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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo trata dos objetos arquitetônicos a partir do estudo de sua crítica, propondo uma inversão do material a ser analisado. Não mais objetos, mas as práticas discursivas que os enredam.

english
The paper discusses the architectural objects from the study of its criticism, suggesting a reversal of the material being analyzed. No longer objects, but the discursive practices that embody them.

español
El artículo trata de los objetos arquitectónicos a través del estudio de su crítica, planteando una inversión del material de análisis. No tanto objetos sino las practicas discursivas en la que están envueltos.


how to quote

BRONSTEIN, Laís. Acerca da crítica aos objetos arquitetônicos. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 160.03, Vitruvius, set. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.160/4879>.

“Una difusa heterogeneidad llena el mundo de objetos arquitectónicos. Cada obra surge de um cruce de discursos, parciales, fragmentários. Más que hallarnos ante una obra parece que lo que se nos presenta es un punto de cruce...” (1)

Um estudo sobre arquitetura dedicado ao tema “objetos” pode parecer, a primeira vista, ter como objetivo focar a disciplina por sua atribuição mais intrínseca, a materialidade da obra. A obra, sua forma, inserção, métodos construtivos, contexto e programa constituiriam pautas de análise nas quais o objeto arquitetônico é enredado, oferecendo acessos inequívocos ao seu entendimento. O conhecimento deste objeto compreenderia então determinadas “etapas de verificação” em que todos estes aspectos seriam abarcados.

Em um olhar mais atento, porém, tal empreitada revela ser pouco rigorosa, deixando transbordar tudo aquilo que escapasse, que fosse além da própria materialidade da obra. Paradoxalmente, a abordagem do objeto arquitetônico, sua crítica, é ela também uma “construção”, como bem nos adverte Ignasi de Solà-Morales - e por que não, um “objeto” – produzido deliberadamente para iluminar aquele ponto em que se produziu alguma arquitetura. Elaborar um discurso que pretende dar conta, ou ao menos iluminar determinados “objetos”, revela ser um trabalho que trata de “construções” sobre “construções”, dando a entender que esta classe de estudo se edifica também em sólidas - ainda que provisórias - estruturas.

De igual modo, nossas construções teóricas revelam-se intricadas relações dialéticas nas quais o argumento por vezes confere maior destaque não ao objeto analisado – obra, edifício, projeto - mas à própria estrutura que avaliza sua análise. O objeto arquitetônico, a obra de arquitetura como “fundo” da “figura” (2), esta sim, imaterial, provisória, contingente, parece responder a tudo aquilo que hoje se espera da crítica em nosso campo disciplinar.  Deliberadamente, o crítico-autor dispõe as peças de seu jogo para relativizar a ineludível presença da obra/projeto de arquitetura.

Ingenuidade pensar que tal empreitada pressupõe a submissão do crítico à obra analisada, ou mesmo às boas intenções do arquiteto-criador. Tampouco há espaço para aquele juízo de valor dissociado de uma rede de relações que dá consistência ao edifício teórico. De nada serve a mirada condescendente. O peso, e por que não dizer, a violência do discurso se sobrepõe às mais sedutoras panorâmicas do objeto. Vale aqui a lição proferida por Michel Foucault já em 1970:

“Não resolver o discurso num jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos mostra uma face legível que apenas teríamos de decifrar; ele não é cúmplice do nosso conhecimento; não há uma providência pré-discursiva que o volte para nós. (...) É necessário conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, em todo o caso, como uma prática que lhes impomos” (3)

Sob esta ótica, o “objeto arquitetônico” que permeia os mais distintos estudos constituirá neste artigo aquele material sobre o qual iremos focar. Terá sido o “objeto arquitetônico”, ele próprio o sujeito de tantas transformações? Ou terá sido a crítica a este “objeto”, esta sim, o agente cambiante por excelência? Ou ainda, são estes, “objeto” e sua respectiva crítica, parceiros de uma jornada em que seus papéis são constantemente questionados ao sabor dos ventos que sopram? Desde a “fixação pelo objeto” da arquitetura moderna de Colin Rowe, à contestação deste protagonismo no último Montaner, este artigo pretende apontar para alguns objetos e episódios críticos da arquitetura que iluminam estas questões.

Propõe-se aqui então uma inversão gestáltica do material a ser analisado: não mais objetos arquitetônicos, mas as práticas discursivas que enredam estes objetos. Um elenco de criaturas e criadores que pairam sobre a materialidade da obra.

Atualização crítica

Em seu livro “Sistemas arquitetônicos contemporâneos”, Josep Maria Montaner lança uma questão polêmica, ao relativizar o protagonismo comumente atribuído ao projeto dos objetos na arquitetura moderna, em vista de uma maior ênfase no espaço exterior em que estes edifícios se inserem. Diz ele:

“Esta investigação parte da premissa de que a arquitetura moderna projetou de maneira sistemática o espaço aberto, a matéria invisível que resta entre as formas dos edifícios e que permite articular a complexidade” (4)

Neste caso, o espaço público resultante desta operação não seria mais o entendido como o resíduo do espaço livre entre objetos idealizados e sim ele mesmo um ente de valor próprio, deliberadamente projetado para articular a complexidade deste novo modo de ver a cidade. As estruturas urbanas aí pensadas deveriam ser abertas, “capazes de crescer e hábeis para integrar a natureza”

O ponto de vista do autor, que poderia parecer a princípio surpreendente se levamos em conta seu livro de 1993 “Depois do Movimento Moderno”, se encontra validado por uma distinta aproximação crítica ao objeto, que tem na noção de “sistemas” o eixo de sua argumentação. A noção de sistemas configura um terceiro passo em sua tentativa de fornecer um diagnóstico do estado da arquitetura de parte do século XX e do XXI (5). O primeiro passo é dado no texto de 1993, quando seu referencial teórico se guiava a partir das chamadas “posturas arquitetônicas” - conceito declaradamente inspirado nos estudos do britânico Royston Landau (6). Por posturas arquitetônicas, Montaner divide as manifestações arquitetônicas da segunda metade do século XX identificando autores a ser ver agrupáveis segundo algumas constantes reguladoras, uma espécie de “núcleo inviolável” de práticas de projeto e convicções teóricas (7).

O segundo, “As formas do século XX” de 2002, seu viés estruturalista é determinante para enlaçar os objetos, onde a forma é entendida como “estrutura essencial e interna”– abstrata e atemporal portanto - passível de ser relacionada não obstante seus distintos períodos históricos e contextos culturais (8). Intrinsecamente relacionada a este enfoque está, sem dúvida, certa concepção de autonomia da arquitetura, tal como se fazia presente nos círculos da crítica especializada dos anos 70. Ainda que articulado segundo a teoria da complexidade de Edgar Morin, tanto em sua forma como em seu conteúdo, é possível dizer que ainda existe neste seu estudo uma insistência no tratamento individualizado dispensado aos objetos.

Neste último livro de 2008, Montaner oferece um olhar mais uma vez diferenciado para a análise de um mesmo material: não mais objetos, posturas e formas, e sim sistemas. Sistemas, que a exemplo de estudos iniciados no campo da biologia e que com a adoção de maiores graus de complexidade se estenderam até o campo da informática, configuram hoje a possibilidade mais coerente para reescrever a história da arquitetura contemporânea, superando a proclamada “crise do objeto”. Sob este enfoque, rompe-se de vez a autonomia do objeto insinuada nas abordagens críticas anteriores, enredando todo e qualquer gesto projetual auto-referente numa teia de relações. Assim, o protagonismo percebido nos objetos da cidade moderna justifica-se e é redimido pelos espaços livres (não mais “residuais”) que por sua vez avalizam a existência destes como parte de um sistema.

Se olharmos a chamada “crise do objeto” apontada por Colin Rowe, em Collage City, quando tão agudamente critica o culto ao objeto ideal perseguido pela arquitetura moderna e as desastrosas conseqüências desta prática no tecido urbano, à luz da noção de sistemas proposta por Montaner, o argumento de Rowe se fragiliza. Também se debilita toda a discussão destes mesmos anos 70 sobre a autonomia formal, quando seus mecanismos de concepção de base - a tipologia arquitetônica e a experimentação formal, em contraposição ao modelo e a repetição serial – se confronta com esta idéia mais ampla de sistema. Tampouco escapa desta “armadilha conceitual” muitas das arquiteturas ditas “minimalistas”, onde a obra se resume ao seu mais intrínseco elemento - objeto intransitivo - que dialoga tão somente com ele próprio.

Entretanto, em um olhar mais atento, o que a principio se nos apresenta como uma quebra de certezas revela-se, no fim das contas, nada mais que uma relativização crítica. De fato, a crítica em arquitetura tem este papel de se reinventar constantemente. “Posturas”, “formas” e “sistemas” são apenas alguns dos platôs a partir dos quais é possível traçar uma construção provisória daquele ponto onde se produziu alguma arquitetura (9). Ainda quando lança um olhar para episódios historicamente superados, a noção de sistemas não invalida outras aproximações teóricas que, desde distintos instrumentos de análise, situam o objeto da arquitetura moderna a partir de seu destaque e singularidade, e o espaço urbano desta cidade como “fundo da figura”, como impiedosamente detectou Colin Rowe (10).

Não se trata de superação crítica, e nem é esta a pretensão de Montaner neste seu terceiro estudo. Trata-se do desdobramento de um pensamento que arranca da necessidade de reescrever a história da arquitetura, uma “atualização crítica”, desde um marco teórico mais amplo. Uma prática necessária que Manfredo Tafuri já sinalizava em Teorias e História da Arquitetura:

“O crítico é aquele que está obrigado, por eleição pessoal, a manter o equilíbrio sobre um fio, enquanto que ventos que mudam continuamente de direção fazem todo o possível para provocar sua queda. (...) A crítica está obrigada, como a arquitetura, a revolucionar-se continuamente buscando os parâmetros adequados a cada momento” (11)

Já na década de 60, a tradução do método estruturalista à disciplina suplanta as interpretações estritamente evolucionistas/deterministas impressas a historiografia mais consolidada do movimento moderno. Esta primeira atualização já é anunciada nos títulos dos primeiros livros do autor “Depois do movimento moderno” e “A modernidade superada” (neste caso, uma coletânea de artigos). Uma vez cristalizada esta etapa, “Formas” e “Sistemas” apontam para a dispersão cada vez mais evidente do marco teórico, e da ruptura com a linearidade cronológica da narrativa.

Antecedentes

Sobre estas questões, é possível apontar alguns episódios que ilustram esta distensão crítica, aqui inicialmente focada apenas na síntese de Josep Maria Montaner.

É fato que os modelos urbanos pautados na lógica do urbanismo moderno já forneciam uma estrutura legível, de formas pré-determinadas. As áreas projetadas, as infra-estruturas de transporte faziam parte de um planejamento geometricamente apreensível, onde os espaços livres respondiam à necessidade de estabelecer novas relações com a paisagem. A idéia de romper com o modelo da cidade pré-industrial fazia-se coerente, na medida em que era preciso encontrar (ou criar) um contexto onde tais experimentos pudessem ser plenamente ensaiados.

Porém, sob o ponto de vista da critica empreendida a partir da década de 60, tal entendimento foi ofuscado.  O projeto de objetos arquitetônicos dissociados da imagem da cidade decimonônica da rua e do quarteirão, reforça a singularidade e individualidade destes elementos, ainda que compartilhem da idéia mais ampla de “cidade na paisagem”. O espaço da arquitetura moderna, e também da cidade moderna, é apreendido segundo uma distinta aproximação perceptiva.

“O espaço moderno se baseia em medidas, posições e relações. É quantitativo, se desprende segundo geometrias tridimensionais, é abstrato, lógico, científico, matemático; é uma construção mental” (12)

A crítica estruturalista, com a transposição da lingüística ao pensamento arquitetônico, se dedicou a questionar esta prática tendo por parâmetro a delimitação formal do espaço urbano. Neste debate algumas inflexões puderam ser verificadas em relação ao pensamento que subjazia as intervenções promovidas sob a égide do Movimento Moderno.

Em primeiro lugar, a idéia de projeto urbano, derivado da junção entre a obra de arquitetura e o estudo da cidade. Não só o objeto de trabalho é deslocado para o interior da arquitetura e da cidade existente, como a própria escala de atuação é modificada. Em segundo lugar, a mudança na relação entre cidade existente e objeto arquitetônico. A cidade passa a ser vista como um laboratório de experimentação morfológica, caracterizado pela fragmentação e particularização no tratamento dos temas urbanos. Em terceiro lugar, a questão do espaço público. É verificada a transformação de sua condição anterior como “espaço residual” para uma situação em que a dimensão pública dos espaços da cidade passa a ser priorizada em detrimento do valor do objeto arquitetônico como fato isolado. Como derivação deste ponto é dada ênfase ao conceito de “lugar" para diferenciar da noção de espaço – abstrato, inabarcável, amorfo – da cidade do urbanismo moderno. Por último, destaca-se a questão figurativa. A utilização em maior ou menor grau de algum recurso figurativo constitui outro visível ponto de mudança em relação às práticas do Movimento Moderno. Verifica-se a reutilização de códigos pertencentes ao repertório disciplinar e autônomo da arquitetura, evidenciando uma crítica ao conceito de inovação e à noção de “forma pura”.

No âmbito desta crítica, que promove a recuperação de valores da história e da memória, também a noção de espaço converge para a valorização daquele da cidade tradicional – delimitado, formalmente definido, permanente, identificável. Nesta equação não há lugar para os modelos pensados a partir das categorias de fluidez, movimentos ou fluxos. Por isto não cabe, neste momento, qualquer leitura das propostas da cidade moderna como uma estrutura de “espaços” senão que tão somente a de estrutura de “objetos”.

Já em finais da década de 80 tal pensamento revela-se desgastado, derivando em um esgotamento dos argumentos baseados em termos lingüísticos. O binômio “arquitetura/ cidade” torna-se insuficiente para abarcar a complexidade inerente a metrópole e a complexidade de relações que caracterizam o fenômeno urbano em fins do século XX.  Tal entendimento é já um fato consolidado por ocasião do congresso da UIA realizado em 1996 na cidade de Barcelona:

“Que la arquitectura es consustancial a la ciudad está fuera de duda. Que la ciudad sea sólo una arquitectura puede ser una afirmación mucho más problemática. (…) En la situación contemporánea, la arquitectura sigue estando en la ciudad. Forma parte de ella y materializa una parte de los espacios en los que se desarolla la vida urbana. Sin embargo, hoy más que nunca, comprobamos que la ciudad es muchas más cosas que sus edificios y arquitecturas” (13)

Neste encontro, é patente a exaustão frente à chamada “fórmula contextualista”:

“Tras la pretensión abusiva de que la arquitectura era el instrumento con el que fabricar y controlar la totalidad del ambiente, se escondia la necesidad de referirse a modelos urbanos del pasado y la incapacidad de, literalmente, imaginar, tener una imagen global de lo que realmente está ocurriendo a nuestro alrededor” (14)

Vale ressaltar que desde princípios da década de 90 tais argumentos já estavam em pauta. Os congressos anuais da Anyone Corporation, que reuniu destacados pensadores do urbano desde uma ótica multidisciplinar – artes, sociologia, filosofia, economia -, constituíram o fórum de debates por excelência para o estabelecimento de novas pautas de análise e perspectivas para a arquitetura em vista do final do milênio (15).

A necessidade de um enfoque multidisciplinar para o estudo da cidade coloca a arquitetura como um dentre os vários eixos de discussão. Também a impossibilidade de traçar argumentos definitivos, a partir de uma visão unilateral e encadeada dos fatos configura a superação do caminho proposto pelo método estruturalista, e a migração crescente da crítica arquitetônica para o terreno do pensamento pós-estruturalista.

“A crise da modernidade denunciada pelos niilistas e enganosamente superada pelos cultivadores de imagens comunicacionais ou técnicas não tem solução no ensimesmamento do Estruturalismo, quer dizer, em sua auto-reflexão (16)”

Nesta mudança de rumo, são vários os indícios de uma redefinição do marco espacial em que transita a arquitetura. De fato, tanto o conceito de platô como o de rizoma, retirados diretamente dos textos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, apontam, respectivamente, para uma distensão dos limites territoriais e uma inflexão na idéia de gênese e evolução formal. Tais questões, quando transpostas ao material da arquitetura, revelam a emergência de distintas categorias que colocam em questão a relação entre espaço urbano e objeto arquitetônico.

A idéia de platô sugere uma analogia geográfica que interfere diretamente na delimitação do campo de estudo, assim como na perspectiva de análise crítica. Geografias urbanas, territórios, plataformas, topografias e paisagens são algumas das novas denominações utilizadas, atributos que conferem distintos perspectivas de enquadramento aos objetos da arquitetura (17).

A fruição da arquitetura e do espaço urbano não mais se resume a relação biunívoca entre o objeto que conforma, delimita o espaço, e o espaço configurado formalmente pelas arquiteturas que o encerram, mas por um conjunto mais complexo de agentes que interpenetram, se sobrepõem, ou coexistem em um mesmo plano (18). A própria construção crítica se utiliza da idéia de platô – como pontos contingentes de observação - para enfatizar a natureza sempre cambiante, provisória e parcial da abordagem do objeto arquitetônico.

“O pensamento pós-estruturalista iniciou a tarefa de pensar o mundo desde a ausência de fundamento e desde a decomposição do tempo histórico. Pensadores como Gilles Deleuze puseram de manifesto a inexistência de uma plataforma desde a qual seja possível construir uma visão do mundo. Não há uma plataforma, senão mille plateaux, uma multiplicidade ilimitada de posições desde as quais somente é possível montar construções provisórias” (19)

No pensamento de Ignasi de Solà-Morales (1942-2001) esta percepção diferenciada é presente em diversos textos. Entretanto, podemos destacar “Arquitectura débil” de 1987 como o primeiro a questionar a atribuição da arquitetura como delimitadora formal de espaços. Esta idéia é reforçada em “De la autonomia a lo intempestivo” de 1991, e cristalizada em “Arquitectura liquida” de 1998, onde a questão é radicalizada. Mesmo que centrada no objeto arquitetônico, a análise do autor está permeada pela relação fluida e instável que pode ser estabelecida com o espaço urbano (20).

Semelhante síntese é feita por Rafael Moneo em “Paradigmas fin de siglo. Los 90 entre la compacidad y la fragmentación” de 1999, quando sugere a dissolução de um certo “paradigma formal” que norteou a produção arquitetônica das últimas décadas. Um “mundo sem forma” caracterizado pela fluidez, pela ausência de limites e pela constante mutação é, segundo o autor, uma situação onde somente o valor da “ação” tem sentido. Em sua síntese, Moneo alinha-se com as interpretações de Solà-Morales, confirmando que as manifestações aparentemente díspares da arquitetura contemporânea, estão na realidade, pautadas numa única crítica, convertendo os paradigmas da fragmentação e da compacidade nas duas caras de uma mesma moeda.

A idéia da fragmentação pode ser atribuída àquelas arquiteturas e intervenções que privilegiam a estratificação do território sobre o qual operam, sugerindo múltiplas conexões entre espaços e elementos do programa. Desde uma operativa rizomática, ditos projetos traçam topografias alternativas, que agregam por sua vez, uma multiplicidade de velocidades e a justaposição de vários percursos dentro de um mesmo espaço. Uma postura de movimento e fluxos, onde a experiência espaço-temporal é freqüentemente distorcida.

O paradigma da compacidade, por sua vez, refere-se às obras de arquitetura que experimentam as mais variadas nuances da materialidade, rechaçando qualquer compromisso com uma forma específica. Através de inúmeros recursos, entre eles o refinado uso da alta tecnologia e a adoção de superfícies refletoras, artificiais e leves, verifica-se nesta postura um esvaziamento deliberado do volume, em favor da superfície, do envoltório, do trabalho sobre a “pele”. A percepção da obra se dá através de um jogo proposital de reflexos e transparências, suprimindo qualquer identidade formal ao volume construído e, consequentemente, deste “objeto” como delimitador de espaços.

Desdobramentos

As sínteses de Moneo e Solà-Morales apresentam hipóteses, proposições teóricas para enredar as produções mais recentes da arquitetura. Entretanto, dada a condição problemática da própria idéia de “objeto arquitetônico”, estas aproximações lançam mão de enquadramentos mais “panorâmicos”, propondo dois conceitos especialmente interessantes: território e paisagem.

Território é, na concepção de Ignasi de Solà-Morales, “uma rede conceitual genérica” e “um conceito preliminar a qualquer definição mais precisa” que o autor adota para enquadrar a multiplicidade de enfoques que podem ser atribuídos tanto à arquitetura quanto à cidade. Atestada a insuficiência da arquitetura em responder à totalidade do fenômeno urbano, e ciente das inúmeras disciplinas que trabalham a cidade a partir de distintas aproximações conceituais, o a idéia de território aponta para a possibilidade de cruzamento de visões advindas não só da arquitetura, como também da geografia, economia, sociologia, antropologia e artes plásticas. O urbano “como um dado específico e característico da situação atual” é o amplo marco teórico que permite a interlocução entre estes vários conhecimentos (21).

No âmbito da arquitetura também é possível vislumbrar mecanismos que estabelecem novas abordagens em relação ao fenômeno metropolitano. Segundo o autor, desde os objetos singulares de arquitetos como Norman Foster, Jean Nouvel, Toyo Ito, passando pela interpretação da cidade como topografia e lugar que fazem Rafael Moneo, Enric Miralles e Herzog & de Meuron, entre outros, até os projetos urbanos de Peter Eisenman, existe uma nova maneira de entender o urbano, muito distinta daquela ancorada na lógica do contextual. Também as noções de “bigness”, “genérico” e os gestos figurativos pouco convencionais do escritório OMA (Office for Metropolitan Architecture) conferem uma obsolescência imediata a esta prática anterior.

O conceito de paisagem (22), por sua vez, caracteriza uma situação de ausência de limites pré-estabelecidos, ao mesmo tempo em que é estabelecida uma delimitação subjetiva, segundo o olhar de cada indivíduo. Caracteriza também uma superfície em que são dados a conhecer os elementos que nos rodeiam, proporcionando uma experiência de reconhecimento. A estes aspectos soma-se também a característica de paisagem, natural ou urbana, de incorporar, em seu espaço, as noções de tempo e movimento (23).

Para o autor, já não se fazia mais possível ter uma apreensão objetiva, estável, da cidade contemporânea, tal como a legibilidade da cidade decimonônica, com sua clara ordenação de traçados e estruturas (ruas, praças, avenidas). Tampouco a cidade do Movimento Moderno prescindia de uma definição pré-estabelecida de sua estrutura e zonificações. Ambos modelos estiveram pautados em formas pré-determinadas pelo planejamento e desenho urbano.

A noção de paisagem, por outro lado, confirma a impossibilidade de um planejamento prévio, e por outro, dá margem à incorporação das inúmeras variantes – construção/ destruição; crescimento/renovação; mutação/obsolescência – que fazem parte da lógica de produção da metrópole contemporânea. Trata-se, sobretudo, de uma apreensão fragmentária, subjetiva e cambiante de diversas experiências, impossíveis de serem compreendidas pela ótica formal, aqui entendida como permanência, estabilidade e definição espacial.

De volta ao começo

Em um primeiro momento parece distante de toda esta discussão a apreciação de Montaner, quando sugere a noção de sistemas ao lançar um novo olhar para a arquitetura do século XX e princípios do XXI. Sua análise parte da crise do objeto isolado, em vista da complexidade de relações que podem ser detectadas no âmbito do espaço público. Assim como na fotografia, o enquadramento dos objetos é ampliado, relativizando-os a partir de algumas possíveis panorâmicas.

Porém, em um olhar mais atento, o aporte que Montaner traz parece incorporar mais amplamente uma inflexão ocorrida já em princípios da década de 1990 no âmbito da teoria da arquitetura. Como foi dito, a questão da complexidade foi anteriormente abordada pelo autor em seu livro “As formas do século XX” (24), no entanto tal complexidade se remetia, sobretudo, a geração da forma entendida como estrutura essencial e interna (25). O passo mais adiante, que incorpora forma e espaço público - ou seja, as relações que extrapolam o objeto - é dado no livro “Sistemas”.

A hipótese que aqui levantamos é que este último livro cristaliza e “sistematiza” uma perspectiva crítica ensaiada em estudos anteriores de outros autores – Solà-Morales, Rafael Moneo, Zaera Polo, para citar alguns aqui vistos – aplicada à produção arquitetônica dos últimos 100 anos. A distensão do marco espacial de análise que foi possível ser feita com a transposição de questões da filosofia pós-estruturalista para o diagnóstico da produção arquitetônica e urbana dos últimos anos permite uma ampliação do campo de visão. Com isto, a produção de um passado mais distante é reestudada a partir de outro mirante, e porque não dizer, platô. De especial interesse são as noções de território e paisagem aqui citadas. Se aplicadas na sua essência a arquiteturas de diferentes tempos históricos, como alguns exemplos de cidades e esquemas do urbanismo moderno, nos aproximaremos bastante desta noção de sistemas.

Em seu livro, Montaner atribui suas referências conceituais a vários autores, citando nominalmente desde Kant, passando por Condillac e Hegel, até Niklas Luhmann, Talcott Parsons, chegando a Jean Baudrillard, André Corboz entre outros (26). Em se tratando da aplicação mais literal do conceito de sistemas esta genealogia parece ser bastante fiel. Entretanto, no que tange à essência da mudança do ponto de observação efetuada entre a redação de “Formas” e “Sistemas”, esta sim parece fazer parte de um movimento menos evidente, porém de grande potencial transformador, da crítica especializada da qual ele é um dos protagonistas.

notas

NA
Este artigo é parte do texto apresentado no II ENANPARQ (Encontro Nacional da Associação de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura), na sessão temática “Objetos 2”, Natal, setembro de 2012.

1
SOLÀ-MORALES, I. Topografía de la arquitectura contemporánea. In: Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 14.

2
Aludimos aqui à análise gestaltica que Colin Rowe propõe em Collage City (1981). 

3
FOUCAULT, M. El orden del discurso. Buenos Aires: Fábula Tusquets, 2002, p. 53.

4
MONTANER, J.M. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Barcelona: Gustavo Gili, 2008, p. 19.

5
Este texto se apropria e atualiza algumas questões expostas na resenha “O final da trilogia”. PASSARO, A.; BRONSTEIN L. O final da trilogia. novembro, 2003. Em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/02.023/3203

6
MONTANER, J.M. Después del movimiento moderno. Arquitectura de La segunda mitad del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1993, p.7. 

7
LANDAU, R. Notes on the concept of an architectural position. AA Files, nº 1, 1991.

8
MONTANER, J. M. As formas do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 8.

9
SOLÀ-MORALES, I. Topografía de la arquitectura contemporánea. In: Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 15. 

10
“Ao considerar a cidade moderna desde o ponto de vista da capacidade perceptiva, segundo o critério da Gestalt, só cabe condená-la. Porque se se supõe que a apreciação ou percepção do objeto ou figura requer a presença de certo tipo de campo ou fundo, se o reconhecimento de certa classe de campo delimitado de qualquer modo é um pré-requisito de toda experiência perceptiva, e se a consciência de campo precede a consciência de figura, então, quando a figura não está suportada por nenhum marco identificável de referência, forçosamente há de debilitar-se e destruir-se a si mesma.” ROWE, C.; KOETTER, F. Ciudad Colage. Barcelona: Gustavo Gili, 1978, p. 66.

11
TAFURI, M. Teorias e História da Arquitetura. Madrid: Celeste,  1997, pp. 11, 14. 

12
MONTANER, J.M. La modernidad superada. Barcelona: Gustavo Gili, 1997, p. 32.

13
SOLÀ-MORALES, Ignasi. Presente y futuros. La arquitectura en las ciudades. Catálogo do XIX Congresso da UIA, Barcelona, 1996, p. 10.

14
Idem, p. 11.

15
Totalizando 10 encontros realizados em diferentes cidades do planeta, os congressos ANY sugeriam temas amplos para a discussão da problemática urbana a partir de um curioso jogo de palavras. 1991 - “Anyone”, Los Angeles; 1992 - “Anywhere”, Tokyo; 1993 – “Anyway”, Barcelona; 1994 – “Anyplace, Montreal”; 1995 – “Anywise”, Seul; 1996 – “Anybody”, Buenos Aires;  1997- “Anyhow”, Rotterdam; 1998 – “Anytime”, Ankara; 1999 – “Anymore”, Paris; 2000 – “Anything” – Nova Iorque. Os encontros foram organizados por Ignasi de Solà-Morales, Peter Eisenman, Arata Isozaki, Rem Koolhaas.

16
SOLÀ-MORALES, I. De la autonomia a lo intempestivo. In: SOLÀ-MORALES, I. Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 101. 

17
SOLÀ-MORALES, I. Topografía de la arquitectura contemporánea. In: Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 101. 

18
Já em 1992, ao analisar a obra recente de Rem Koolhaas , Alejandro Zaera Polo identifica uma experiência de projeto que apenas pode ser entendida como uma “série de geografias ou topografias cujo sentido é fundamentalmente operativo (...) uma produção rizomática, construída fundamentalmente sobre sua operatividade”. ZAERA POLO, A. OMA 1986-1991. Notas para um levantamiento topográfico. El Croquis, n.53, 1992, p. 36.

19
SOLÀ-MORALES, I. De la autonomia a lo intempestivo. In: SOLÀ-MORALES, I. Diferencias. Topografía de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 101.

20
Sobre estes conceitos e a dissolução de um suposto “paradigma formal” que sublinhava a arquitetura dos anos 70 e 80, ver: BRONSTEIN, L. Arquitetura e cidade contemporânea: novos parâmetros. Desígnio, nº 6, setembro, 2006. 

21
SOLÀ-MORALES, I. Territori. Lotus, nº 110, 2001. 

22
SOLÀ-MORALES, I. Paisajes. Annals, n.07, julho, 2001. 

23
Em seu estudo, “Paradigmas fin de siglo. Los 90 entre la compacidad y la fragmentación”. Arquitectura Viva, n. 66, 1999. Rafael Moneo também se refere a uma “arquitetura como paisagem” ao analisar as obras de Rem Koolhaas e seus discípulos holandeses. 

24
MONTANER, J. M. As formas do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. 

25
Grifo nosso. 

26
MONTANER, J.M. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Barcelona: Gustavo Gili, 2008, pp. 10-12.

sobre a autora

Laís Bronstein é Arquiteta (FAU-UFRJ), Mestre (FAU-USP), Doutora (ETSA de Barcelona, UPC) e professora PROARQ/FAU-UFRJ.

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