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João Masao Kamita faz uma crítica sobre o projeto do novo Museu de Arte do Rio - MAR.


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KAMITA, João Masao. Sobre o MAR. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 155.00, Vitruvius, maio 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.155/4759>.

A entrada realmente impressiona. No amplo vão entre duas edificações, uma poderosa cobertura requalifica o que era mero vazio em espaço comum.  Este o gesto primordial do projeto: tornar o um e o outro o mesmo. Antes duas diferenças irreconciliáveis, inimigos históricos de uma batalha pela arquitetura – modernismo x ecletismo – agora conformadores de um todo complexo e inclusivo. Nesse jogo entre diferenças reconciliadas, um elemento se tornou fundamental: o circuito de circulação.

Chega-se por entre os edifícios, onde se encontra a bilheteria. Tomam-se os elevadores do prédio modernista: a visita começa por cima. Ao chegar ao terraço, somos imediatamente agarrados pela deslumbrante paisagem, tantas vezes reencenadas pelas imagens turísticas que quase não sabemos se é real ou um cartão postal. A projeção da cobertura ondulante avança e repousa sobre o terraço do palácio eclético. No prolongamento do horizonte vemos o píer, a ponte, a imensa baía da Guanabara. O terraço modernista reitera a ideia da cidade como obra de arte. Ainda sob o impacto de tal espetáculo, descemos por uma generosa escada em caracol, que lembra a do Ministério da Educação e Saúde (MES), chegamos ao pavimento abaixo, cuja claridade e leveza chamam a atenção. Este espaço funciona como hall de entrada pela sua situação intermediária entre exterior e interior – nem fechado como no interior dos espaços expositivos, nem aberto como no terraço, mas permeável e translúcido (ali inclusive se encontra a maquete do Museu que nos permite entendê-lo como um todo). Catracas de controle nos indicam que estamos na entrada do museu propriamente dito. Nesse ponto a sensação se inverte. Do aéreo e aberto, somos arremetidos por um túnel profundo e fechado até chegar aos reservados e introspectivos espaços de exposição. Estes são como interiores cavernosos, voltados totalmente para si mesmos, como casulos a proteger o tesouro da arte.

Começando pelo último pavimento, o espectador faz a passagem da paisagem vista para a representada (“O rio em imagens”), duplicação que pretende demonstrar que paisagem não é algo que está lá fora, mas é um olhar que a constrói. Depende muito mais de quem olha do que é olhado.

Nos andares inferiores, desfilam duas coleções com “arte pura” – Coleção Boghici e Fadel – clássicos da história da arte em miniatura (uma de cunho mais universal – Coleção Boghici – e outra mais local – Coleção Fadel), com peças de real valor e importância. Finalmente, no piso que corresponderia ao térreo (nesse ponto já não temos muita certeza de onde realmente estamos), encontramos a arte, depois de a vermos preservadas em assépticos cubos brancos, tentando reatar relações com a sociedade na mostra “O Abrigo e o terreno: arte e sociedade no Brasil”.

Mas pondo de lado essa descrição das sensações no percurso do espaço arquitetônico, tentemos abordá-lo de uma perspectiva mais dilatada. Afinal, desde sua inauguração, o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) ultrapassou a condição de mero fato arquitetônico para ser tratado como verdadeiro evento público, e é justamente nessa visada ampliada que pretendemos olhar o projeto.

De fato, o Museu foi tratado como marco inaugural da recuperação da cidade. Ante a frustrada promessa da Cidade da Música, convertido num anticlímax, o MAR sinaliza o momento de otimismo e transformação positiva, um ícone dos novos tempos. Pelo menos é assim que a mídia o tem tratado.

Inevitável a sua relação com o projeto Porto Maravilha que pretende revitalizar a ampla área do porto, bem como os bairros vizinhos da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A Praça Mauá surge nesse contexto como uma espécie de grande antessala dessa nova cidade que se anuncia: o grande hall do Porto Maravilha. Justamente por isso a área ficou reservada para a instalação de marcos culturais: o MAR e o Museu do Amanhã (no píer). Essa transformação está em curso, a própria praça é um imenso canteiro de obras, e do alto do terraço vemos a imensa “cratera” escavada que serve de poço de manobras à obra subterrânea da nova via que atravessará desde o início do Aterro do Flamengo até a altura do Armazém 8 na Gamboa. Um ponto mais à frente, no Largo São Francisco da Prainha, outra “cratera” de operações faz a região trepidar com as explosões diárias que abrem as entranhas da terra. Essa via subterrânea será a substituta do elevado da perimetral, cuja demolição começou em abril de 2013. Ampliação de vias de superfície e novos túneis para VLTs e BRTs completam o quadro de projetos e obras de infraestrutura. Além disso, haverá liberação de novos usos e do gabarito da região, segundo o modelo das CEPACs (Certificados de Potencial Adicional das Construções) para financiar as operações urbanas, estabelecendo parcerias público-privadas de equacionamento entre Estado e mercado. Os impactos dessas operações de mobilidade, novos usos e verticalização são concretos e precisam ser seriamente considerados, na medida em que se estima um aumento da população de 22 mil para 100 mil na próxima década (1).

Frente a esse contundente processo de transformação urbana, do qual o MAR é parte integrante, como se posiciona o projeto? O prédio da antiga Polícia Civil Metropolitana, em cujo térreo funcionava o Terminal Rodoviário Mariano Procópio (2), e o Palácio Príncipe D. João, com funções administrativas, nasceram voltados para a Praça Mauá. Apesar de serem representativos de tendências opostas de arquitetura, não passam de coadjuvantes tardios do combate entre o modernismo e academicismo. Não haveria por que inibir-se com excessiva reverência ao existente. O prédio modernista sofreu uma operação de subtração de paredes e parapeitos, ficando praticamente vazado, com leve vedação nas fachadas maiores, na verdade lâminas verticais de vidro esverdeado que ora funciona como painel de fechamento ora como brise. O que vemos é uma alternância dessa pele translúcida que reveste os andares e as faixas horizontais brancas que marcam as lajes, tudo isso apoiado sobre pilotis. Aqui o que domina é a ordem da transparência. O bloco eclético foi restaurado, conservando sua impostação clássica e seu caráter de bloco firmemente assentado no solo. Mas, transformou-se numa caixa hermeticamente fechada, com vãos de portas e janelas vedados, impedindo qualquer relação entre interior e exterior. Seus quatro pavimentos têm o mesmo esquema espacial: caixa de serviços e circulação no centro e duas grandes salas de exposição nas laterais.

Duas atitudes de projeto se percebem nesse modo de abordagem com o patrimônio arquitetônico. No tipo modernista, a operação teve uma diretriz, poderíamos dizer mais linguística. A subtração (inclusive do último pavimento para abrigar o terraço) ocorreu para explicitar os elementos de linguagem que marcam a gramática de nossa arquitetura moderna. Isto é, o pilotis, a fachada livre com seus brises, o terraço, a estrutura independente com a marcação clara entre lajes e colunas. As inclusões podem ser lidas como “citações estilísticas” óbvias das coberturas ondulantes de Oscar Niemeyer, das cores padrão e a escada circular do MES. No tipo historicista, a atitude foi preservacionista, prevalecendo o ato da restauração, especialmente a recuperação dos ornatos da fachada e esquadrias, e na recuperação da cúpula e das coberturas. No interior, a operação foi a de abrir os espaços livrando-se das paredes existentes.

Dois edifícios num mesmo. Um, a escola do olhar; outro, o Museu. No conjunto, um centro cultural: o MAR. A grande cobertura, mais que uma citação estilística, é um gesto de articulação, de colocar sob um mesmo domínio aquilo que se achava separado. Daí a razão do percurso de visitação começar pelo terraço, ponto em que todas as dimensões podem ser vislumbradas.

Esse modo de articular o novo e o existente com a estrutura de cobertura me fez lembrar do projeto de Jean Nouvel para a ampliação do Museu Reina Sofia, de Madrid. A extensa e alta parede do edifício antigo, que antes separava interior do exterior, agora se converte em limite de uma espacialidade urbana, na verdade um amplo pátio vazado no qual habitam volumes soltos unificados pela grande cobertura. 

Contudo, se visualmente o gesto formador dessa cobertura-nuvem é contundente, do ponto de vista das relações espaciais e programáticas, devo confessar que senti certo incômodo, justamente por esse anunciado movimento de integração e continuidade se afirmar em certos pontos e se interromper bruscamente em outros.

Por certo, é intencional a desconexão entre exterior e interior no Museu, em função dos interesses museográficos e curatoriais, sem dúvida. Porém, essa obstrução começa tão logo deixamos a Escola do Olhar para adentramos o túnel, como que num percurso ritual, tivéssemos que nos preparar, a bem dizer, romper com as amarras da realidade cotidiana e comezinha, para adentrarmos o templo sagrado da arte. Nos interiores do Museu, a realidade material, histórica e funcional do antigo edifício foi apagada. Não sentimos aquelas paredes espessas interrompidas por vãos regulares, não sentimos o peso do teto ou a firmeza do piso, não percebemos o contraste luminoso entre a parede sombria e a janela em arco recortada, não conseguimos sentir a memória do uso e da vida anterior do edifício (3). Apenas por um instante, ao passar de uma sala para a outra, percebemos o fosso do elevador de metal contornado pela escadaria de madeira e acima o vão da cúpula. Se o lugar da arte é estar fora de contexto, qual o valor de tanto cuidado e esmero na restauração das fachadas com seus inúmeros ornamentos? Não há como nos relacionar com o antigo, tão somente ele está lá como um cenário por onde passamos simplesmente.

Chama atenção no projeto do MAR a reiteração de um modus operandi: muito foco no objeto arquitetônico em detrimento da situação urbanística que envolve a edificação. A ênfase na construção do objeto, bem como a sensibilidade para com a paisagem, se dá em contraposição à dificuldade em incluir o urbano no processo de projeto.

Menos praça, mais mirante.

Uma das ideias dominantes foi ampliar a fachada, tornando plano único o que eram formas separadas. Esta extensibilidade ressaltou a frontalidade do Museu, pois a intenção era relacioná-lo à praça e a vista que dela se abria. Assim, o eixo de centralidade que ordenava o palácio eclético foi deslocado para o vão entre os dois blocos. O contraste de espacialidades, no entanto, foi mantido e enfatizado: a pesada solidez intransponível do palácio; a leveza e transparência do prédio modernista. Essa frontalidade não é apenas da ordem do tratamento das fachadas, mas mostra-se na ordem das disposições funcionais. A plataforma de cobertura que abrigava as baias do antigo terminal rodoviário Mariano Procópio, rua interna situada entre o Mar e o prédio da Polícia Federal, agora serve para os setores de apoio e serviço, ocupado pelas bilheterias, área técnica, café, loja, museografia, etc. Quando a rodoviária estava em funcionamento, a plataforma e o pilotis encontravam-se em situação de continuidade (a cobertura em abóbodas, que sinalizava essa conexão, passou a ser ocupada pela livraria e pelo café), agora rompida já que preenchida por uma série de anexos que fecham a passagem.  Aquilo que se insinua com o grande vão entre os dois blocos como acesso livre, e por extensão o vão livre do pilotis, perde sentido. O contato com as ruas limítrofes se interrompe, a espacialidade que gira ao redor dos dois blocos é bloqueada, na medida em que tudo se volta para a praça (4).

O mesmo raciocínio se observa na conexão suspensa – o expressivo túnel cravado nas costas das edificações – e, no terraço, a alocação do restaurante espreme os espaços, tanto o interior quanto os da parte do terraço, que tem apenas o panorama da praça e da baía como cenários liberados.

Resumindo: o funcional, o técnico, os serviços, enfim aquilo que constituiria os espaços servidores, todos empurrados para o fundo, relegados à condição subsidiária para privilegiar os espaços servidos. Em si, essa estratégia não tem nada de equivocado. Mas, no conjunto resultante, repõe uma ordem hierárquica entre a figura e o fundo, entre o artístico e o funcional, entre o estético e o técnico, entre beleza e utilidade, dicotomias há muito questionadas e superadas. Parece-me, para ser franco, uma posição conservadora e elitista, que deposita no artístico da arquitetura – no caso, na forma e na composição (típicos valores acadêmicos) – o suporte para a afirmação de uma imagem de impacto.  No domínio do híbrido, do rizomático, do quiasma, do entre, seja lá o que mais estas palavras da moda da contemporaneidade queiram dizer, uma coisa é certa: todas desacreditam do mito da pureza, das distinções claras, das ordenações binárias.

Para o meu gosto, justamente a fachada oposta é a que mais atraente, pelo seu aspecto complexo e contraditório, onde nenhum acordo harmônico foi aparentemente buscado. Ao contrário, não há como não perceber a falta de transição no agressivo acoplamento da passarela suspensa, no desalinhamento entre os blocos, na pobreza de ornamentação da face de fundos do bloco eclético (sem rusticações, sem molduras de vãos trabalhados, sem pórticos, cúpulas, balcões), na alternância entre panos cegos e partes vazadas e no volume opaco do terraço do bloco modernista. Nessa conjunção algo disparatada, a cobertura ondulante, com seu “beiral” pronunciado se singulariza como mais um componente desse conjunto de disjunções que conforma esse “todo difícil e inclusivo” (5).

Há, sim! A grande cobertura. O móvel sinuoso remete, como vimos, aos inúmeros projetos modernistas que tinham nessa estratégia o modo de torná-la ativa e participante da espacialidade global do edifício, evitando assim a sensação de mero fechamento inerte. O plano flutuante em oposição ao telhado convencional. Um suspende o edifício, outro o empurra para baixo. Niemeyer sempre tirou partido desse recurso. A graça de seus projetos estava na liberação do solo e na levitação provocada pela leveza do desenho de cobertura viabilizada pela técnica moderna. Na cobertura do MAR, a leveza dos pilares de apoio, no limite de esbeltez, revela a intenção de fazê-la pairar sobre os prédios existentes (com todos os riscos técnicos decorrentes, como o efeito cortante no encontro com a laje e a flambagem dos perfis pelo peso da imensa casca de concreto). Contudo, a aleatoriedade da curvatura do plano afasta-se da graciosidade do desenho de Niemeyer, e denuncia uma tensão contemporânea entre o formal e o informal: a figura é geometricamente retangular, mas as ocorrências curvas obedecem a uma livre rítmica. Tal fluidez remete mais a um plano líquido, cuja oscilação varia com as condições atmosféricas vigentes. Aí se mostra o melhor do projeto: quando a luminosidade do dia atinge um nível tal que faz vibrar todas as superfícies, tornando-as planos iluminados. Nesse instante de epifania luminosa, a obra, sobretudo o edifício modernista, se transforma em dispositivo radiante numa perfeita simbiose com o meio ambiente ao redor e a cobertura fluida reflete a luz por baixo. Mas sabemos que tais instantes se esvaem rapidamente, então a cobertura assume a função de ser área de sombra com peso visual atuando no sentido da força de gravidade. Aí a cobertura pesa. Essa diferença também se deve às múltiplas condições de visada da edificação e dos distintos modos de visualização do projeto.

Quando o conjunto é visto em plano frontal, tal como nos desenhos de elevação, o plano desaparece para dar lugar à linha sinuosa. Há correspondência proporcional entre a dupla altura do pilotis no bloco modernista, a cúpula do Palácio e a cota da nova cobertura. No entanto, a vista mais comum de quem se aproxima e adentra a obra é a do nível do chão. Desse ponto de vista, que é diagonal, a cobertura parece muito elevada, especialmente quando passa a cobrir o edifício eclético. Nessa visada de baixo para cima, a cobertura aparece grande, pesada e, no limite, deselegante. Essa paradoxal diferença é reveladora da crucial diferença entre o concebido e o percebido. 

O plano da concepção ocorre mediado por sistemas de representação e de equivalência. Plantas, cortes e elevações em escala prefiguram o objeto antes de sua corporificação. É claro que são uma simulação abstrata, porque abstraem várias condições da realidade empírica. Numa visão em elevação, o centro de gravidade da visão coincide com o ponto médio da composição. De certa distância e a certa altura, temos a visão ideal do conjunto (que no caso do MAR ocorre mais ou menos no centro da Praça Mauá e, mais ou menos, a 5 metros do solo). Mas, no plano da percepção sensível, o campo está sempre mudando, pois a visão se dá em movimento e os ângulos de visão variam a cada passo. Não há centro ideal, não há posição para a apreciação da obra. Muito menos, aquilo que está ao lado e ao fundo surge de modo secundário. Na percepção, já nos ensinou Merleau-Ponty acerca de Cezanne (6), tudo aparece simultâneo ao campo da visão. Nessa profundidade total, o corpo íntegro percebe e concebe o espaço. Quer dizer: o que vemos nas representações de projeto não é o que percebemos no espaço real. Movimento e contaminação são inerentes ao estar no espaço, uma condição ideal de visada só é possível sob de condições muito controladas.

Não creio que os maiores problemas do edifício decorram das deficiências de construção, pelo acabamento tosco, pelos detalhes imprecisos, pelos materiais de qualidade duvidosa, pela pressa em inaugurar a obra etc. Desconfio seriamente que os problemas que percebemos sejam mais profundos, graves, básicos, mesmo. O problema é anterior, encontra-se no plano da concepção. Isso quer dizer que o MAR seja um mau projeto arquitetônico? Não necessariamente. Mas este me parece o principal problema: somos incapazes de afirmar se o projeto é bom ou limitado, se tem boas ideias ou se é gesto autorreferente e hedonístico. 

A cobertura é engenhosa e inteligente, no entanto, nos colocando do outro lado da praça, no início da Av. Rio Branco, seu efeito é problemático: ao unificar dois tornando-o um, ela monumentaliza a obra. A passarela suspensa, igualmente, é um lance inesperado e prova que circulação pode ser expressiva, porém se esconde na fachada dos fundos e, espacialmente, mais desconecta que integra. A continuidade espacial é plena na Escola do Olhar, mas no Museu é interrompida. À busca de máxima variação na Escola encontra antítese no modo homogêneo e esquemático da divisão espacial repetitiva do Museu: seus quatro pavimentos não se diferenciam, tudo se torna o mesmo. A liberação do pilotis como espaço-praça encontra limite no fechamento de dois lados do perímetro (isso desconsiderando-se os panos de vidro que a vedam para a Praça Mauá) e, apesar de voltar-se para a Praça, a praça não é superfície que continua, não entra no espaço do MAR, não se comunica com o tecido ao redor. O aproveitamento da marquise do antigo terminal rodoviário é arqueologia inteligente, mas ocupá-la com funções meramente secundárias bloqueia a fluidez do espaço, transformando-a em mera faixa de serviços. O terraço oferece um horizonte deslumbrante, mas é apenas parte (a mais privilegiada) da paisagem. O lado oculto, a outra paisagem é tecido truncado, cheio de disparidades, de tipologias tradicionais entremeadas por arranha-céus abruptos, parte morro, parte vegetação, parte casas empilhadas, parte grandes armazéns abandonados. Essa outra paisagem é que está efetivamente está em movimento e modificação pelas vias redesenhadas, pelos túneis escavados, pelas vias subterrâneas, pelos novos empreendimentos imobiliários, justamente o lado desconsiderado como possibilidade de visada.

A vista liberada para a baía, a destacada fachada, a abertura visual para a praça, enfatizam uma imagem parcial. Aí a ironia maior se revela: para uma instituição que tem a ambição de se colocar como “Escola do Olhar”, nem todos os olhares parecem incluídos nessa equação.

O problema do projeto do MAR, em minha opinião, é a falta de radicalidade. Várias ideias interessantes são esboçadas, mas nenhuma é assumida com radicalidade, de modo decidido e decisivo. A consequência dessa carência é o compromisso, a busca de “harmonizações” que recaem quase sempre na solução da forma compositiva.

Outra debilidade seria a pouca complexidade, ou mais exatamente, a carência de problematicidade. Afinal, o MAR faz parte do processo mais amplo que coloca a cidade em questão. Não incluir o que efetivamente está em jogo nesse processo de transformações urbanas em curso – o jogo político, os interesses econômicos, a retórica propagandística da mídia, o discurso em favor da renovação que mascara a destruição evidente, a indistinção entre os interesses públicos e privados, a falta de transparência orçamentária – para pensar apenas e exclusivamente em arquitetura, concentrando-se somente no objeto arquitetônico, reduz o fato arquitetônico à condição de mero ornamento na construção da cidade, aquilo que oferece uma face de beleza e impacto num primeiro momento, mas numa sociedade de imagens, sabemos que a mais nova imagem tende a se esgotar, para ser logo substituída pelo novo espetacular.

A euforia atual com a retomada do ciclo construtivo na cidade do Rio de Janeiro por conta dos investimentos gerados pelos grandes eventos não quer dizer automaticamente a emergência da “nova arquitetura carioca”.

* * *

Ninguém pode ser ingênuo para acreditar que a arquitetura pode resolver todos os problemas, nem muito menos acreditar que o processo de projeto é um “céu de brigadeiro” que flui de modo tranquilo e contínuo. Há pressões de toda a espécie, negociações com poderes de decisão além do arquitetônico, conciliações necessárias com as exigências técnicas, concessões aos caprichos e à imprevisibilidade da política, limitações econômicas, ajustamento a cronogramas irracionais e um sem número de fatores envolvidos e igualmente complexos.

Mas quem é do ramo, sabe que há decisões de projeto e mesmo considerados os fatores exteriores, por alguns instantes, sob o regime de um código exclusivo aos arquitetos, de posse de um saber específico, ele sabe que pode em algum grau subsumir todas as complexidades e definir, escolher, optar por entre alternativas apresentadas aquela que, de posse de plena autonomia, achar a mais sintonizada com seu modo de pensar, de ver a realidade, de expressar sua verdade em arquitetura.

notas

NE
O texto foi publicado originalmente no blog Cumulus Nimbus, no dia 18 de maio de 2013. 

1
Dados colhidos no site http://portomaravilha.com.br/web/sup/OperUrbanaApresent.aspx

2
Após a transferência para a Rodoviária Novo Rio, o edifício foi ocupado pelo Hospital Militar

3
O único traço de pré-existência são as colunas clássicas na primeira fila de apoios, com seu capital compósito. No entanto, encontram-se meio escondidas tanto pela montagem, especialmente a do 4º pavimento com seus esquemas circulares, quanto pela indistinção cromática em relação ao teto e as paredes museográficas.

4
Até mesmo esse voltar-se para praça é relativo, uma vez que essa linha divisória é fechado por painéis de vidro. Com três lados fechados, a ideia de fazer do pilotis uma praça só funciona a rigor na entrada, na parte mais para a extremidade fica com ar de indiscutível abandono. Razões de segurança devem ter contado para tal proteção, especialmente neste momento em que a Praça é um imenso canteiro de obras. Talvez após a conclusão das obras os painéis de vidro possam ser retirados. O espaço, sem dúvida, ganharia muito com tal liberação.

5
A expressão é de Robert Venturi, no seu livro Complexidade e Contradição em Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2004, 2ª edição.

6
Merleau-Ponty, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In. O Olho e o Espírito. São Paulo, CosacNaify, 2004.

sobre o autorJoão Masao Kamita é arquiteto, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e professor da PUC-Rio nos cursos de graduação em História e de Arquitetura, e atua no programa de pós-graduação em História Social da Cultura na mesma universidade.

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