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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Edson da Cunha Mahfuz analisa os modos de ensino de arquitetura e seu reflexo nas edificações que constroem as cidades.


how to quote

MAHFUZ, Edson. Banalidade ou correção: dois modos de ensinar arquitetura e suas consequências. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 159.05, Vitruvius, ago. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.159/4857>.

1.

A observação minimamente atenta de qualquer cidade, e muito especialmente das cidades brasileiras, evidencia com sobras as deficiências da produção média atual. É óbvio que há produção de boa e até alta qualidade no país, mas essa é numericamente insignificante no panorama da construção civil brasileira. Essas deficiências se caracterizam pelo escasso entendimento da boa relação edifício/entorno, pelo excesso formal, pela predileção pela aparência às custas da substância da arquitetura, pela ineficiência energética e pela perversão do papel cultural da arquitetura, inúmeras vezes tornada meio de expressão individual e de impacto midiático.

A origem de alguns desses problemas contemporâneos pode ser encontrada em época tão distante como a primeira metade do século dezenove, quando a sensibilidade pitoresca levou muitos arquitetos a resolverem primeiro a aparência de um edifício –resolvendo suas fachadas de acordo com o efeito visual que criariam – para só depois encaixarem as necessidades programáticas como fosse possível. A isso se deve acrescentar a influência do romantismo, que permitiu a todo artista – condição à qual a maioria dos arquitetos sempre aspirou – tratar a suas obras como veículo de auto-expressão.

No entanto, a institucionalização desses interesses só aconteceu com a criação da Bauhaus e sua posterior migração para a America do Norte e sua área de influência. Por mais que os ideais do sistema BauHarvard (1) fossem elevados, os resultados do seu ensino em termos arquitetônicos e urbanísticos – exemplificado pela produção dos seus egressos – em sua maioria deixam muito a desejar. No entender de Vincent Scully, importante historiador norte-americano, a arquitetura resultante desse sistema era pequena em escala, anti-monumental e urbanisticamente destrutiva, além de não ser funcional nem estrutural – atributos sempre associados à arquitetura moderna – mas meramente pictórica (2).

O principal problema do sistema de ensino BauHarvard foi rejeitar a história e crer que era possível criar uma arquitetura relevante do ponto de vista cultural e social baseando-se numa suposta objetividade científica, que mais adiante se comprovou não ser tão objetiva como pretendiam seus propositores. O método de projeto propugnado por Gropius e seus seguidores incentivava a busca de soluções originais – no sentido de inéditas – baseadas em fatos objetivos, desencorajando e até impedindo o uso de precedentes análogos. Nesse método, os espaços eram concebidos como se fossem desempenhar apenas a sua função nominal, eram despidos de toda subjetividade e sua aparência tridimensional derivava diretamente do organograma funcional.

Essa suposta objetividade convivia com uma alta carga de subjetividade mal entendida. O aprendizado iniciava por um curso introdutório em que os estudantes realizavam composições espaciais abstratas de pequena escala sem lugar nem contexto, trabalhando com texturas e materiais variados num vazio de referências sem saber qual seu propósito e potencial de utilização posterior. Nos anos 1970 esse curso ainda era ministrado nas universidades federais brasileiras e seu elevado grau de abstração foi responsável por muitas desistências dentre os estudantes de arquitetura.

Outro problema é que muitas decisões de projeto eram tomadas com base em um “princípio do prazer” segundo o qual aquilo que me faz sentir um certo prazer – visual ou pseudo-tátil (3) – é necessariamente bom do ponto de vista projetual. A falta de critérios lógicos da arquitetura atual deriva pelo menos parcialmente desse modo de conceber o projeto.

Os efeitos do sistema BauHarvard podem ser resumidos deste modo:

1. Soluções planimétricas e volumétricas não relacionadas com o seu entorno imediato, o qual não era levado em conta no seu desenvolvimento;

2. Tratamento arbitrário dos elementos que constituem a aparência dos edifícios, sendo as soluções de fachada usualmente caracterizadas pela busca de efeitos puramente óticos e pseudo-táteis;

3. Empobrecimento da arquitetura como veículo de significados culturais pela promoção de qualidades visuais que só apelam às sensibilidades mais rudimentares;

4. Valorização da quota de ineditismo contida em cada projeto: para o método BauHarvard, quanto mais inédito, mais criativo;

5. Soluções equivocadas do ponto de vista de escala, fruto da transposição de processos tomados de trabalhos manuais de pequeno tamanho.

De um modo geral, pode-se dizer que o legado BauHarvard implica a abordagem de  cada projeto de edifício como se ele fosse isolado – isto é, sem um contexto significativo – e resulta em soluções de projeto que são, por um lado, puramente pragmáticas mas que visam, por outro lado, “criar interesse visual”.

Os problemas do ensino BauHarvard foram muito criticados a partir do final dos anos 1960, passando a ser o foco principal das críticas do chamado “pós-modernismo”, e são resumidos na frase “diagramas decorados”, com a qual seus produtos passaram a ser descritos(4).

A crítica “pós-moderna” conseguiu refrear por algum tempo práticas como a de tratar as fachadas como padrões abstratos desvinculados do que acontecia por trás delas e de criar volumetrias complicadas cujo objetivo era criar interesse visual, substituindo-as por uma arquitetura cenográfica baseada na apropriação de motivos históricos empregados literalmente, que acabou encontrando o seu verdadeiro lugar na Disneyland e em Las Vegas.

No entanto, passado o interregno “pós-modernista” e um certo período de confusão em que várias tendências disputavam o predomínio nas páginas das revistas, sites na internet e nos gabinetes dos políticos mais empreendedores, eis que ingressamos em um momento histórico em que nada é suficientemente complicado, em que os jogos óticos retornaram com toda força e a complicação volumétrica se tornou virtude. Não deveria surpreender ninguém o fato de que essa arquitetura “fluida”, “liquida”, plena de dobras e fachadas parametrizadas tem como seu reduto e nascedouro alguns dos mesmos locais em que o sistema BauHarvard floresceu, até mesmo porque ainda é possível encontrar resquícios desse sistema de ensino em muitas escolas de arquitetura em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

No período que sucedeu ao predomínio do sistema BauHarvard e ao chamado pós-modernismo apareceram duas tendências bastante claras. Proponho chamá-las de conceitualismo e digitalismo. Uma das tentativas de preencher o vácuo de critérios deixado pelo abandono da arquitetura moderna consistiu na adoção de conceitos como estímulos à geração formal e como modo de verificar o seu acerto, atribuindo-se o valor de idéias arquitetônicas a meras intenções. A origem da forma passa a ser um argumento discursivo geralmente desvinculado dos aspectos específicos de um problema de projeto e o seu desenvolvimento fica atrelado à materialização daquele conceito inicial. Não é difícil encontrar projetos bem conhecidos explicados por sua relação com a geografia, com “as curvas da mulher amada”, com animais pré-históricos, objetos do quotidiano, formações geológicas, etc. Num mundo voltado para o espetáculo e a gratificação imediata, é fácil constatar a aceitação desse expressionismo atualizado.

Já o digitalismo é o que temos de mais contemporâneo. A troca da prancheta e da régua T pelo computador oferece muitas possibilidades positivas mas isso infelizmente veio acompanhado do aparecimento de edifícios ondulantes, na forma de bolhas e que se dobram sobre si mesmos. Após termos nos inspirado em automóveis, barcos e aviões – no início do século vinte –, nas viagens espaciais – em meados do mesmo – agora nos dedicamos a seguir os avanços da tecnologia da informação e da biotecnologia.

“Atualmente um edifício é comumente um objeto impactante que visa glorificar seu proprietário e seu arquiteto e é indiferente, se não completamente nocivo, ao seu entorno físico e social. Sua planta é diagramática – uma expressão literal de relações funcionais – e os seus elementos exteriores que não se dedicam à proteção dos habitantes parecem se reduzir a um único propósito: excitar a visão – num sentido puramente psicológico – por meio de jogos formais. Os elementos que compõem a fachada desafiam interpretações intelectuais e mesmo emocionais porque não parecem ter nenhum significado além da própria existência; eles são simplesmente registrados pela retina.” (5)

A citação acima, na qual Klaus Herdeg se refere à arquitetura derivada do sistema BauHarvard e produzida nos anos 50 e 60 do século passado poderia, com a exceção da parte em itálico, ser usada para descrever os projetos que ocupam a maioria das páginas de revista e dos sites na internet. Apenas não serve na sua totalidade porque nos projetos atuais as plantas e a forma geral tem muito pouco a ver com as relações funcionais sugeridas pelos programas.

A pergunta que se impõe é: o fato de que podemos fazer algo significa que devemos fazê-lo necessariamente? A pergunta fica mais fácil de responder quando nos damos conta de que os edifícios ondulantes atuais não são projetados por causa de alguma nova necessidade – a única justificativa para o desenvolvimento da arquitetura – ou de novas técnicas de projeto, mas porque os arquitetos desejam aquelas configurações.

É importante notar que tanto conceitualismo como digitalismo estão em perfeita sintonia com o que muitos chamam de sociedade do espetáculo a qual, dominada pelos valores do mercado, subordina tudo ao seu valor de impacto midiático. O objetivo dessa arquitetura é raramente melhorar a cidade e, consequentemente, a qualidade de vida dos seus habitantes. Contribuir para a consolidação de uma determinada cultura tampouco faz parte dos seus objetivos. Muito pelo contrário, o que se percebe é uma obsessão pela novidade, pelo ineditismo, pelo impacto imediato, a tal ponto que o arquiteto brasileiro mais conhecido declarou mais de uma vez que o objetivo da sua arquitetura era “causar espanto”. Não é a toa que nossas cidades estão se tornando um amontoado caótico de edifícios “interessantes” e “criativos”.

2.

As consequências já conhecidas das abordagens projetuais brevemente descritas acima indicam uma crise no ensino de arquitetura e na sua prática, não obstante o fato de que nunca a arquitetura teve tanta exposição na mídia impressa e na televisão. O aspecto mais saliente e preocupante da crise atual é a ausência de critérios para projetar e avaliar a arquitetura que se produz. Os estudantes e arquitetos adeptos do conceitualismo e do digitalismo trabalham sem referências e partem do zero cada vez que projetam, o que significa uma enorme perda de tempo e de energia pessoais, sem falar nos danos culturais e ambientais que acarreta. Gostaria de sugerir que a auto-consciência e a capacidade crítica do estudante só podem ser despertadas e desenvolvidas pelo estudo crítico das formas e espaços que constituem a história da arquitetura. A arquitetura nasce da própria arquitetura, não de conceitos externos a ela ou dos seus instrumentos técnicos.

Em textos anteriores defendi a noção de que as origens da forma arquitetônica, a cada projeto, deverão ser encontradas no seu programa, no lugar em que será inserido e nas técnicas envolvidas na sua construção, e que as decisões tomadas a partir dessas três dimensões do problema arquitetônico são sintetizadas formalmente por meio do repertório projetual acumulado ao longo da história. Dito de outro modo, o projeto é uma síntese formal das necessidades do programa, das sugestões do lugar e da disciplina da construção.

Com essa definição abrangente como cenário, gostaria de centrar esta reflexão em três aspectos que considero fundamentais ao ensino de projeto: o envolvimento direto com a arquitetura como único modo de aprender a projetar, o entendimento da noção de forma como sistema de relações e a busca de identidade formal como um dos principais objetivos do projeto.

Além disso, o senso comum indica que o ensino de graduação não é lugar para experimentação, pelo menos nos moldes em que está estruturado atualmente. A obrigação de uma escola de arquitetura é transmitir o conhecimento que define o ofício e que possibilita ao futuro profissional servir a sociedade de modo correto e adequado.

3.

O ensino de arquitetura deveria sempre se basear na própria arquitetura. O que nós, professores, podemos realmente transmitir é o ofício da arquitetura, materializado nos projetos e edifícios que nos cercam ou que podemos conhecer por meio das mais variadas mídias. Para aprender o ofício da arquitetura é necessário envolvimento direto e constante com a sua matéria prima: seus edifícios e projetos.

Em um livro extremamente sugestivo, Helio Piñón sugere que “o aprendizado de projeto deveria ser pensado como uma (re)construção de materiais da arquitetura, guiada por critérios extraídos das próprias obras sobre as quais se atua” (6). Em outras palavras, a noção de projeto como (re)construção significa “a construção de uma nova ordem a partir de matéria prima verificada empiricamente” (7).

O que ele sugere é o envolvimento direto com projetos exemplares, seja pelo re-desenho ou pela atuação direta sobre eles. Em ambos os casos, se pode atingir o reconhecimento da formalidade e do sentido histórico da obra, coisa que em muitos casos nunca acontece ao longo dos currículos convencionais. Enquanto o normal é que se proceda do programa ao objeto, a proposta de Piñón inverte o processo, propondo que se descubra a lógica do programa a partir da identificação da ordem do edifício.

A adoção de um edifício de reconhecida qualidade como objeto de reflexão ativa fornece materiais de projeto – elementos e critérios de ordenação – que permitem a elaboração posterior dos mesmos materiais em situações variadas. Ao fixar o olhar sobre um universo ordenado, o estudante é levado a reconhecer os critérios de construção formal e material que determinam sua aparência. Além disso, “abordar a arquitetura a partir dos edifícios − e não desde os programas − tem a vantagem de mostrar a relevância da dimensão visual da concepção em comparação com o hábito de fazer referência a conceitos legitimadores” (8).

O que proponho é um trabalho constante sobre a arquitetura: o re-desenho de projetos exemplares como meio de adquirir conhecimento específico sobre os principais aspectos da arquitetura. Todo e qualquer edifício com o qual tenhamos tido contato íntimo − projetando-o, construindo-o ou redesenhando-o ­− nunca mais sairá da nossa memória, tornando-se matéria prima para futuros trabalhos. Isso vale tanto para bons quanto para maus projetos, por isso me parece seguro utilizar como objeto de reflexão ativa aqueles arquitetos e edifícios/projetos sobre os quais não paire dúvida a respeito da sua qualidade. Não haverá muita margem de erro se trabalharmos sobre os bons exemplos da arquitetura clássica − qualquer livro texto nos fornece uma lista suficiente − e da arquitetura moderna. Ou alguém negará a qualidade de gente como Le Corbusier, Mies van der Rohe, Louis Kahn, Oscar Niemeyer – até a década de 1970 –, Affonso E. Reidy, Rino Levi e Paulo Mendes da Rocha? (9)

Como a grande maioria dos estudantes de arquitetura não vive em cidades cuja arquitetura possa ser adotada como fonte de conhecimento, é preciso que se adote algum procedimento didático que possa lhes transmitir o conhecimento de que precisam para projetar. Viagens para visitar obras importantes ajudam muito, mas raramente o estudante poderá dedicar o tempo necessário para conhecer em detalhe cada obra visitada. Sendo assim, a atividade mais acessível, a que mais facilita a absorção do conhecimento inerente a projetos exemplares, é a sua (re)construção gráfica.

Esse procedimento não é uma invenção recente: há muito tempo estudantes de pintura, escultura e música começam a sua formação copiando obras dos mestres de cada área. Na própria arquitetura, a reprodução gráfica de projetos exemplares foi parte importante do ensino acadêmico originado na Belas Artes francesa, só interrompido pela adoção de um sistema alternativo como o da Bauhaus, que não dava a mínima importância para o conhecimento histórico. (10)

Jean-Nicolas Huyot, Templo de Fortuna, Praeneste, reconstrução, 1811. Os melhores estudantes da Belas Artes francesa eram enviados a Itália para reconstruir graficamente os monumentos da antiguidade clássica.
DREXLER, A. The Architecture of the Ecoles des Beaux Arts.

A (re)construção gráfica de um projeto pode ser feita de modo tradicional, por meio de desenhos realizadas na prancheta e de maquetes tridimensionais. Mas esse modo, quando comparado às técnicas atuais, revela-se limitado e limitante. A informática aplicada à arquitetura nos oferece programas de modelagem 3D que permitem um salto qualitativo em relação às técnicas tradicionais, desde que os utilizemos como instrumentos de projeto, em vez de subutilizá-los como ferramentas de desenho. Além das óbvias vantagens operativas relacionadas com a rapidez e a reprodução de elementos, os programas de modelagem 3D propiciam vantagens talvez não imaginadas pelos seus criadores:

- Como operam no espaço tridimensional, nos permitem a qualquer momento verificar e corrigir as decisões cumulativas de projeto.

- Facilitam a concepção atenta à multiplicidade e simultaneidade de escalas que incidem em um projeto: podemos passar da escala regional a do detalhe construtivo em frações de segundo.

- Pode-se simular a materialidade do objeto e a incidência do sol ao longo do dia e, consequentemente, desenvolver as soluções necessárias para sua proteção.

- Talvez sua qualidade mais importante seja a de que “substituem a representação gráfica das características gerais do edifício pela construção da sua arquitetura”. (11)

As vantagens do redesenho de arquiteturas exemplares podem ser ampliadas se estabelecermos como exercício a investigação de supostas alterações do programa original: isso permitirá ir além do reconhecimento do sistema e passar à exploração de suas capacidades operativas.

(Re)construção da Casa Fisher, Louis Kahn, Hatboro, Pennsylvania, EUA.
Modelo Gabriel Johansson [acervo Edson Mahfuz]

Exercício de projeto utilizando o Centro de Estudos de Arte Britânica, New Haven, de Louis Kahn, como referência
Projeto realizado na disciplina Prática de Proyectos II, ETSAB [Helio Piñón]

Até em exercícios menos ‘controlados’ − em que o estudante possa definir a estrutura  formal a adotar − pode-se oferecer um repertório de estratégias compositivas a serem testadas em situações programáticas e localizações específicas.

Talvez a consequência mais positiva e menos visível do ensino de projeto baseado na reconstrução de arquiteturas exemplares seja colocar o professor no seu devido lugar. Na maioria das escolas o professor de projeto é todo-poderoso: a sua opinião define o que é correto e o que não é – quase nunca colocado dessa forma, mas em termos de bom/ruim, gosto/não gosto –, muitas vezes sem que nenhuma explicação lógica acompanhe o seu veredicto. No entanto, como afirma sabiamente Helio Piñón:

“É irresponsável confiar nos professores de projeto para adquirir tais elementos e critérios: os professores devem atuar como intermediários entre a arquitetura e quem se prepara para praticá-la. O professor tem a obrigação de tornar evidente que a autoridade está nos edifícios, não nas suas opiniões: em suas intervenções ele deverá identificar e enfatizar os valores e critérios que se possa extrair deles.” (12)

Embora os apelos sejam muitos no sentido de que a arquitetura seja influenciada por qualquer oscilação do preço do petróleo ou nova invenção tecnológica, ainda está por surgir modo mais seguro e frutífero de aprender arquitetura do que o envolvimento direto e contínuo com a própria. É papel das escolas de arquitetura garantir que esse envolvimento aconteça.

4.

A seção anterior deixa clara a convicção de que a matéria prima da arquitetura é a própria arquitetura, não idéias oriundas da filosofia, sociologia ou qualquer outro campo do conhecimento humano, embora a arquitetura não deva ignorar o que acontece ao seu redor. Como corolário dessa afirmação, deve-se concluir que o lugar onde essa matéria prima se acumula é a cidade, entendida como qualquer aglomeração urbana, não importa o seu tamanho.

O entendimento de que arquitetura sai da arquitetura, e que seu lugar é a cidade, é a base de uma das noções mais importantes da arquitetura moderna, que define forma como um sistema de relações, e não como a aparência de um objeto ou conjunto de objetos. Como consequência, o significado de qualquer artefato arquitetônico é essencialmente dependente da relação interna entre suas partes e da sua relação com o entorno imediato.

As duas afirmações acima deveriam esclarecer dois mal-entendidos muito comuns na literatura sobre arquitetura. O primeiro tem a ver com o fato de que ao conceito de forma tem sido aplicados de modo indiscriminado dois sentidos opostos. Enquanto para muitos o termo forma se refere à aparência de um objeto, ao seu aspecto ou conformação externa, tornando-se sinônimo de figura (gestalt, em alemão), na arquitetura moderna forma se identifica com o conceito moderno de estrutura (eidos, em grego). O aspecto formal de qualquer artefato ou episódio arquitetônico sempre se refere à estrutura relacional ou sistema de relações internas e externas que o configuram e determinam a sua identidade.

O segundo mal-entendido é a afirmação de que a arquitetura moderna é indiferente ao seu contexto. Essa atitude é totalmente contrária à noção de forma recém discutida. Se a noção de forma possui um sentido relacional, ela é válida para todos os níveis ambientais, pois não tem escala, e afasta de vez a crença de que os objetos modernos são indiferentes ao entorno em que se inserem, o que violaria, se fosse verdade, um princípio essencial do pensamento criativo da modernidade.

Se aplicarmos a noção de forma relacional ao ensino de arquitetura (13) talvez se possa desenvolver atitudes que beneficiem a cidade, pois a vinculação à escala maior tenderia a reduzir as possibilidades de criação de projetos que contrastem sem contribuir para a elevação da qualidade do entorno. É interessante notar que, em relação à maioria dos projetos que são publicados nos meios mais populares, quanto mais extravagante a sua configuração menos vinculados ao lugar onde se inserem eles são.

Outro procedimento que tem o mesmo efeito é o de estabelecer como regra o desenvolvimento simultâneo de todo e qualquer projeto em três escalas: a do entorno – da escala 1:2000 a 1:500, por exemplo –, do objeto – 1:100 a 1:50 – e da sua materialização – da 1:25 até 1:1.

Edson Mahfuz, Centro de Liderança para Mulheres e Jovens, Santa Cruz, Rio de Janeiro, 2010. A posição dos pavilhões define a vinculação entre eles, a tridimensionalidade do espaço público e o caminho diagonal através do terreno [acervo Edson Mahfuz]

5.

Como a grande maioria dos seres humanos vive em entornos urbanos, grande parte do  trabalho dos arquitetos envolve intervenções em cidades de tamanhos variados cujo conjunto é mais frequentemente uma coleção desarmoniosa de objetos díspares do que as totalidades integradas e harmônicas que caracterizam algumas cidades históricas. Por isso, não deixa de ser curioso o fato de que muito do que se vê hoje nas revistas e sites especializados em arquitetura consiste em formas “orgânicas” as quais, ao invés de integrar-se ou contrastar com o entorno a partir de um diálogo formal, exacerbam o caos visual característico da metrópole contemporânea.

Na arquitetura erudita – aquela realizada por pessoas formalmente treinadas para praticá-la – os projetos tendem a se encaixar em apenas duas categorias no que se refere à relação com seus entornos: ou se integram ou contrastam claramente. Qualquer que seja nossa opção entre essas duas atitudes,  é essencial dotar nossos projetos de uma qualidade importante: a identidade formal. Embora esta afirmação possa ser desqualificada como sendo uma “preferência”, convém lembrar que a busca de identidade formal é um aspecto fundamental dos dois únicos sistemas formais completos que já existiram: o classicismo e a arquitetura moderna, especialmente a sua vertente comumente chamada de Estilo Internacional.

Uma das mais importantes contribuições da cultura artística moderna foi o novo papel que o seu usuário passou a ter a partir do início do século passado. Antes observador passivo, ele passa a ser uma espécie de co-autor: sem a sua participação a obra não se completa, não existe. Para que a obra de arte − e de arquitetura, é claro − possa ser percebida e entendida − em suma, para que o observador possa exercer o seu papel formativo − ela precisa possuir certas características que permitam o seu reconhecimento como forma. Em outras palavras, a obra precisa ter identidade.

A presença do atributo aqui discutido também serve para separar o que é arquitetura daquilo que não é. Organizar espaços de modo que propiciem o desenvolvimento de uma atividade − que sejam, como se diz coloquialmente, “funcionais” − é tarefa relativamente simples e não é necessariamente arquitetura. O que configura uma edificação como obra de arquitetura é a espacialização de um programa por meio de uma estrutura formal dotada de identidade, que é a ordem específica de cada projeto, aquela estrutura constitutiva que lhe permite “ser algo”, sem necessidade de “parecer-se a algo”.

A questão da identidade formal da arquitetura e das cidades não é uma mera questão estética afeita a uma minoria culta e desvinculada da vida prática cotidiana geral. A orientação das pessoas na cidade contemporânea depende de um mínimo de identidade, como bem demonstraram Kevin Lynch e outros urbanistas nos anos 1970. A existência de objetos e setores com os quais possamos nos identificar é benéfica e essencial para a nossa orientação nas cidades.

Um teste rápido de identidade é tentar descrever um edifício verbalmente. Se ele possuir identidade clara poderá ser descrito sucintamente, como o prédio do antigo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, um dos objetos fundadores da arquitetura moderna brasileira. Quanto mais palavras se necessita para descrever um edifício, menos identidade ele possui.

Lúcio Costa e equipe, Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1936. O partido adotado só faz sentido por estar circundado por quarteirões tradicionais totalmente ocupados. O vazio resultante ganha importância por contraste [Google Earth]

Alguns teóricos contemporâneos argumentam que até pouco tempo atrás a arquitetura se caracterizava por uma ordem formal simples e que a partir do uso da informática aplicada à arquitetura não estamos mais limitados por nada: se abre ante nós um universo de formas complexas que pode também ser empregado em nossos projetos. Em tese, isso é correto. Mas se esquecem de que para que um artefato possuir identidade sua ordem formal tem que poder ser percebida por um observador interessado. Há muitos objetos na natureza − assim como muitos edifícios contemporâneos − cuja ordem formal é tão complexa que não pode ser entendida. Do ponto de vista aqui exposto, a esses objetos falta identidade.

Nunca é demais salientar que possuir identidade formal por si só não garante a qualidade e relevância de um projeto. Esse atributo só terá valor caso a obra como um todo seja consistente, isto é, que consiga captar e revelar a estrutura do programa, e que estabeleça algum tipo de diálogo com o seu contexto.

A identidade formal é o resultado da presença de cinco atributos em um artefato arquitetônico. Esses atributos aparecem em diferentes arranjos hierárquicos em cada exemplo mas pode-se dizer que, de algum modo, eles estão sempre presentes em um objeto dotado de identidade. Os cinco atributos são: universalidade, sistematicidade, economia, precisão e rigor. Sua importância para o ensino é transcendental, já que constituem critérios de projeto ao mesmo tempo que de análise e avaliação. Isso possibilita que todo o processo de aprendizado e avaliação se dê sobre bases concretas, conhecidas desde o início.

O critério de universalidade tem dois componentes importantes, um predominantemente visual, o outro referente à organização espacial. O primeiro se refere à possibilidade de reconhecimento formal por parte dos usuários da arquitetura, o que normalmente é proporcionado pelo uso de formas elementares, como o quadrado/cubo, o retângulo/paralelepípedo, o círculo/cilindro, o triângulo/pirâmide, etc. A arquitetura do passado clássico já era pensada a partir dos sólidos elementares − como bem percebeu Le Corbusier −, o que foi retomado pelo classicismo humanista, persistindo até os dias atuais. Se no Renascimento o uso dos sólidos elementares era um meio de relacionar o microcosmo com o macrocosmo − acreditava-se que o universo era estruturado geometricamente −, no início do século vinte a psicologia da gestalt descobriu que a percepção do mundo visual se dá por meio da redução das formas complexas a componentes elementares. Ou seja, há argumentos vindos da tradição e da ciência dão suporte ao uso de formas elementares.

Paulo Mendes da Rocha, Escola Parque do Conhecimento, Santo André, 2003. Identidade absoluta resultante do emprego de um paralelepípedo elevado com fachadas lisas e cegas
Foto Milton Braga

Na arquitetura dos últimos séculos tem sido tão comum abrigar todo um programa em um único sólido elementar − formando o chamado partido compacto − como dividir o programa em volumes individuais relacionados entre si de algum modo − constituindo uma composição por partes. No entanto, também pode-se encontrar identidade formal em projetos não tão “puros“, em que formas elementares sejam utilizadas parcialmente ou que passem por processos de adição e/ou subtração de elementos menores. A garantia de identidade formal reside em que sua materialização − no caso de um volume compacto − e que a relação entre as partes − no caso de uma composição elementar − não dilua o potencial de identidade que a formas elementares possuem por natureza. Por exemplo, uma relação de interpenetração entre volumes poderá confundir a leitura dos componentes individuais, dependendo de quanto se interpenetrem e da orientação de cada um.

Edson Mahfuz, Casa PV_!, 2011. Dois prismas retangulares deslocados resolvem o programa convencional e definem as áreas externas da residência [acervo Edson Mahfuz]

Um certo grau de complexidade e de manipulação de formas elementares não pode nem deve ser descartado. O que importa é que os elementos constituintes e o modo em que se relacionam possa ser percebido por um observador atento.

David Chipperfield, Edifício Veles e Vents, Valencia, 2005. Sem ser um bloco compacto ou composição elementar ortodoxa possui estrutura formal muito clara
Foto Toni Rodrigo [Wikimedia Commons]

José A. Coderch, Edifícios Trade, Barcelona, 1965. A sinuosidade do conjunto encobre o fato de que a planta das torres não é mais do que um quadrado cujos lados foram tratados como curvas côncavas e convexas
Foto Edson Mahfuz

O segundo aspecto importante do critério de universalidade se refere à adaptabilidade das estruturas formais. Muitas estruturas formais são suficientemente genéricas para acomodar mudanças de programa sem terem que sofrer alterações radicais. Isso vale tanto para edifícios construídos – como é o caso de tantos edifícios clássicos que mudaram de uso sem maiores esforços – como para certos esquemas de organização espacial, que podem suportar mudanças de escala, cultura, e de época sem maiores problemas.

Outro critério importante para a identidade formal de um artefato arquitetônico é a sistematicidade. A presença de um sistema ordenador é o que garante, entre outros atributos de uma obra, sua possibilidade de entendimento por um observador atento, logo, sua capacidade de comunicação. Haverá quem diga que por trás das formas contorcidas de hoje subjazem sistemas formais complexos e atuais. Pode-se até concordar com isso, mas de que servem esses sistemas se o único que sabe da sua presença é o autor do projeto?

O envolvimento dos usuários com a obra de arquitetura deve ir além do estranhamento ou da empatia; ele só é realmente frutífero quando o processo projetual pode ser reconstruído por um observador, o que não é possível quando os critérios formativos da obra não são claros e visíveis a um olhar atento.

Segundo os dicionários, um sistema é “um conjunto de coisas ou partes formando um todo complexo” assim como “uma série de princípios ou procedimentos de acordo com os quais algo é feito”.  Aplicando essas definições à arquitetura podemos dizer que um sistema é um conjunto de elementos heterogêneos que cobre diversas escalas e cuja organização interna se adapta à complexidade do programa e do contexto específicos de cada caso.

A presença de sistematicidade na arquitetura relevante não é uma exigência do seu aspecto comunicativo, mas um atributo essencial à sua natureza. A partir de um certo tamanho e nível de complexidade se torna muito difícil, senão impossível, chegar a bom termo em um projeto sem a presença de um sistema ordenador abrangente e flexível.

O procedimento sistemático tem pelo menos mais duas vantagens claras. Do ponto de vista mais geral, permite resolver vários problemas arquitetônicos com a mesma estrutura formal. Mais especificamente, ajuda a reduzir a margem de arbitrariedade das decisões projetuais pois, a partir de uma primeira decisão global, define critérios ordenadores que orientam tanto a definição das partes maiores como das partes menores de um projeto.

Uma das razões pelas quais há uma resistência ao uso de sistemas ordenadores é o medo de que isso tolha a criatividade e leve a resultados sempre iguais. A realidade da prática mostra de modo definitivo que isso não acontece: o encontro de um sistema com situações programáticas e contextuais concretas sempre resulta em obras singulares.

Para ilustrar a discussão, pode-se mencionar os sistemas de “grelha” e “espinha”, apenas dois entre muitos sistemas formais que auxiliam o projeto de edifícios e espaço urbanos. No caso do Hospital de Veneza, de Le Corbusier, um projeto notável mas, infelizmente, não construído, a grelha não apenas permite organizar o complexo programa do hospital como é, surpreendentemente, o meio pelo qual o projeto se integra a um contexto milenar e irregular sem perder sua coerência interna. Longe da rigidez comumente atribuída a organizações reticulares, o que mais se destaca no modo como Le Corbusier lida com a grelha é sua flexibilidade. Essencialmente, a estratégia adotada abre mão de uma envolvente retangular − embora a ortogonalidade seja dominante − para melhor poder se “encaixar” no contexto, trata as linhas da grelha como  espinha dorsal do projeto e seus nós − os pontos de cruzamento das linhas − como centros gravitacionais do que acontece ao seu redor. Na planta vemos claramente as três funções principais identificadas por cor: circulação em amarelo, tratamento em azul e internação em marrom. O modo como Le Corbusier evita a criação de longos corredores é brilhante: ao chegar em um nó a circulação muda de lado. Também fica claro que não há nenhuma intenção de tratar os espaços entre as linhas da retícula como pátios completos: seu tamanho depende da necessidade programática do setor adjacente, oscilando entre ¼ e ¾ da área total. Ao contrário da expectativa normal, trata-se de uma estrutura formal aberta que já indica o modo e a direção de sua ampliação, limitada apenas pelo contexto.

Le Corbusier, Hospital de Veneza, 1964, planta do 3º pavimento
Le Corbusier’s Venice Hospital, Hashim Sarkis, Harvard Design School/Prestel, Munique/Lond

Outro sistema recorrente na arquitetura ocidental é o que muitos chamam de “espinha”, que consiste essencialmente em um número de blocos paralelos conectados por um corpo transversal a eles. De origem indefinida, foi popularizado por manuais acadêmicos franceses como o de J. L. N. Durand, e foi utilizado com frequência pelos arquitetos da Missão Francesa no Brasil.

J.N.L. Durand, Planta para Edifício com Sete Blocos, 1802. Esquema “espinha“ típico que apresenta enorme flexibilidade de uso, podendo abrigar muitos programas diferentes [acervo Edson Mahfuz]

Edson Mahfuz, Sede do IPHAN, Brasília, 2006 [acervo Edson Mahfuz]

Um sistema em espinha transformado caracteriza a estrutura formal do projeto para o IPHAN. Três barras paralelas abrigam escritórios e são conectadas por um corpo transversal desdobrado em dois, onde se situam foyer e auditório. Entre eles, pátios de diferentes tamanhos e alturas. Este caso exemplifica cabalmente a afirmação anterior a respeito da singularidade de cada aplicação concreta de um sistema ordenador abstrato. Aqui, não apenas a barra transversal da espinha arquetípica é alterada em função de necessidades programáticas como aparece uma modulação de grão maior que o normal nas demais barras, na forma de uma concentração da estrutura resistente e dos serviços em ‘placas’ de 3m de largura dispostas a cada 20m.

O uso de sistemas formais em projetos de arquitetura revela uma característica fascinante da atividade formativa própria da nossa profissão: cada projeto é como um jogo, com regras bem definidas que regulam as relações entre as suas partes e entre o artefato e o seu contexto. Apenas em alguns casos, quando somos obrigados a inventar, essas regras não são definidas a priori e se tornam claras apenas no final do processo, momento em que podem ser finalmente percebidas como estruturas formais ou sistemas ordenadores.

Outro critério de projeto influente na identidade de um edifício ou espaço aberto é o da economia de meios: o uso do menor número de elementos possível, deixando de fora tudo o que não for rigorosamente necessário. Possível é o termo chave aqui: não me refiro à redução arbitrária do número de elementos mas do uso apenas daqueles que forem indispensáveis ao projeto, considerando todas as suas dimensões e envolvimentos. É importante não confundir economia de meios com minimalismo – cuja adoção é uma decisão puramente estilística ­– nem com a escassez deliberada de elementos presente em muitos projetos atuais.  Ser econômico não significa eliminar elementos necessários (como aqueles que melhorariam o conforto, por exemplo) em benefício da obtenção da forma pura.

Os produtos de uma arquitetura econômica nunca são simples, mas elementares (14). O domínio da elementaridade é condição indispensável para que se possa chegar a uma complexidade autêntica. Uma qualidade muito importante dos projetos econômicos é a intensidade a que conduz uma relação formal entre um número reduzido de elementos espaciais. Se enganam aqueles que afirmam que a arquitetura que prima pela economia de meios é regida por uma "lei do mínimo esforço": nada exige maior esforço intelectual do que fazer uma grande obra com poucos elementos (15).

Paulo Mendes da Rocha, Loja Forma, São Paulo, 1987. Uma configuração aparentemente simples encobre uma grande complexidade, resultado da síntese formal de requerimentos programáticos, urbanísticos, estruturais e comerciais
Foto Nelson Kon

O critério de precisão tem a ver com o ideal de perfeição humana que leva o homem a querer realizar obras bem feitas, concebidas e construídas com exatidão. Um projeto preciso acentua a identidade formal de um artefato arquitetônico, o que não apenas facilita o entendimento da sua estrutura formal em suas várias escalas como também a própria construção material do objeto. Se o aspecto formal da arquitetura se refere à estrutura relacional ou sistema de relações internas e externas que configuram um artefato ou episódio arquitetônico, projetar com precisão é fundamental para a construção e percepção dessas relações. 

Mies van der Rohe, Pavilhão Alemão, Barcelona, 1929. Não é por acaso que as juntas do piso e do muro coincidem com a projeção da laje de cobertura. A forma se torna mais inteligível quando se pode perceber as intenções de quem a projetou
Foto Edson Mahfuz

Projetar com rigor significa voltar o foco da concepção para aqueles aspectos do problema arquitetônico que são relevantes e transcendentes, para aquilo que é essencial em um programa, lugar ou processo construtivo, deixando de fora o que for meramente acessório. O rigor aplicado na hierarquização de um programa deve ser acompanhado por uma atitude análoga no momento de definir os elementos que materializam a estrutura formal. Ser rigoroso não implica austeridade e asceticismo, mas a capacidade de excluir de um projeto tudo aquilo que não contribui para a sua intensidade e consistência formal. O excesso de elementos, a arbitrariedade e o historicismo de grande parte da produção contemporânea se devem principalmente à falta de rigor com que se tem praticado arquitetura nas últimas décadas. 

Eduardo de Almeida, Edifício Residencial Gemini, São Paulo, 1970-71. Uma solução em que nada falta e nada sobra, e máximo proveito estético é tirado de elementos indispensáveis como pilares e vigas
Foto Hélio Piñon

Um edifício que possua identidade formal nos termos aqui definidos terá encontrado sua medida justa, e se encaixará na regra ditada por Michelangelo para a escultura, mas também válida para a arquitetura − e recuperada por Giorgio Grassi em um de seus textos −: “uma bela estátua tem que poder rolar morro abaixo sem perder nada importante”.

Como conclusão, me parece importante ressaltar a importância de formarmos arquitetos que possam produzir uma arquitetura correta, pois a cidade se constrói por meio de edifícios comuns, não como uma coleção de obras primas. Como a grande maioria dos profissionais possui habilidades normais, as tentativas de alcançar a genialidade tem resultado em fracassos que são danosos para a cidade. Uma arquitetura mais modesta sem deixar de ser inteligível, baseada na tradição e mais afinada com a cidade poderá ajudar a melhorar a qualidade da vida nas cidades brasileiras.

notas

1
Esse nome se deve ao fato de que o fundador da Bauhaus, Walter Gropius, e vários dos seus colegas, imigraram para os Estados Unidos, passando a ensinar na Graduate School of Design, na Harvard University, constituindo uma verdadeira segunda encarnação da escola fundada em 1919 por Gropius em Weimar, e que também existiu em Dessau (1925-32) e Berlin (1932-33).

2
SCULLY, V. Doldrums in the Suburbs. Perspecta, New Haven, 9/10, p. 283, 1965.

3
Termo relacionado à crença de que ao olhar para superfícies lisas e ásperas, duras e suaves, um usuário de arquitetura sentiria as mesmas sensações que ao passar seus dedos sobre elas.

4
HERDEG, K. Op. Cit.

5
HERDEG, K. The Decorated Diagram. Cambridge, MIT Press, 1983.
“Today, more often than not, a building is an attention-seeking object that glorifies its owner and architect and is oblivious, if not outright injurious, to its physical, and often social, context. Its plan is diagrammatic – a literal expression of functional relationships – and the nonshelter aspects of the exterior of the building appear to be reduced to one purpose: to excite the eye (in a purely physiological sense) by clever pattern. Visual cues incorporated in the design of the building defy intellectual and often emotional resolution because they appear to have meaning beyond their own existence; they are simply recorded by the retina“.

6
PIÑÓN, H. Op. cit.

7
PIÑÓN, H. Op. cit.

8
PIÑÓN, H. Op. cit.

9
A ausência de arquitetos jovens nessa lista não significa que não haja projetos exemplares entre a produção atual, apenas que temos mais segurança para definir como clássicos projetos doas quais temos um certo distanciamento.

10
Na sua versão norte-americana (Harvard, sob a direção de Gropius) os cursos de história foram deixados para os últimos semestres, quando “o seu poder de perversão teria menos força“.

11
PIÑÓN, H. Representação gráfica do edifício e construção visual da arquitetura. Arquitextos, 104.02, ano 09, janeiro 2009, http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/81/pt 

12
PIÑÓN, H. Cinco axiomas sobre o projeto, texto não publicado, 2008.

13
O termo arquitetura, usado ao longo deste texto, é entendido na sua amplitude máxima, abrangendo não apenas edificações individuais, mas também projetos paisagísticos e urbanísticos de qualquer tamanho.

14
“O simples é constituido por uma única peça; lhe faltam ingredientes e, portanto, composição. O elementar, por outro lado, surge da composição de alguns elementos, seguindo certas regras”, MARTÍ ARÍS, C. Siléncios elocuentes, Barcelona, Edicions UPC, 1999.

15
Toda grande obra se caracteriza por possuir identidade e intensidade formal, sem comprometer a sua funcionalidade e sustentabilidade.

sobre o autor

Edson da Cunha Mahfuz, arquiteto, professor titular de Projetos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

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