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As leis islâmicas (al-fikh) abrangem a organização urbana das cidades islâmicas; não segue à risca as imposições de um plano, defende os interesses da família, e revela um modo autossuficiente de fazer cidade, sustentado por suas próprias leis.


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TEIXEIRA DE SAMPAYO, Mafalda. Os regulamentos da cidade islâmica. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 169.04, Vitruvius, jun. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.169/5224>.

A cidade de Sanaa, Iêmen
Foto Antti Salonen [Wikimedia Commons]

Independentemente da opinião dos diferentes investigadores que têm estudado a cidade islâmica, e sobre a qual se discute se é ou não uma cidade organizada, resta-nos, para já, afirmar que devemos muito ao urbanismo islâmico e, como Le Corbusier disse um dia (1), aquele é um urbanismo excelente!

Já foram realizados diferentes estudos no sentido de estabelecer um protótipo para a cidade islâmica e muitas das conclusões dos investigadores têm pontos em comum (2). Mas, mesmo sem a leitura desses trabalhos, duma coisa estamos certos, todas estas cidades têm nitidamente a marca de uma cultura muito particular, que dá origem a uma forte separação entre o mundo privado e o mundo público, a um espaço onde cidade pública se opõe a cidade privada. Existem, certamente, inúmeros pátios nestas cidades; a organização faz-se de dentro para fora, em oposição à urbe ocidental onde se constroem primeiro as ruas e depois as casas. Mas, no fim, tudo isto resulta numa concepção unitária de conjunto. Esta cidade árabe é uma unidade coerente, complexa e bem protegida. Em todas as cidades islâmicas existe uma mesquita, normalmente posicionada no centro ou perto duma porta, e ruas principais que fazem a ligação ao exterior. Nestas encontram-se também diferentes tipos de comércio. Dentro dos bairros residenciais, as ruas tendem a ser mais estreitas e tortuosas, consequência da lei da hereditariedade.

A organização urbana das cidades islâmicas está abrangida pelas leis islâmicas (al-fikh) (3), isto é, no uso da terra são tidas em consideração, para além das questões religiosas, normas de conduta para o meio físico. Este urbanismo tem em linha de conta os interesses sociais dos seus habitantes. Não seguindo à risca as imposições de um plano, defende os interesses da família, revelando-se num modo de fazer cidade auto-suficiente, sustentado pelas suas próprias leis.

Existe regulamentação no que diz respeito à edificação das cidades islâmicas medievais. Aida Youssef Hoteit (4) alerta para a sua existência e nos fala em casos concretos. Outro investigador, Youssef Khiara (5), realizou um estudo sobre o urbanismo no direito muçulmano, baseado na leitura de um texto, de um corpo de jurisprudência do século XIV - “Kitāb al iclān bi ahkām al bunyān” -, cujo autor foi Ibn Rami (6). Este homem funcionava como um fiscal “municipal” de construção. Na redacção de Ibn Rami é feita uma “compilação selectiva de consultas jurídicas, de sentenças relativas aos prejuízos de construção e litígios de mediação. Como insinua o seu título (“Livro de proclamação de sentenças de construção”), esta colecção tem tendência a ser um código administrativo da produção arquitectural” (7).

Com base na leitura destes dois autores, e recorrendo a outra bibliografia auxiliar, iremos dar a conhecer alguns destes regulamentos para que se perceba o desenho desta cidade.

Crinaças brincam na chuva na cidade de Sanaa, no Iêmen
Foto BluesyPete [Wikimedia Commons]

As vias

Na cidade, a lei islâmica distingue entre a rua, o caminho público, que todas as pessoas têm direito a atravessar, e o beco ou o adarve que a maioria dos juristas considera como um caminho semiprivado, pertencente às propriedades circundantes e, ainda, o acesso ou seja a fina’. Existe, desta forma, uma hierarquia de vias: a rua chamada šāricc, tarīq nāfida, tarīq musarraha, etc.; o beco apelidado de sikka, zuqāq, zanqa, etc.; e a fina’, um espaço fronteiriço à entrada da casa, espaço mais privado que do domínio público.

Assuntos como aqueles que dizem respeito, por exemplo, à altura dos edifícios, à largura das ruas, à colocação das portas nas casas, ao uso da cobertura (açoteia), à existência de luz e ar fresco, a edifícios que ameaçam ruir ou a aspectos relativos a heranças não foram descurados pelos juristas árabes, mesmo em tempos tão longínquos como a Idade Média.

A fina’

Vamos agora falar de um espaço semiprivado dentro da cidade que foi denominado por fina’ e que os juristas admitem fazer parte da propriedade. A fina’ corresponde ao espaço imediatamente raiano à porta da casa e só existe quando não perturba o movimento da rua (8). A fina’, segundo os juristas e os habitantes das cidades islâmicas, é um espaço aberto em volta de um edifício. Nas ruas principais a fina’ corresponde ao espaço confinante à porta da casa, não devendo estender-se mais que a metade da largura da rua. Nos becos a fina’ compreende todo o espaço em frente da casa, estendendo-se, neste caso, a toda a largura da rua.

A fina’ deu origem ao sabat, ao fechamento da rua no nível superior, isto é, o conceito de sabat terá surgido da ideia de usar o espaço aéreo da fina’ nos dois lados da rua (9). Funcionava, então, como uma ponte que unia duas casas em lados opostos da via.

Segundo um texto do califa cUmar ibn al Hattab, todo o proprietário dispõe dos direitos de usufruir dos seus acessos. Estamos no direito de conceber esta noção como o transbordamento virtual do imóvel (10).

A rua

Os espaços públicos abertos, na cidade islâmica, correspondem basicamente às ruas, pois os largos e praças são pouco comuns neste cenário urbano.

Sendo assim, apenas podemos falar de espaços livres em volta das casas ou no cruzamento destas e nunca desenhados com a intenção de serem praças ou largos.

Na cidade islâmica a rua está intimamente relacionada com a zona que ocupa e com a função que cumpre. Temos, assim, diferentes tipos de ruas na medina e nos bairros residenciais. Na medina encontramos ruas relativamente largas e regulares, enquanto nos bairros residenciais são mais comuns as ruas tortuosas.

Por outro lado, nas cidades islâmicas há uma percentagem muito alta de propriedade privada, e as ruas derivam da divisão das casas. Deste modo, a rua não prevalece em relação à casa, como nas cidades ocidentais, mas surge com um papel secundário.

O fato de as ruas serem estreitas e retorcidas provém, também, de fatores de ordem climática e psicológica. Como é sabido, o clima influencia imenso no desenho arquitetônico e urbanístico de uma cidade. Por este motivo se constroem ruas estreitas e sinuosas no sentido de funcionarem como reguladoras da temperatura do ar, estratégia idêntica à que observamos para os pátios. A intimidade é, como vimos, uma das características do modo de vida do povo muçulmano e a este agrada-lhe a pequenez de suas ruas e as surpresas causadas pelas quebras das mesmas. Existe um papel do factor psicológico relativo a estas ruas, ao muçulmano perturba-lhe a perspectiva contínua da rua direita, uma vez que acaba com toda a intimidade.

É importante referir o facto de os juristas estabelecerem larguras para as ruas principais e não intervirem, geralmente, em situações de beco. O profeta ditou limites de largura para as ruas - “7 cúbitos”: “cuando la gente se disputa sobre la anchura de la calle, (dijo) su límite es 7 cubitos” (11).

A rua é do domínio público e, como tal, são seguidas à risca as possíveis usurpações, assim como as suas medidas, cujos argumentos jurídicos foram beber informação a dois relatos proféticos. Um, de que já se falou e que ditava cerca de três metros e meio de largura para esta via; o outro, que não se sabe se é verosímil: “…aquele que usurpa uma parcela do caminho, Deus põe-lhe um colar de sete campos” (12).

Contudo, embora se tentasse proteger a via pública para que as pessoas não a invadissem com suas casas, havia benevolência sempre que a usurpação não criasse danos. Do texto de Ibn Rami chegou-se à conclusão que existiam três tendências. Segundo Ibn Rami: “Para alguns, a existência de construção transbordante na via pública é tolerada quando não ocasiona nenhum incómodo para os utentes; para outros, se a rua em questão ultrapassa os sete côvados pode-se aceitar a usurpação, caso contrário não; finalmente temos a atitude inflexível que não admite transgressão em detrimento do domínio público, qualquer que seja a largura da rua” (13).

Para quem já percorreu cidades islâmicas, não é estranha a existência, no segundo piso, de construções salientes que se debruçam sobre a rua. Estas construções, desde que não perturbassem o funcionamento da rua, não eram proibidas pelos juristas. Estas saliências até podem dar origem ao fechar da rua, num nível superior, no caso de um proprietário que possua habitação nos dois lados opostos da rua. Ou seja, ele avança em consola para a rua nos dois lados e acaba por estabelecer, assim, uma ligação entre as duas casas. A tal ponte de que falámos acima tomou a designação de sabat.

O beco

O beco é considerado o elemento mais característico do tecido urbano islâmico e é tido como propriedade semiprivada. O facto de não ser apenas do domínio privado implica que qualquer alteração tem de ser do consenso de todos os seus habitantes.

Na cidade islâmica sobressaem os becos, as ruas sem saída. Os becos (adarves) surgem como a negação da rua. A rua formativa é aquela que conduz de um lado ao outro, sendo peça essencial do espaço público. O adarve não tem saída, não tem continuação, não serve a um interesse público em geral, mas sim a um privado, ao conjunto de casas que o formam. É, portanto, uma rua privada que se fecha à noite, isolando e protegendo uma pequena comunidade de vizinhos.

O surgimento destas ruas sem saída pode estar ligado a uma ideia de defesa, a uma estratégia militar. Elas serviam como armadilha para o caso de uma retaliação no interior da cidade, ficando os invasores encurralados no interior da rua, pois facilmente se fecharia o outro lado do beco.

É comum encontrarmos muitos destes becos fechados por portas em grades de ferro. Esta porta tem a designação de attadrīb, e visa a protecção dos momentos de perturbação (14).

Viela da cidade de Sanaa, Iêmen
Foto Rod Waddington [Wikimedia Commons]

As casas

Maskan é a palavra casa na língua árabe. Esta palavra deriva de uma outra, sakina, que significa, simultaneamente, paz e tranquilidade (15). A casa tradicional árabe segue uma forma simbólica, que se repete em diferentes países. É uma casa que se fecha para a rua e se abre para Deus (16), através de um pátio, geralmente em lugar central relativamente aos quartos que compõem a habitação.

A questão das aberturas, que dão para o exterior, é pensada e cuidadosamente revista: “A casa tradicional é, toda ela, interioridade: as aberturas para a rua são reduzidas à sua expressão mais simples: trata-se mais de um sistema de arejamento e de seteiras para o anulamento do exterior, do que propriamente de janelas.” (17).

Kacem Basfao utilizou a simbologia de Freud - a da interpretação dos sonhos -, para ilustrar a forma da casa islâmica. Entre outras observações, falou na ligação feminina às forma cúbicas. Nesta sociedade a mulher ficava resguardada no interior da casa enquanto o homem saía para trabalhar, e daí que a casa seja um espaço da mulher: “O centro da casa (o pátio) é um vazio, simbolizando a personagem central da família, o pater famílias, omnipresente, mas apenas pelo que representa, porque a casa é um espaço estritamente feminino, uma vez que a mulher o ocupa em permanência, enquanto o homem apenas lá está de passagem.” (18).

Esta casa tem normalmente um pátio no centro e a sua materialização mais perfeita assemelha-se a um cubo. Não nos poderemos esquecer que o quadrado é tido como uma figura harmoniosa, dando assim equilíbrio ao lar.

Como já aqui foi referido, o exterior das casas árabes apresenta um número muito limitado de aberturas. Em certos casos aparece, nos alçados destas casas, uma saliência em madeira com um pequeno orifício - o “ajimece”- que servia para as mulheres observarem o exterior sem serem vistas.

A casa é a menor célula da cidade islâmica. Dinah Guimaraens considerou, assim, que nas cidades islâmicas a casa particular é tida como o “cerne de seu assentamento urbano” (19).

Também no que respeita ao número de pisos nas casas, a questão da intimidade influencia substancialmente. O levantamento de edifícios altos é considerado como uma ameaça à vida privada. Da mesma forma, o uso da cobertura da casa, como é comum nestas cidades, tem de garantir, geralmente, recorrendo a muros, que o habitante não seja visto, e nem que veja o vizinho.

A casa e a sua utilização também estão associadas a conceitos ligados ao Islão, que admite o regime da propriedade absoluta, de dispor, de usar e de gozar os imóveis da maneira mais completa, mas sem prejuízo para o outro, para que haja uma boa harmonia entre vizinhos. Segundo Youssef Khiara, numa dada casa, com dois pisos, que goze de co-propriedade colocam-se sempre as relações de dependência recíproca entre os habitantes do rés-do-chão e do andar superior. O habitante do primeiro piso tem de assegurar a estabilidade e proteger a casa em relação ao segundo piso. Se, por algum motivo, a casa ameaça ruir, o ocupante do rés-do-chão é intimado a consolidar e restaurar as suas fundações para evitar o desabamento do andar. E se o seu proprietário não tiver possibilidades financeiras para concertar a obra fica desde logo obrigado a vender a sua parte, com a condição de reparação imediata.

Assim, mesmo para os edifícios em mau estado, foram pensadas medidas que protegiam as pessoas: “Los juristas no se centraron en la seguridad de la propiedad en sí, sino en la seguridad de la gente que vive dentro de ella y al público que puede pasar cerca de ella y también del daño que puede causarse en la propiedad vecina.” (20).

A cidade de Sanaa, Iêmen
Foto Rod Waddington [Wikimedia Commons]

As aberturas, portas e janelas

Todo o tipo de vistas obedece a regras, como já foi dito. As portas que dão para a rua estão sujeitas a um esquema que protege os residentes de olhares estranhos vindos do exterior.

É muito raro uma porta ter outra exatamente em frente. Estão, assim, proibidas as colocações de portas frente a frente: “A colocação das portas e lojas engendra também incómodos inegáveis. No instalar das vistas (frestas), distingue-se entre portas e lojas antigas e aquelas realizadas depois. Os arranjos anteriores à construção feita pelo vizinho restam legais a despeito do mal que eles causem. O contestatário terá que se fechar para se proteger. A sorte de novos empreendimentos, cuja instalação é nociva, depende da opinião do mestre pedreiro nomeado pelo juiz.” (21).

Como afirma Aida Youssef Hoteit, na colocação de portas, abertura de janelas, levantamento de edifícios e tratamento das açoteias, as soluções para cada caso diferem, mas todas elas têm em consideração as mesmas regras e convicções, ou seja, a impossibilidade de olhares curiosos.

As aberturas nas paredes exteriores são em pequeno número na cidade islâmica para evitar que se veja o interior das casas e também as pessoas na sua intimidade. Esta matéria colocou-se também aos especialistas em direito. Os ocidentais foram mais complexos nesta preocupação das aberturas nas paredes exteriores das casas, distinguindo aberturas ordinárias, aberturas direitas e ainda aberturas oblíquas, enquanto para os Muçulmanos apenas se coloca a dificuldade de gerir as vistas, ou seja, tudo aquilo que revele a vida íntima das pessoas.

Y. Khiara afirma que no urbanismo árabe os procedimentos se passam da seguinte forma: “Há um princípio de ordem cronológica sobre o qual os juízes se baseiam para forjar as suas decisões. Eles admitem como legais as vistas anteriores à construção nova empreendida pelo vizinho. Este último tem que refazer a sua construção de modo a ficar fora do alcance dos olhares. Em princípio a altura legal das vistas médias será equivalente à altura de um homem à qual se juntam cinco palmos. Uma segunda em vigor em Tunes fixa esta altura em sete palmos a partir do chão (solo) do quarto. Por outro lado, se a abertura permite ouvir a voz e as palavras do vizinho pode ser considerado um mal” (22).

Não são só as janelas e portas que preocupam a jurisprudência árabe. O simples movimento do almuadem pode interferir na vida privada dos cidadãos. As leis proíbem este homem de subir ao minarete fora das ocasiões de chamada às orações (23).

Lei da hereditariedade

Outro fator que contribuiu para o desenho da cidade árabe está subjacente na lei da herança ou hereditariedade. Podemos, em parte, responsabilizar esta lei pelo aparecimento de tantas ruas sinuosas e pelo avanço sucessivo e abusivo sobre a rua. Tudo isto porque “no Islão, o proprietário pode, se assim o desejar, exercer o direito de sucessão da sua propriedade a outra pessoa depois da sua morte. No mundo islâmico uma propriedade não se herda de um para outro por si mesma. A propriedade passa para todos os sucessores de acordo com a posição de parentesco na arvore familiar” (24).

A evacuação das águas

Em relação à drenagem das águas, há que assinalar o facto de estas serem separadas e tratadas de forma diferente. As águas das chuvas e as águas usadas são evacuadas seguindo moldes divergentes (25). Assim, para as primeiras, a drenagem é algo natural e faz-se pela posição da cidade, geralmente em lugar alto, no cimo de um monte. As águas escorrem pelas ruas sem que para isso seja necessário algum trabalho por parte dos habitantes. Segundo Youssef Khiara, “o proprietário cujos fundos estão na borda dum terreno mais elevado do que o seu, é obrigado a receber no seu domínio, sem indemnização, as águas que aí chegam seguindo a inclinação natural do solo ou dos terraços. Melhor ainda, se o proprietário do fundo inferior quiser fechar, como lhe é permitido, ele não deve elevar um dique. (…) Ele deve fazer no seu muro separador aberturas ou goteiras que possam assegurar e transbordar as águas vindas do vizinho” (26).

No que diz respeito às águas usadas, existia uma rede de saneamento que obedecia a um sistema complexo. Esta rede de águas atravessava todo o tipo de edifícios, públicos e privados, ruas diversas até alcançar o ponto de rejeição. Temos dois tipos de canalização neste processo - aberta e fechada: “para equipar o seu local dum dreno de evacuação, o proprietário encontra-se em presença de duas eventualidades: quando a canalização é do tipo fechado, o proprietário é obrigado a atravessar os fundos dos vizinhos para desaguar no colector, o seu empreendimento está sujeito ao consentimento dos proprietários envolvidos; quando o esgoto é do tipo aberto comunica directamente com o colector. Ele pode instalar o seu canal na condição de pagar uma cotização que equivale às despesas pagas pelos outros utentes, quando da instalação do sistema de saneamento” (27).

Todo este processo de saneamento envolve os cidadãos de forma directa. Cada casa tem a seu cargo várias tarefas. Primeiro a reparação do sistema é da responsabilidade das famílias que o usam. Cada família, ou melhor dizendo, cada casa deve contribuir consoante o número de pessoas que a constituem. Depois, no que diz respeito às ruas de menor escala, aos becos e ruelas, existe um dreno colectivo, no qual “a primeira casa que dele se serve deve despejar até à segunda casa. Em seguida os proprietários da primeira e segunda casa reunidos purgam até à terceira casa. Os três proprietários devem limpar até a quarta e assim sucessivamente até ao ponto de ligação com o colector da rua.” (28). Deste modo, a rua grande irá seguir a mesma regra, sendo a tarefa dos colectores da responsabilidade de cada casa que os usa directamente.

Considerações Finais

A lei muçulmana foi a grande responsável pela forma física desta cidade: “The development of building and urban design principles centered primarily around housing and access. Their development paralleled that of Islamic Law, and soon became semi-legislative in nature. (…) Islamic law responded well in fulfilling the demand for buiding/urban design guidelines and a framework for adjudicating related conflicts.” (29). Para se entender este urbanismo, é necessário o conhecimento das cláusulas jurídicas e regras normativas que determinam esta produção arquitectural e este tipo de paisagem urbana.

O fenómeno urbano islâmico rege-se, assim, por cláusulas jurídicas e regras normativas que visam, entre outras causas, proteger a privacidade dos habitantes. Neste contexto, o assunto das vistas não foi descurado pelos doutores de direito: “Este fato decorre da convicção que faz o muçulmano do interior da sua casa. Ele a considera como domínio exclusivamente privado que deve ser oculto com ciúme dos olhares curiosos do mundo exterior. Para estar de acordo com esta ética, os jurisconsultores não omitiram as sentenças que regulassem a questão” (30).

Como vimos, a colocação das aberturas nas casas obedece a regulamentos que seguem princípios de ordem cronológica, isto é, se os juízes tiverem que decidir a destruição de uma de duas janelas, optam pelo fechamento da mais recente, tendo sempre como objetivo primário a proteção dos olhares alheios (31).

notas

1
LE CORBUSIER. Manière de penser l’urbanisme. Paris, Denoel/Gonthier, 1972, p. 139.

2
Esta é uma cidade muito parecida nas mais diversas partes do mundo: “…as cidades muçulmanas apresentavam como principal característica uma certa semelhança em sua estrutura urbana, o que fez com que elas revelassem um ar familiar mesmo estando situadas em regiões culturais muito diferenciadas.” GUIMARAENS, Dinah Tereza Papi de. Arquitectura Medieval: as Cidades, as Catedrais e os Castelos. Tese de Mestrado em História, Rio de Janeiro, IFCS - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, (Texto Policopiado), 1992, p. 23.

3
Al-Fikh é a jurisprudência ou o ensinamento oral escrito por juristas para resolver as questões não abordadas especificamente pelas grandes fontes tradicionais: o Corán e a Sunna.

HOTEIT, Aida Youssef. Espacio y organización urbana en la ciudad islámica, Cuadernos de Investigación Urbanística do Seminario de Planeamiento y Ordenación del Territorio del Instituto Juan del Herrera. Madrid, Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid, Departamento de Urbanística y Ordenación del Territorio, 1993, p. 20.

4
HOTEIT, Aida Youssef., ob. cit., 1993.

5
KHIARA, Youssef. Propos sur l’urbanisme dans la jurisprudence musulmane, Arqueologia Medieval. Porto, Edições Afrontamento e Campo Arqueológico de Mértola, 1993.

6
Este árabe do século XIV era um mestre pedreiro que estava ao serviço do Juiz Ibn Abderrafî. Ibn Rami tinha a tarefa de elaborar relatórios quando nos processos relativos a imóveis as disposições dos magistrados não eram suficientes para iluminar a consciência do juiz. Tinha, também, a tarefa de zelar pelo bom uso das vias públicas e diagnosticar o estado das edificações, para evitar derrubamentos acidentais.

Este homem, de que nos fala Youssef Khiara, tinha as funções de um mohtasib, um funcionário existente nas cidades marroquinas, que vigia a segurança das ruas e decide sobre a demolição das casas que ameaçam ruína, controla o comércio, e se assegura de que as mercadorias têm etiquetas indicando o preço exacto. Tem, assim, funções de sensor, e funções de ordem moral e material. KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 34.

MARÇAIS, Georges. La conception des villes dans l’Islâm, Revue d’Alger,1945, p. 531.

7
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 34.

8
HOTEIT, Aida Youssef., ob. cit., 1993, pp. 21-25.

Sobre o conceito deste espaço, a fina’, veja também, HAKIM, Besim Selim. Arabic-Islamic cities: building and planning principles. London, KPI Limited,  1986, pp. 27-29.

9
Ibidem, p. 28.

10
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 37.

11
Sete cúbitos correspondem aproximadamente a três metros e meio, mais ou menos um metro para cada dois cúbitos. Youssef Khiara fala-nos em côvado, que significa exactamente o mesmo que cúbito e é equivalente a sessenta e seis centímetros. Ibidem, p. 38.

HOTEIT, Aida Youssef. ob. cit., 1993, p. 24.

12
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 38.

13
Ibidem
.

14
Ibidem,
p. 37.

15
HOTEIT, Aida Youssef. ob. cit., 1993, p. 41.

16
“…pode esconder-se tudo aos homens, não se pode esconder nada a Deus. A casa tradicional é um espaço sagrado (aberto para o Céu através do pátio) e secreto (vedado aos homens por paredes exteriores que são verdadeiras muralhas…)”. BASFAO, Kacem. Arquitectura e civilização tradição e modernidade no Magrebe, A simbólica do espaço: cidades, ilhas, jardins, Lisboa, Estampa, 1991, p. 220.

17
Ibidem
, p. 219.

18
Ibidem
.

19
GUIMARAENS, Dinah Tereza Papi de. ob. cit.,1992, p. 30.

20
HOTEIT, Aida Youssef. ob. cit., 1993, pp. 29-30.

21
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 36.

22
Ibidem
, pp. 35-36.

23
Ibidem
, p. 36. O muezim (almuadem) convocava os fiéis cinco vezes por dia para rezar. GUIMARAENS, Dinah Tereza Papi de. ob. cit., 1992, p. 23.

24
HOTEIT, Aida Youssef. ob. cit., 1993,  pp. 31-32.

25
Selim Hakim estudou a fundo a drenagem das águas nas cidades islâmicas, lendo, tal como Youssef Khiara, o texto de Ibn al-Rami.

Veja: HAKIM, Besim Selim. ob. cit., 1986, pp. 48-54.

26
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 39.

27
Ibidem
, pp. 39-40.

28
Ibidem,
p. 40.

29
HAKIM, Besim Selim. Arabic-Islamic Cities: Building and Planning Principles. London, KPI Limited, 1986, p. 15.

30
KHIARA, Youssef. ob. cit., 1993, p. 35.

31
Ibidem
.

sobre a autora

Mafalda Teixeira de Sampayo é Arquitecta, docente na Escola de Tecnologias e Arquitectura - Departamento de Arquitectura e Urbanismo do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE/IUL), Portugal. Investigadora do CIES/IUL e do CIAAM/IUL. Licenciada em Arquitectura (1997) pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FA-UTL), Portugal. Mestre em Desenho Urbano (2001) pelo ISCTE/IUL. Doutoramento em Urbanismo e de Arquitectura, em 2012, pela mesma Universidade (ISCTE/IUL).

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