando cada vez mais elevado, à medida da maior necessidade de mão de obra, decorrente da diversificação e ampliação da economia, com o passar dos anos. O advento do fim do tráfico negreiro, em 1850, e a intensificação crescente da campanha abolicionista, que ocasionou um grande aumento no número de fugas, tornaram o preço do escravo por demais elevado, o que gradativamente ampliou a competitividade do trabalho livre e a emigração de trabalhadores europeus.

Os muitos autores que têm pesquisado o papel social das irmandades na sociedade colonial, como Fritz Teixeira de Salles, Julita Scarano, Caio Boschi, Célia Maria Borges, Mariza de Carvalho Soares, Luciano Figueiredo, entre outros, apontam sua função de assimilar e acomodar as tensões e insatisfações de cativos e forros, no âmbito da religião, que pregava amor ao próximo, humildade, obediência e trabalho. Esse processo não só promovia a aculturação, como reduzia o risco de rebeliões. Algumas questões estão presentes em quase todos os trabalhos, como, por exemplo, os esforços para a manutenção da identidade cultural e a necessidade de um espaço de convívio, protegido de uma sociedade discriminatória.

As irmandades eram parte do aparelho estatal da colonização, onde religião e cultura, por determinação dos meios de produção, são utilizadas como elementos de inoculação de valores e de hegemonia de classe. Abrigar-se sob o manto da Igreja era, então, uma das poucas aspirações libertárias que estavam ao alcance dos cativos, a par de seu papel primordial de controle social e manutenção da ordem escravista. Esta circunstância será determinante na intensidade de aceitação dos valores do catolicismo. Tanto ocorreu a conversão à religião católica, de forma exclusiva, como a simultaneidade da mesma, em maior ou menor grau, com a religiosidade africana ou afro-brasileira (30). Basta verificar na atualidade a ocorrência do sincretismo religioso, cuja intensidade está diretamente relacionada ao processo histórico da escravidão, em cada cidade ou região. Minas Gerais, mais próxima da adesão exclusiva, e a Bahia, mais especificamente a região do Recôncavo, mais próxima da simultaneidade, são ilustrativos desse fenômeno, que ocorre com matizes diferenciados pelo País afora.

A extensão e a permeabilidade da ação das irmandades eram vastas e abrangiam todos os segmentos sociais. Era como se organizava a sociedade colonial e mais tarde a imperial, com resquícios que adentram os primeiros decênios do século XX. Entre nós, muitas vezes convivem o passado e o presente, em proximidades impressionantes. Embora sejam necessários pesquisas e estudos mais profundos, que se utilizem especialmente de fontes primárias, são seguros os indícios de que a sustentação financeira de grande parte das irmandades era patrocinada tanto pelo Estado, como pelos senhores, além de estimulada pelo Clero. Especialmente no que diz respeito à construção de igrejas, devido aos seus elevados custos, e das obras de arte que delas indissoluvelmente faziam parte e que envolviam a pintura sacra, a estatuária, a marcenaria, a talha, a cantaria, as alfaias e demais elementos constituintes das igrejas barrocas, confrontados com as escassas possibilidades de geração de renda de cativos e libertos. O que não quer dizer que, em vários casos, os membros das irmandades não tenham participado, seja financeiramente, seja com sua mão de obra e reconhecida aptidão técnica e artística, como estão aí para comprovar entre muitos outros, as contribuições, por exemplo, do Aleijadinho e de Mestre Valentim.

É fundamental lembrar que o barroco estava inserido no contexto da contra-reforma e da expansão mercantilista – da qual Portugal era dos principais protagonistas – e a arquitetura foi, como continua sendo, entre outras coisas, um eficaz instrumento cultural de irradiação de ideias e conceitos. No Brasil, primeiro no litoral e depois em Minas Gerais, principalmente, assume feição singular, distinta da matriz europeia e da América espanhola. O barroco, materializado na arquitetura e nas artes, é utilizado para desenhar a metáfora da vida celestial, em oposição à vida terrena, caracterizada pela passagem de um exterior singelo e despojado, para a exuberância da talha dourada, das pinturas e da visão perspectiva, em um sutil jogo de convergências, que permite a antevisão do paraíso (31). Affonso Ávila, poeta e eminente historiador do barroco brasileiro, contextualiza de maneira precisa esta finalidade: “O novo estilo, caracterizado pela exuberância de formas e pela pompa litúrgico-monumental, atuaria como instrumento ao mesmo tempo de afirmação gloriosa do poder temporal da Igreja e de impacto persuasório sobre uma mentalidade social que se debatia entre os valores da tradição católica e a filosofia renascentista que liberava suas novas verdades” (32).

Jean-Jacques Rousseau nos fala que “Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem” (33). Em oposição a uma ordem avassaladora que impunha a escravidão, não só como relação de trabalho, mas como uma política permanente de Estado, peça fundamental do comércio ultramarino, português e brasileiro, a resistência da população cativa e liberta foi permanente. Ora explícita e ruidosa, como em Palmares ou na Revolta dos Malês, ora silenciosa e fecunda, moldando um novo povo e uma nova nação. O que todos os homens e mulheres anseiam é a liberdade. Mesmo que no caminho tenham que construir uma igreja.

notas

1
BAZIN, Gemain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro, Record. 1983, p.11. Embora fora do escopo da obra, como elucida o título da mesma, o autor ignora a arquitetura desenvolvida pelos autóctones, que em muitos casos, a depender da etnia, atingiu e ainda atinge sofisticadas soluções estruturais e de arquitetura, embora marcadas pelo caráter efêmero dos materiais utilizados.

2
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p.166.

3
GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasildas origens à extinção do tráfico. 3. ed. São Paulo, Alfa-Omega, 1975, p. 279. Goulart realiza extensa pesquisa e crítica às estimativas de Calógeras, Eschewege e Rocha Pombo, entre outros. Seus números coincidem com os de Roberto Simonsen, publicados em História econômica do Brasil, 1937.

4
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes – formação do Brasil no atlântico sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 43-389. A estimativa de Alencastro é superior a de Goulart em 500.019 escravos e mostra que 53% do total dos cativos ingressaram no Brasil, entre 1781 e 1850, ano da extinção do tráfico, indicando que a demanda por braços era crescente, vinculada principalmente à expansão da agricultura cafeeira. O ingresso de cativos no Brasil, 4.000.019, foi superior ao da América Britânica e EUA, 2.195.200, e ao da América Espanhola, 1.511.440.

5
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 146.

6
BOSI, Alfredo. Op. cit., p.147.

7
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. 4. Ed. Salvador, Corrupio, 2002, p. 521.

8
BUESCU, Mircea. Brasil: problemas econômicos e experiência histórica. Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 47.

9
GOULART, Maurício. Op. cit., p. 144.

10
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 22.

11
VERGER, Pierre. Op. cit., p. 31.

12
RUSSEL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, p. 192.

13
BOSCHI, Caio César. Irmandades, religiosidade e sociabilidade. In: História de Minas Gerais, Tomo II. REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 63.

14
BOSCHI, Caio César. Op. cit., p. 68-69.

15
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e identidades: significados do culto de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais no Setecentos, p. 61, 62, 63. 01/08/2011. Disponível em <www.categero.org>.

16
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, p. 20.

17
SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio Chamado Atlântico. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003, p. 72.

18
BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português. 1. Ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 135. A violência contra o escravo era institucionalizada e foi comentada por inúmeros autores. Por exemplo, Antonil (em Cultura e Opulência do Brasil, p. 91) registra: “No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano.”

19
BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas irmandades do Rosário. Juiz de Fora, Editora UFJF, 2005, p. 89.

20
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão, 2. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, p. 67-113. O apoio financeiro dos senhores às irmandades, seja para a construção de templos, seja para a manutenção das atividades cotidianas, foi amplamente estimulado, tanto pelo governo quanto pelas autoridades eclesiásticas, embora existissem outras fontes importantes, como esmolas, aluguéis e anuidades dos irmãos.

21
BORGES, Célia Maia. Op. cit., p. 89. O valor das anuidades para filiação a uma irmandade variava entre duas a oito oitavas de ouro. Uma oitava equivale a 3,586 gramas. Em valores atuais (julho/2011), uma oitava valeria R$ 287,00. Como à época, meados do século XVIII, o ouro era moeda corrente e a oferta bem maior, seu valor era bem inferior à cotação atual.

22
GOULART, Maurício. Op. cit., p. 166.

23
GOULART, Maurício Op. cit., p. 164. Além de mais expostos as doenças, dado as precárias condições de trabalho,em muitas regiões o numero de homens era bem superior ao de mulheres, o que inibia as uniões e determinava uma baixa taxa de natalidade.

24
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 69.

25
PAIVA, Eduardo França. Depois do Cativeiro: a vida dos libertos nas Minas Gerais do século XVIII. In: História de Minas Gerais, Tomo I. REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 509.

26
VERGER, Pierre. Op. cit., p.549

27
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 68.

28
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Processo nº 75-T, Inscrição nº 241, Livro Belas-Artes, 1939, p. 42.

29
REIS, João José. Op., cit., p. 545.

30
PAIVA, Eduardo França. Op., cit., p. 515.

31
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e rococó na arquitetura religiosa da Capitania de Minas Gerais, Tomo II. REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 375, 376.

32
ÁVILA, Affonso. Barroco Mineiro glossário de arquitetura e ornamentação. Ensaio introdutório, 3. ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1996, p. 05.

33
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo, Nova Cultural, 2000, p. 62.

sobre o autor

Luiz Philippe Peres Torelly é arquiteto e urbanista.

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