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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Quando se trata de uma cidade pensada em perspectiva tão otimista e utópica como Brasília, encarar sua situação atual e refletir sobre o presente torna-se uma tarefa fundamental.

español
Brasilia needs to expand the challenges not only for facing the future as used to be, but for facing modern heritage. Facing the present is the most important task that this article explores upgrading another one already published.


how to quote

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio: desdobrar desafios e encarar o presente. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 159.02, Vitruvius, ago. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.159/4845>.

Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização (1)
Clarice Lispector

Cabe à inteligência retomar comando (2)
Lúcio Costa

O planejamento urbano assemelha-se a uma grande orquestra em permanente execução: ainda que a música não tenha sido escrita por um só compositor, não prescinde da integração de todos para levar o projeto, ou a obra, a cabo. O esforço conjunto, porém, resulta de uma única cabeça e de um só coração (3)
Lúcio Costa

Este artigo tem o objetivo de recuperar e/ou desdobrar questões relativas à preservação e ao patrimônio moderno de Brasília, aprofundando tais questões e os aspectos que foram tratados no artigo “Brasília-patrimônio: cidade e arquitetura moderna encarando o presente”, que por sua vez, foi apresentado no Enanparq 2012 e publicado no portal de arquitetura Vitruvius, depois de revisto (4). Tal continuidade parece importante, não apenas porque o assunto não se esgota, mas também porque possibilita manter uma reflexão sobre Brasília que se inicia com as pesquisas de pós-doutorado, que se amadurece com o trabalho junto ao Iphan e que se diferencia por habitar a cidade. Já adianto que esta reflexão não se esgota aqui e que o assunto permanece aberto para outras especulações.

As ideias que se seguem não pretendem elaborar uma tese ou uma visão definitiva sobre quaisquer assuntos tratados. O que se pretende é apontar questões que podem contribuir com um debate mais ponderado sobre a cidade e sobre a preservação de sua arquitetura moderna. Uma vez que existem inúmeros aspectos que já foram tratados e/ou que já deveriam ter sido incorporados às reflexões sobre Brasília, mas que, no entanto, permanecem desconsiderados, adianto também que tal abordagem e que tais observações poderão soar repetitivas.

Quando se trata de uma cidade tão singular, pensada em perspectiva tão otimista e utópica, torna-se necessário recobrar o sentido cotidiano inerente a uma cidade. Brasília permanece instigando o desafio de projetar, de preservar e de inventar. A retomada crítica dos nexos da experiência de Brasília é oportuna para pautar uma reflexão no panorama de nossa contemporaneidade. Se o debate internacional já lança olhares críticos ao pós-modernismo, nós ainda temos muito a fazer com as experiências e com os resultados de nossa própria modernidade. Afinal, atualmente, pensar Brasília em termos de êxito ou fracasso apenas revela a falta de conhecimento sobre a dimensão que o funcionamento da cidade possui, do fluxo humano sobre seu território e da importância simbólica e regional que sua implantação conquistou.

Num âmbito mais específico – ou mais “doméstico”, digamos – há muito que se fazer para melhorar o nível do debate público sobre a preservação de Brasília, em Brasília. É preciso superar o esquematismo reducionista, para muito além do mero “pode” ou “não pode” que incide sobre quaisquer assuntos correlatos ao tombamento e à preservação, para poder estruturar um debate legítimo sobre a condução dos desígnios futuros de uma cidade-capital. Entre extremos e entre extremistas há muito que apontar para definir uma agenda e consolidar um ambiente de diálogo profícuo entre vetores da sociedade e o Governo Distrital, bem como com o Governo Federal. Um diálogo entre tais instâncias é parte de uma construção constante e parte de um processo de aprimoramento democrático para pensar cidade. Há pouco tempo houve grandes alterações dos agentes públicos envolvidos diretamente no processo de preservação de Brasília, incluindo ministro, presidente e diretores de autarquia, superintendentes e secretários distritais. Tudo isso instaura novas possibilidades e novos parâmetros para a construção de um debate mais qualificado e objetivo.

Neste sentido, a própria imprensa local poderia ter uma atuação mais atenta e constante. É comum tratar como sinônimos, questões de peso e envergadura distintas. Assim, repito que para qualificar os termos de uma discussão, seria produtivo diferenciar o que é “agressão”, “infração” e “irregularidade” das regras e das normas urbanísticas em relação à área tombada, pois tudo se reduz em “agressão”, como se o Plano Piloto de Brasília fosse algo frágil e em risco latente de total desintegração!

À guisa de exemplo, considere-se o caso recente do proposta aventada para estacionamentos subterrâneos na Esplanada dos ministérios. O Correio Braziliense de 1 de fevereiro, no caderno Cidades, fez uma reportagem sobre o assunto. A demanda por vagas de estacionamento é um problema comum das cidades brasileiras e não uma exclusividade da capital, havendo soluções arquitetônicas de alta qualidade para resolver tal desafio de projeto. Sem precisar recorrer a exemplos estrangeiros, tome-se como referência competente a solução do estacionamento realizado pelo escritório MMBB, sob os jardins do Trianon, em São Paulo. No caso da Esplanada, o assunto é apresentado com indicações gerais (número de vagas, quantidade de pisos subterrâneos) e com ilustrações da proposta. Falta aprofundar diversas questões, tais como: de quem é o projeto? Como é a solução de respiração no gramado da Esplanada? Como é a saída de pedestres junto aos Ministérios? Como é o acesso de veículos? Quais os impactos dessa proposta? Como a proposta se apresenta em relação às questões da Portaria? Enfim, essas e muitas outras indagações não são aprofundadas, ou mesmo são desconsideradas, mas precisam ser minimamente esclarecidas para configurar uma boa informação ao leitor, ao cidadão. Ocorre o contrário: o assunto some da pauta. Sem informações o debate fica enfraquecido e sem referenciais, fato que valoriza as informações de bastidores e abre espaços para detrações e para manifestação de toda sorte de argumentos daqueles que se arvoram os legítimos “defensores” de Brasília, em oposição aos supostos “destruidores”, construindo o esquema maniqueísta de “bons X maus”, que ignora o assunto em pauta, mas que reduz tudo a um mero problema de “pode” ou “não pode”.

Para explorar mais o assunto tomado como exemplo – estacionamentos subterrâneos na Esplanada – considero que é preciso compreender a Esplanada dos Ministérios como uma super-estrutura urbana, com seus subsolos, com sua vias paralelas e espaços urbanos contíguos, devidamente integradas a uma visão sobre sua potencialidade de uso e implantação de infraestrutura de transporte de massa. Por exemplo, um bonde (tram) poderia ser implantado nas vias N2 e S2 instaurando usos efetivos nesses espaços, ampliando sua utilidade e seu significado. Assim, antes de qualquer proposta mirabolante seria possível estudar as conexões entre um lado e outro da Esplanada dos Ministérios através de uma galeria semi-enterrada, nos moldes da Galeria dos Estados, definindo espaços de permanência, cafés, lojas e ambientes de interesse coletivo que construam uma articulação no sentido Norte-Sul dos tecidos urbanos conexos à Esplanada, e às vias N2 e S2. A complexidade da Esplanada se amplia quando se observa os usos e ocupações dos espaços públicos com ambulantes e vendedores de toda sorte, bem como a heterogeneidade atual dos espaços públicos entre cada bloco ministerial. Para tanto, recobrar a possibilidade de intervenção (através de concurso público internacional) de implantar a marquise de serviços, conectando com proteção e qualidade os blocos ministeriais, conforme a Portaria n. 314/1992-Iphan indica.

Enquanto a hipocrisia pode grassar entre discursos de matrizes ideológicas sortidas, variando do tom apologético ao elogio vazio – afinal, todos querem preservar Brasília! – a cidade precisa seguir vivendo o seu normal, ou seja, viver o seu cotidiano urbano a despeito do monumental e do midiático. O uso cotidiano do Plano Piloto de Brasília revela a situação de descaso com o espaço público é patente, sendo premente reverter tal quadro de calamidade. Para tanto, somente com ações de intervenção, com um projeto de desenho urbano efetivo, cuidadoso e atento a acessibilidade do cidadão, com passeios, calçadas, bancos, iluminação, bicicletário, ciclovias, iluminação, paisagismo, mobiliário urbano, etc, que proporcionem e viabilizem o pleno uso do espaço público. Ou seja, para a cidade-capital funcionar há muito o que projetar e planejar. Para cumprir ser desígnio máximo de ser a cidade-capital do Brasil, Brasília não pode mais ser uma cidade mal tratada e mal cuidada, tornando-se quase um arremedo de si própria.

Gostar, odiar e entender

Desenhada na linha do horizonte, sobre uma topografia suave, delimitada por um lago e com uma abóboda celeste potente, Brasília é artificial. Talvez seja preciso ainda muita maturidade – lembremos de Ouro Preto – pois Brasília está em construção. Se por um lado, a formação de Brasília se faz por um amálgama humano que se cataliza com interesses e oportunidades heterogêneas de atração de mão-de-obra e trabalhadores qualificados, com diversificadas ambições, por outro lado, a cidade é formada por uma população com as mais variadas origens, que tem orgulho de morar aqui, de ter seus filhos e de viver aqui. Os que odeiam a cidade são muitos, mas há um sentimento de gostar da cidade absolutamente difuso. A cidade tem seus heróis, seus personagens, seus músicos, seus poetas, seus jornalistas, seus artistas, seus fotógrafos, seus esportistas, suas religiões, seus folclores, suas estórias, seus arquitetos e urbanistas, além de seus políticos (5).

Hoje parece ser possível gostar de Brasília sem o peso trágico dos herdeiros do esforço inaugural, sem se ancorar no “passado esplendoroso” de caráter civilizacional a que seu projeto pertence. O ar seco ainda é puro, há brisa e muito vento, o céu é lindíssimo, inebriante e a paisagem do cerrado, marcante. Cinéfilos, autoridades, assessores, ascensoristas e policiais podem se misturar numa plateia do Teatro Nacional para assistir um concerto; pode-se encontrar o embaixador da Itália numa pizzaria: coisas de Brasília. A recente visita da UNESCO detonou uma saraivada de indagações dos novos alunos de arquitetura: “mas professor, nós vamos perder o titulo?”. Diante da provocação notei este “nós” pode sinalizar um apreço salutar e uma maneira cotidiana de lidar com a cidade-patrimônio. A cidade é um fato, existe, acontecem coisas extra-políticas e é preciso circular e querer ver o seu normal: Brasília não é obvia! A comemoração dos 50 anos foi uma oportunidade perdida, que deve servir de motivação para fecundar uma reflexão menos casuísta, mais oportuna que oportunista.

Há ainda um fenômeno curioso sobre a cidade: Brasília precisa ser “entendida”! Desconheço a demanda de “entender” São Paulo, Veneza, Nova York, ou qualquer outra cidade, mas todos – arquitetos, urbanistas, historiadores, sociólogos, antropólogos, cineastas, fotógrafos, jornalistas, políticos... – precisam “entender” Brasília. Quase como um atavismo, parece que está no DNA de Brasília ser “entendida”, especialmente, é elementar, por todos os críticos de arquitetura. Desde 1959, com o Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte, quando “a cidade” era de fato um babilônico canteiro de obras, com muita poeira vermelha obras incompletas, as análises e abordagens já vaticinaram verdades, sacralizaram aspectos, imortalizaram mitos e sedimentaram imagens da cidade modernista com toda gama de mazelas que ela possui, desde sua gênese. Longe de qualquer bairrismo indago: até quando Brasília terá a sina de ser “entendida” por experts de todas as latitudes, que passam 2 ou 3 dias no Plano Piloto, querem “entender” tudo e ainda ditar regras sobre o que fazer ou não, para resolver aquilo que, pressupostamente, representa a falência múltipla do modernismo?

Planejar é preciso

O planejamento urbano do Distrito Federal tem impacto direto sobre o Plano Piloto de Brasília. Assim, para preservar o Plano Piloto é preciso planejar o Distrito Federal. As correlações entre planejamento, preservação e centro histórico já foram há muito tempo problematizadas pela Carta de Washington. Brasília tem um potente valor patrimonial – nacional e internacional – justamente por seu “conjunto urbanístico”, portanto, não se deveria pensar num “fazer cidade” ad hoc, com projetos (ou meras propostas) arquitetônicos e com projetos (ou meras propostas) urbanísticos pontuais, desarticulados, com obras e alterações viárias sem conexões sistêmicas, ou eleger intervenções sem correlações com um projeto de planejamento urbano consistente, e com um planejamento em escala regional efetivo, afinal, trata-se da capital do país, não apenas de uma cidade (6).

O próprio título desta apresentação tem algo que parece elementar, mas em Brasília nada é óbvio! Encarar o presente para tratar/pensar sobre uma cidade pode parecer elementar, mas Brasília ainda é considerada com o peso excessivo do que se aponta no Relatório do Plano Piloto de Lúcio Costa e com as supostas glórias perdidas. Já existem contribuições sobre a história de Brasília, revelando as transformações formais que o plano urbano do Relatório sofreu para se configurar como arcabouço da cidade que foi sendo efetivamente implantada e construída no Planalto Central, com o devido “ok” de Lúcio Costa, para ser inaugurada pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1960. Reconhecer o valor histórico do Plano Piloto contido no Relatório de 1957 é fundamental, mas é preciso reconhecer seus limites como oráculo exclusivo para pautar ações futuras.

Para tanto, entendo ainda que é preciso reconhecer o valor histórico e o valor simbólico da Portaria n. 314/1992-Iphan, mas também é preciso repensar e efetuar uma abordagem criteriosa sobre suas limitações e sobre seu alcance como instrumento efetivo de preservação do Plano Piloto de Brasília – ora articulada com a Portaria n. 68/2012-Iphan, recém editada, e que define o entorno da coisa tombada. Há uma abordagem consolidada de que o tombamento de Brasília corresponde ao tombamento de uma ideia, concordo. Mas, para além da ideia tombada, o resultado desse tombamento tem implicações práticas sobre a gestão do espaço urbano e sobre a preservação dos edifícios que não conseguem ser abarcadas pela Portaria, abrindo um flanco perigoso de flexibilidade e interpretação.

Neste sentido, há algo comovente nos textos de Lúcio Costa quando aponta que “é preciso estar imbuído de lucidez e sensibilidade no trato dos problemas urbanos”, demandando do leitor – seja ele arquiteto, urbanista, morador, comerciantes, empresário, políticos e, no limite, gestor público – que tenha uma visão generosa e não restritiva para pensar a cidade. Lúcio Costa afirma que no enfrentamento dos “inúmeros problemas do dia a dia” das questões de preservação é preciso ter “disposição, firmeza e flexibilidade”, reconhecendo que se trata de “tarefa tantas vezes ingrata e inglória” para os técnicos...

Da parte de Lucio Costa parece bonito manter certa ataraxia ao pensar a cidade já com imensa perspectiva temporal. Afinal, ele sabe muito bem que uma cidade é feita em séculos e uma cidade-capital se consolida dentro de um campo de transformações políticas, sociais e culturais numa complexa correlação com seus tempos históricos. Hoje, é preciso investigar as tensões entre o ideário geral da cidade e o projeto urbano consolidado, a fim de debater alternativas e possibilidades novas, desdobrando seu projeto adiante. Há um conjunto de enfrentamentos políticos e urbanísticos de maior envergadura que demandam ações de efetiva transformação dos parâmetros e para isso será preciso superar práticas políticas obsoletas. Contudo, no horizonte de qualquer reflexão, o tombamento de Brasília tem que ser um fator sine qua non para pensar a cidade. O tombamento de Brasília não se pode ser tomado como uma mera questão contra a qual, ou apesar da qual, ou a despeito da qual, se pretende planejar, projetar ou refletir. O tombamento de Brasília não pode ser como a “Geni” da música de Chico Buarque, sendo ora “maldita”, ora “bendita”, a depender de quem dela se serve!

Dentro dos desafios atuais de Brasília cabe pensar seus espaços urbanos, e não apenas nos monumentos mas, sobretudo, no que existe e no que não existe de espaço urbano qualificado entre tais monumentos. O vazio difere do nada: entre os edifícios de caráter monumental e representativo da capital há falta de conexão, falta de correlação, de coesão, podendo reduzir Brasília num acúmulo de belos edifícios monumentais, o que não contribui para consolidar uma cidade-capital vivaz. Atentar para estes espaços intermediários pode inclusive ampliar o significado e a importância destes monumentos, articulando-os aos hábitos de usar e circular pelo espaço da cidade, cotidianamente. À guisa de exemplo, considere-se o percurso entre a Plataforma da Rodoviária do Plano Piloto e a Catedral de Brasília em que é preciso vencer uma distancia razoável e “caminhável” (walkable), mas que se configura num verdadeiro martírio.

Circular também é preciso

A circulação é o grande desafio de Brasília. Trata-se mais do que apenas um problema de mobilidade urbana, mas sim de uma visão estratégicas sobre a possibilidade de circular e fluir nos territórios da cidade para dela poder usufruir. O planejamento do transporte em escala regional tem impacto direto na área tombada, bem como com impacto sobre o tecido urbano do Plano Piloto. A Carta de Washington já apontou que deve haver um planejamento dos meios de transportes para equacionar os deslocamentos pelo território da área tombada e suas conexões com as áreas urbanas contíguas, sem comprometer a forma urbana do centro histórico. E não basta apenas implantar um sistema de levar e trazer gente para o Plano Piloto. É preciso trabalhar com redes de circulação através da integração de meios de transporte e percursos qualificados para os pedestres.

Em Brasília, diferentes modalidades de transporte de massa, articuladas entre si, podem se adaptar para serem implantadas no generoso arcabouço viário do tecido urbano do Plano Piloto e criar um sistema civilizado de circulação, condigno de uma Capital. Além de ampliar a rede e o alcance da estrutura metroviária, as estações de metrô do Plano Piloto podem ser parte de uma infraestrutura de conexão entre as quadras 100 e 200. Efetuando um competente ajuste topográfico estas estações podem funcionar como passagens e articular passeios e ambientes de estar, incluindo serviços e atividades urbanas entre as superquadras. Sistema de transporte de massa eficiente e abrangente, articulado com a melhoria absoluta da segurança pública são os dois fatores que podem transformar o uso, a vivência e o funcionamento de uma cidade, como ocorreu com Nova York. Com segurança e transporte, a população sai à rua, usa a cidade, circula e pode usufruir das infraestruturas por tempo muito maior, fomentando uma vida urbana animada.

A maldição da setorização

A setorização é outro aspecto da gênese do Plano Piloto que sempre é alvo de interpretações sobre o caráter modernista do DNA da cidade, sendo muitas vezes condenado a priori para as mais diversas mazelas. Ainda hoje, confunde-se a setorização do Plano Piloto de Brasília com a falta de um desenho urbano mais consequente para cada um dos setores urbanos. Um projeto de desenho urbano para cada um dos setores e para seu conjunto poderiam assegurar acessos, consolidar passeios, prover infraestrutura urbana e qualificar espaços urbanos, incrementando uma vida urbana animada ao possibilitar o funcionamento pleno de sua latente escala gregária. Os setores do Plano Piloto têm projetos e histórias a serem melhor investigados para poderem ser melhor criticados, uma vez que sua consolidação se deu em décadas e não apenas na fase heroica da construção da nova capital.

Em termos de paisagem, a concepção dos setores centrais do Plano Piloto – Setor Comercial, Setor Hoteleiro, Setor de Autarquias, Setor Bancário, Setor de Diversões... – sempre deteve a expectativa de maior adensamento, maiores alturas e maior variedade formal para construir um skyline do que é a cidade em seu caráter não monumental, configurando uma imagem para além da Esplanada e do Eixo Monumental. A concepção dos setores centrais anteviu no jogo volumétrico de seus edifícios, o contraponto adequado para a escala monumental. Este contrapondo justificaria a definição de uma escala gregária que se contrapõe, adequadamente, à escala monumental. Portanto, a verticalidade dos setores centrais e a diversidade de arquiteturas não constituem, por si só, como um problema.

A preocupação com as soluções do desenho urbano dos Setores Centrais, bem como as normas edilícias devem qualificar a consolidação de espaços públicos de transição e permanência entre os edifícios, com usos semipúblicos, áreas de estar e ambiente citadinos. Neste sentido, é imprescindível considerar a relação entre a forma urbana e suas arquiteturas, trabalhando com uma implantação cuidadosa, atenta ao desenho do pavimento térreo, recobrando que aqui que não há frente e fundo, pois as arquiteturas devem ser vistas de todos os lados.

Na inter-relação dos setores e na inter-relação dos valores da escala residencial, da escala gregária e da escala bucólica, os territórios urbanos definidos pelas Quadras 700 e Quadras 900 (Norte e Sul) também precisam ser objeto de ampla reflexão, a fim de qualificarem e complementarem os usos da área tombada. As quadras 700, 900 e talvez também as quadras 600, são fundamentais para assegurar a percepção volumétrica das superquadras e dos Setores Centrais do Plano Piloto. Talvez o adensamento e a maior diversidade de usos do Plano Piloto possa ocorrer nessas áreas, mediante estudos e análises técnicas qualificadas, independente de eventos de grande escala, tais como Copa do Mundo ou Olimpíada. Alem disso, torna-se premente identificar setores urbanos e/ou lotes com potencial transformação de usos para refletir e adiantar possibilidades de suas transformações, tais como o Setor de Indústrias Gráficas, Setor de Garagens Oficiais, Setor de Áreas Isoladas Norte etc.

As quadras 700 são um dos trunfos de Brasília na transformação de seu funcionamento, pois estas quadras poderiam ter estudos sobre seu adensamento, com vistas a não comprometer o tecido histórico das quadras 100, 200, 300 e 400 que configuram mais fortemente o Plano do Lucio, a imagem do Plano Piloto! Adensamento significa gente: gente morando, gente circulando, estudando, comendo, usando e demandando e propondo serviços... Trata-se de um tecido urbano que pode consolidar uma dose de normalidade a cidade-capital e que estabeleça um efetivo contraponto com o tecido histórico das superquadras. A falta desse contraponto urbanístico define um vasto território dentro da área tombada sem qualidade arquitetônica e urbanisticamente questionável. Trata-se de uma oportunidade de pensar o fazer cidade dentro dos limites da área tombada, crescendo por dentro, e não a quilômetros de distância.

Arquiteturas de Brasília

Para não ser mais que um arremedo de si própria, também é preciso avaliar a fortuna crítica das arquiteturas de Brasília diante da dinâmica de nossa própria produção edilícia. O peso da arquitetura representativa elaborada por Oscar Niemeyer, com imensa valorização dos aspectos formais não pode malograr a gestação de novas arquiteturas com outras estratégias de projeto. Longe de quaisquer arremedos de arquitetura modernista, é preciso potencializar necessária inclusão de arquitetura contemporânea de qualidade na área tombada, conforme preconiza o Memorando de Viena. Para tanto, os concursos públicos para contratação de obras de arquitetura se constituem como uma grande possibilidade de instaurar um amplo debate sobre novas arquiteturas para Brasília.

Ao mesmo tempo, torna-se imprescindível avaliar a fortuna crítica das arquiteturas de Brasília diante da dinâmica de nosso próprio campo epistemológico. Brasília possui um rol de arquiteturas muito mais heterogêneo do que se vislumbra preliminarmente, com a destacada presença de arquitetos de variadas origens e formações. Além da arquitetura monumental, Brasília possui uma vasta gama de edifícios que conformam um conjunto heterogêneo de arquiteturas, com obras importantes que mereceriam estudos visando o tombamento, como por exemplo, o edifício-sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Na âmbito da produção de arquitetura residencial das superquadras há hoje uma equivalência na proteção, sem distinção de suas qualidades arquitetônicas e urbanísticas, com exceção da “Unidade de vizinhança” (7). Tal fato demanda estudos sobre quais superquadras preservar e quais blocos merecem ser tombados, como por exemplo, a SQN 206, projeto do arquiteto Marcílio Mendes Ferreira (8).

Assim, é preciso estudar, analisar e valorizar um rol de arquiteturas que merecem algum tipo de proteção e preservação futura, para abrir possibilidades de renovação arquitetônica com inserção de arquiteturas contemporâneas. Somente com a retomada crítica dos nexos das experiências arquitetônicas da produção de Brasília, analisando suas estratégias, procedimentos e linguagens, é possível ampliar a compreensão dessa produção arquitetônica que permanece obliterada pelo peso simbólico da arquitetura monumental da capital, onde Oscar Niemeyer reinava absoluto.

Entendo que além da intensa qualificação do desenho urbano, Brasília demanda uma imensa quantidade de arquiteturas que venham complementar e contribuir com seu pleno funcionamento. Brasília também tem potencial para projetos de arquitetura que sejam suplementares aos edifícios de caráter monumental: arquiteturas que saibam ser mais o menos visíveis, mas que, sobretudo, construam espaços de transição e que abriguem o pedestre do sol e da chuva, que possibilitem conexão entre espaços, territórios e setores. Arquiteturas que saibam construir a cidade e pensar sua urbanidade.

Enquanto não se estuda ou não se valoriza essas tantas outras arquiteturas, há um rol de espaços, edifícios e lugares que merecem ações imediatas de manutenção para que seu funcionamento pleno possa contribuir com sua preservação. Afinal, é entendimento consolidado que a utilização de um bem é uma maneira de assegurar sua preservação. Neste sentido, destaca-se:

a) Plataforma Rodoviária do Plano Piloto;

b) Galeria dos Estados;

c) Parque da Água Mineral (oficialmente, Parque Nacional de Brasília);

d) Cine drive-in;

e) Autódromo Nelson Piquet;

f) edifício do Touring Club;

g) Parque da Cidade;

h) Centro de Convenções;

i) Setor de Difusão Cultural, onde se localiza a Funarte;

j) Esplanada dos Ministérios;

k) Casa de chá;

l) cobertura do Teatro Nacional;

m) Mirante da Torre de TV;

Além disso, é possível especular sobre um universo de edifícios, espaços e lugares que precisam ser projetados para ampliar o sentido de capitalidade que Brasília deve emanar como Capital Federal. Se por um lado, faltam calçadas, que representam o grau mínimo da civilidade urbana, por outro lado Brasília continuadamente vai demandar novas arquiteturas que possam complementar suas funções de cidade-capital. Assim, seguem abaixo uma possível seleção de novos edifícios a serem projetados como parte da inserção de arquitetura contemporâneas numa cidade que tem longa perspectiva temporal e que precisará de novas arquiteturas, para além das obras de Oscar Niemeyer.

Dentre estas novas arquiteturas entende-se que esta cidade-capital precisa de:

a) sede para o Arquivo Público do Distrito Federal;

b) sede para um arquivo nacional, com espaços e infraestrutura adequados para pesquisa;

c) edifícios para guardar os imensos acervos de papel do Senado, Câmara, STF, todo o Judiciário, etc;

d) sede de um memorial para os presidentes, com espaços e infraestrutura adequados para pesquisa;

e) museus com ampla infraestrutura técnica e programação vigorosa;

f) centros culturais (de interesse privado ou de diferentes autarquias: CCBB, Caixa) com programação vigorosa e integrada aos Estados e capitais;

g) centro cultural com espaços de pesquisa dedicado ao cinema, fotografia e novas mídias;

h) centro cultural com espaços de pesquisa dedicado à arquitetura brasileira;

i) centro cultural com espaços de pesquisa dedicado aos povos indígenas;

j) galeria de conexão simétrica à Galeria dos Estados, mas na Asa Norte, conectando o Setor Bancário Norte com o Setor Comercial Norte;

k) espaços comerciais com funcionamento 24h, como poderiam ser a Galeria dos Estados ou dos espaços de serviço das estações de metrô.

Brasília = cidade-patrimônio

Depois de tudo isso que foi tratado, ainda seria possível abordar muitas outras nuances das problemáticas urbanas de Brasília, tais como, por exemplo: a via W3, o uso do Lago Paranoá, o autódromo Nelson Piquet, a urbanização do Noroeste, as transformações junto a EPIA, a sub-utilização da Rodo-Ferroviária, a dinâmica sócio-espacial do CONIC e do Conjunto Nacional, o novo Estádio Mané Garrincha, a expansão da administração federal, as demandas por novas embaixadas, o processo de ocupação e transformação urbana da Vila Planalto, a especulação imobiliária no Plano Piloto, todas as áreas verdes e espaços de parque, o grande potencial gregário, como o Complexo Cultural da Funarte.

E no contexto dessas problemáticas da cidade, as arquiteturas modernas de Brasília recobram os problemas de trabalhar a forma e fazer dela o fator expressivo do arquitetar; reiteram o valor relacional do espaço; exploram as permeabilidades dentro/fora, cidade/edifício; demandam atenção com as tecnologias construtivas e valorizam o domínio do concreto armado. As arquiteturas de Brasília também evocam o valor da varanda como um ambiente de estar e convívio; valorizam a questão da paisagem, o significado do sítio e as condições geográficas; fortalecem o controle da luz, a importância da sombra, o sentido de abrigo; apontam para o valor da materialidade como expressão construtiva do edifício.

É a partir da compreensão destes aspectos que a preservação da arquitetura moderna de Brasília precisa ser enfrentada. Ao mesmo tempo, a preservação dessa arquitetura demanda a preservação da própria cidade, não sendo tal arquitetura um fato isolado. É também em meio à tensão arquitetura/cidade que as questões de preservação de Brasília como cidade-patrimônio precisam ser problematizadas para serem devidamente definidas. Hoje, ao explorar as tensões entre o ideário geral da cidade e o projeto urbano consolidado, torna-se possível formular alternativas para desdobrar na Brasília factual, a força latente contida no projeto inaugural da ideia da Capital. A arquitetura moderna e projeto moderno de cidade estão atavicamente correlacionados e a preservação e a manutenção de uma instância repercute, imediatamente, na outra.

Por fim, reitero meu entendimento de que o tombamento de Brasília é um fato. Formal e oficialmente, deve ser recobrado que o tombamento tem que ser tomado com um fator inerente a qualquer reflexão urbana, para planejar o território do Plano Piloto e do Distrito Federal. O tombamento não deve ser uma moeda de troca e não pode ser tomado como uma mera questão contra a qual, ou apesar da qual, ou a despeito da qual, se pretende planejar, projetar ou refletir. Considerando que Brasília é excepcional, torna-se imperioso reagir a quaisquer ações que pretendam transformar Brasília numa cidade comum, banalizando suas singularidades, seja por ignorância, ingenuidade ou má fé.

Diante de tudo isso, no contexto de uma Brasília tombada e com um patrimônio arquitetônico singular, entendo que é preciso equacionar a tensão entre o que efetivamente se transforma em detrimento do que supostamente se perde, com uma abordagem lúcida e crítica, tão vigorosa quanto o Plano que “pilotou” sua invenção. Parafraseando Lúcio Costa, cabe à inteligência retomar o comando e dar o tom para o “esforço conjunto” da orquestra do planejamento urbano.

Briga de casal no CONIC
Foto Eduardo Pierrotti Rossetti

notas

NE
Este artigo foi apresentado no seminário do Docomomo Sul, março de 2013, em Porto Alegre, na Faculdade de Arquitetura da UFGRS.

1
LISPECTOR, Clarice. Brasília. In LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 40-44.

2
Lúcio Costa in COSTA, Maria Elisa. Com a palavra, Lúcio Costa. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2001. p.11.

3
Lúcio Costa in Revista Módulo nº.71, 1982. p.71.

4
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio. Cidade e arquitetura moderna encarando o presente. Arquitextos, São Paulo, n. 13.149.07, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4547>.

5
Recentemente a coleção “Arte em Brasília: cinco décadas de cultura” aborda as miríades da produção cultural e das manifestações de Brasília.

6
Aqui, eu não abordarei a recente contratação que o Governo do Distrito Federal empreendeu junto de uma empresa estrangeira para elaboração um plano estratégico para do Distrito Federal, excluindo a área tombada. Faltam informações e tal assunto vale uma discussão própria. Tal reflexão deve trabalhar também com o PPCUB – Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, cuja situação é incerta.

7
Esta “Unidade de vizinhança” é formada pelas superquadras 107, 108, 307 e 308.

8
FERREIRA, Marcilio Mendes; GOROVITZ, Matheus. A invenção da superquadra: o conceito de Unidade de Vizinhança em Brasília. Brasília, Iphan-DF, 2007.

bibliografia complementar

Coleção Arte em Brasília: cinco décadas de cultura. 10 volumes. Brasília, Instituto Terceiro Setor, 2012.

COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.

COSTA, Maria Elisa. Com a palavra, Lúcio Costa. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2001.

LEITÃO, Francisco (Org.). Brasília 1960-2010: passado, presente e futuro. Brasília, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (SEDUMA), 2009.

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sobre o autor

Eduardo Pierrotti Rossetti, é arquiteto e urbanista; graduação FAU-PUC-Campinas/1999; Metrado FAUFBA; Doutorado FAU-USP; Pós-Doutorado FAU-UnB. Trabalhou como técnico na Superintendência do Iphan no Distrito Federal (2009-2011) e integrou o Corpo Docente da Escola da Cidade (São Paulo, 2005-2008). Filiação institucional: professor e pesquisador do Curso de Arquitetura e Urbanismo do UniCEUB (Brasília); professor credenciado junto ao PPGAU-FAU-UnB.

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