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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A experiência dos espaços associados aos afluentes do Mandaqui demonstra a possibilidade de se retomar a consciência sobre a existência de pequenos córregos tamponados em São Paulo. Por meio de vestígios, os córregos ocultos insinuam-se à superfície.

english
The experience of the spaces related to the Mandaqui’s tributaries shows the possibility of regaining awareness about the existence of covert streams inSão Paulo. Through traces, hidden streams insinuate themselves to the surface.

español
La experiencia de los espacios asociados a los afluentes de lo Arroyo Mandaqui demuestra la posibilidad de reanudar la conciencia de la existencia encubierta de pequeños arroyos en São Paulo. Mediante rastros, arroyos ocultos se insinúan a la superficie.


how to quote

CABRAL, Arthur Simões Caetano. Os córregos ocultos e seus resquícios nos espaços livres urbanos. Os afluentes do córrego Mandaqui. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 177.03, Vitruvius, fev. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.177/5479>.

Ao se caminhar pela Avenida Engenheiro Caetano Álvares, na Zona Norte de São Paulo, é praticamente inacessível à consciência o fato de que se está sobre o leito tamponado do córrego Mandaqui. É ainda mais difícil de imaginar que, abaixo da superfície, há diversos córregos menores que desaguam no Mandaqui. A exemplo de muitas outras vias e espaços livres das grandes cidades brasileiras, a avenida mencionada resulta de intervenções realizadas ao longo da consolidação do espaço urbano que incidiram diretamente sobre cursos d’água. Suprimindo os córregos enquanto elementos abrangidos por uma noção de paisagem (1) ou transformando profundamente suas feições, tais intervenções respondem de maneira bastante peculiar a certas demandas das cidades contemporâneas – relacionadas à mobilidade, à drenagem urbana, aos sistemas de saneamento. A peculiaridade do intervir em tais elementos reside, justamente, no fato de que, por mais invasiva que seja a operação empreendida pelo fazer humano, há certos aspectos dos cursos d’água e de sua conformidade que parecem resistir ao seu ocultamento, manifestando-se à superfície nos entreatos do espaço urbano.

A relação do esqueleto urbano paulistano com as características geomorfológicas da bacia sedimentar do Alto Tietê é forte a ponto de permitir afirmar que um estudo do sítio da metrópole pode ser entendido como o estudo do próprio sítio da chamada bacia de São Paulo (2). Do ponto de vista histórico da consolidação e da expansão da cidade de São Paulo, o organismo urbano também se mostra indissociável da conformação dos cursos d’água. Se, por um lado, as colinas enxutas entre o Tamanduateí e o Anhangabaú corresponderam à localização ideal para o início da ocupação jesuítica, no século 16, anos mais tarde foram as planícies alagáveis às margens dos grandes rios paulistanos que favoreceram a implantação de linhas férreas, na segunda metade do século 19. Até as primeiras décadas do século 20, nas margens dos córregos paulistanos, era possível escutar o canto das lavadeiras. Naquela época, as bicas e chafarizes davam lugar aos primeiros sistemas de abastecimento doméstico, revelando novas relações entre a cidade e as águas (3). Desde os grandes rios paulistanos aos pequenos veios d’água, capilares da bacia do Alto Tietê, os nexos entre o homem e os corpos d’água manifestam-se de formas muito distintas ao longo do tempo.

Na atualidade, há rios tradicionalmente conhecidos que, ainda que profundamente transformados, são facilmente reconhecidos no cotidiano urbano de São Paulo. Tendo em vista a correspondência entre a bacia sedimentar do Alto Tietê e o sítio urbano paulistano, tais rios, como se poderia supor, ocupam as áreas centrais e de maior consolidação da cidade. É o caso do rio Tamanduateí, cujos meandros, uma vez retificados, deram lugar a zonas industriais ou do ribeirão Anhangabaú, tamponado sob a Avenida Prestes Maia e sob o Parque do Anhangabaú, por exemplo. Grande parte d’água que escoa pelos principais rios da cidade, a caminho do Tietê, todavia, é oriunda de córregos capilares. Apesar de sua aparente insignificância frente ao todo da bacia do Alto Tietê, tais córregos correspondem à maioria dos cursos d’água paulistanos. A transformação no traçado ou o tamponamento desses pequenos córregos, em sua maioria anônimos, raramente deram lugar à implantação de avenidas ou de áreas verdes amplas. Os espaços que resultam das intervenções empreendidas nos córregos capilares – becos, escadarias, vielas, pequenos espaços com características de praças – são vestígios da existência de cursos d’água que já não são reconhecidos em suas feições primitivas.

O córrego Mandaqui e seus afluentes em 1930
Mapa topográfico do município de São Paulo. 1:20 000 [Empresa Sara do Brasil, S.A.]

Por outro lado, a paisagem que foi negada pela cidade sobrevive – em condições memoriais – nas lembranças daqueles que, em tempos idos, a presenciavam. O feitio primitivo dos córregos capilares aflora na memória coletiva (4) dos mais velhos por meio de seus relatos. A identificação em campo, em levantamentos cartográficos de diferentes épocas e nas lembranças de antigos moradores, de vestígios de córregos, torna possível a descoberta dos caminhos outrora esculpidos pelo escoar das águas. Pouco a pouco, as atuais “sobras” do tecido urbano são restituídas em sua identidade; pouco a pouco formas sensíveis do escoar velado das águas são emprestadas à imaginação. À medida que a consciência da existência dissimulada de pequenos veios d’água no tecido urbano é retomada, os espaços resultantes da ocultação dos córregos, em geral destituídos de qualquer intenção que os qualifique enquanto espaços livres públicos, podem passar a estabelecer, ainda que em condições imaginativas, nexos outros entre a cidade e as águas.

Não é preciso analisar a fundo um mapa hidrográfico da bacia do Alto Tietê para que se tenha uma primeira noção da complexidade dos cursos d’água paulistanos. Se na porção central do sítio – compreendida entre a confluência do Tietê e do Pinheiros – os numerosos córregos se ramificam em afluentes e subafluentes ainda menores, a norte do Grande Rio é praticamente indecifrável a trama formada por minúsculos veios d’água contorcidos. No que diz respeito à ocupação urbana de São Paulo e a seu tecido urbano, é aparentemente desnecessário mencionar a heterogeneidade que a caracteriza em termos sócio espaciais enquanto cidade. Ao pensar uma suposta sobreposição entre mapas – o das águas e o da cidade – é de se esperar que haja intersecções, pequenos traços referentes à especificidade de como a cidade se conformou aos cursos d’água e de como eles foram transformados visando ao atendimento de suas demandas. Mas, em meio a essa porosidade do espaço da cidade, em que a dureza do asfalto não apaga por completo a existência das águas, como penetrar nos pormenores da malha urbana e alcançar, em escala real, as minúcias dos cursos d’água capilares ocultos? Ao longo desses pequenos córregos canalizados, como trazer à tona a consciência de sua presença dissimulada, ascendendo às suas nascentes?

O trajeto aqui proposto é o do barqueiro teimoso, daquele que insiste em remar contra a correnteza para chegar a seu destino. Para remontar as nascentes dos córregos capilares existentes em São Paulo, propõe-se que o ponto de partida seja a foz dos principais rios paulistanos – trajeto oposto ao do escoamento das águas. O grande Tietê, depois de passar por São Paulo e receber as águas de boa parte dos rios e córregos paulistanos, percorre um longo caminho antes de desaguar no mar. Encontra o rio Paraná na divisa com o Mato Grosso do Sul e desemboca no rio da Prata para que, só então, conclua sua viagem ao desaguar no Atlântico – encontro este, celebrado por uma imensa foz. Para remontar às nascentes do Tietê seria necessário chegar ao município de Salesópolis, a leste de São Paulo. Todavia, as nascentes do Tietê não são o destino do trajeto aqui proposto. São os vestígios de pequenos afluentes do córrego Mandaqui que se pretende retomar com esse percurso.

Córrego oculto, o guarda corpo da antiga ponte faz as vezes de floreira
Foto Arthur Cabral

São largas as várzeas submersíveis do Tietê – ou Anhembi, na língua Tupi, maior rio do sítio urbano de São Paulo. Apesar dos edifícios interceptarem prontamente a visão de quem nelas se encontra, é possível avistar, ao longe, a elevação do terreno. À medida que se afasta dessas várzeas, alcançando-se os primeiros terraços fluviais a norte do Grande Rio, nota-se que a topografia se torna mais movimentada. A ondulação do terreno, fruto da ação milenar das águas sobre as rochas cristalinas dos sopés da Serra da Cantareira, é o índice da presença de diversos afluentes do Tietê e dos divisores de águas que conformam seus vales.

À altura do bairro da Casa Verde, uma larga galeria se abre na calha de concreto do Tietê retificado. Sobre ela, a inscrição “Córrego do Mandaqui” – na condição de um quase epitáfio – dá nome às águas que ali jazem e que outrora escoavam abertas à paisagem. Canalizado na porção central da Avenida Engenheiro Caetano Álvares, o Mandaqui permanece hoje encerrado sob um canteiro gramado cuja função é ordenar o fluxo de automóveis. Entre sua foz, no Tietê, e suas nascentes, nas proximidades do Horto Florestal, são várias as afluências do Mandaqui – ou rio dos Bagres, na língua Tupi. Apesar de sua condição subterrânea, é possível notar, ainda hoje, certos pontos onde outros cursos d’água atingem o Mandaqui. Com efeito, o vale relativamente largo do córrego contrasta com o de seus afluentes, muito bem encaixados enquanto pequenos sulcos na topografia. A cada esquina da Avenida Engenheiro Caetano Álvares, ladeiras e escadarias permitem o acesso às vertentes leste e oeste do córrego Mandaqui. Entre elas, baixadas no terreno revelam-se como os prováveis percursos de escoamento das águas vindas das áreas mais altas da bacia. Tais aspectos do terreno são, praticamente, os únicos vestígios da presença de cursos d’água nas proximidades do vale principal da bacia do Mandaqui. Apesar do traçado coincidente ao da avenida implantada, os espaços resultantes da intervenção guardam poucos sinais que atestem sua condição fluvial. Já do tamponamento dos pequenos cursos d’água contribuintes do Mandaqui, como será visto, as marcas que permanecem são muitas e muito variadas.

Dentre os vários córregos que desaguam no Mandaqui, será percorrido o trajeto do córrego das Cobras, situado na vertente leste da referida bacia. O córrego das Cobras escoa ligeiro pelas colinas do bairro de Imirim e Casa Verde. Suas condições atuais são similares às da maioria dos demais córregos vizinhos a ele: possui extensão de pouco mais de um quilômetro; situa-se em área urbanisticamente consolidada a partir de meados do século 20; suas águas encontram-se completamente canalizadas e tamponadas. Assim, as descrições aqui registradas – variando, em certos trechos, dos aspectos mais concretos às condições mais imaginativas suscitadas pelos vestígios das águas – pautam-se na análise do córrego das Cobras enquanto um exemplo dentre muitos outros capilares que drenam a bacia do córrego Mandaqui.

Córrego oculto, no espaço estreito da viela o olhar avança longe
Foto Arthur Cabral

Percebe-se certo alargamento no fundo do vale quando, à altura do bairro do Imirim, se chega à esquina da Avenida Engenheiro Caetano Álvares com a Rua Paulo Gatti. Não é possível saber de antemão – há carros estacionados na rua, árvores nas calçadas – mas ali, logo abaixo da superfície, fora escondida a foz do córrego das Cobras. Os primeiros metros desta estreita rua sem saída são praticamente planos. No entanto, basta levantar um pouco o olhar para se notar que o terreno, a uma distância relativamente curta, se eleva de modo íngreme, indicando o caminho a montante. Tal caminho se encaixa no terreno e, de alguma forma, sugere o curso de um rio.

Mas, para seguir o rastro do córrego em direção às suas nascentes, deve-se contornar a quadra, já que a Rua Paulo Gatti não tem saída. Chega-se, então, a um canteiro alongado que beira os lotes construídos. O espaço da rua alarga-se – todavia, não se trata de uma praça. As árvores deste canteiro possuem porte limitado, deixando supor que o espaço para o desenvolvimento das raízes é cerceado pela presença da galeria onde se encerram as águas do córrego das Cobras. Arrematando uma das extremidades do canteiro, o guarda-corpo de uma antiga ponte, faz as vezes de “floreira”.

Prosseguindo o olhar a montante, é possível reconhecer certa continuidade no corredor iniciado pela Rua Paulo Gatti, ao longo de uma viela estreita e mal pavimentada. O olhar avança longe nesse ponto, parece subir centenas de metros na estreiteza do caminho. Como se fosse possível avistar, dali, as nascentes do córrego, tem-se a sensação de que se está dentro de seu canal, os muros cegos na condição de margens. O espaço espremido da viela desafia o olhar a ir além das paredes sujas e do piso cimentado – a estreiteza desafia o olhar a rompê-los. Constrangidas pelo aperto a que foram submetidas, imagina-se as águas do Cobras num verdadeiro jorro, num embate estridente com os canos onde foram encerradas. Mais adiante, o som enérgico das águas confirma tal impressão. O córrego também parece desafiado a romper com sua clausura.

Córrego oculto, janelas abertas ao improviso parecem espiar, curiosas, os vestígios do córrego tamponado
Foto Arthur Cabral

De um lado e de outro dessa viela, as casas, visivelmente mais antigas que a via improvisada, atestam a presença oculta do córrego das Cobras, seu antigo vizinho. Com efeito, os moradores de tais imóveis têm guardada em sua memória a imagem do córrego que escoava abertamente por trás de suas casas. O mau cheiro, a presença de insetos e as inconvenientes cheias periódicas do curso d’água, todavia, dão o tom de seus relatos. Mesmo antes de canalizado, nos últimos anos de sua presença aberta à superfície, o córrego das Cobras já havia sido negado enquanto elemento da paisagem.

Como vestígio da paisagem à qual a cidade se contrapôs, o que pode ser percebido pela canalização da maior parte dos cursos d’água da bacia do Mandaqui, a presença do córrego das Cobras pode ser trazida à tona de forma ainda mais direta alguns metros adiante, na esquina da Escola Estadual Professor Orlando Horácio Vita. Mais uma vez, fragmentos de guarda-corpos de uma antiga ponte margeiam – desprovidos de sua função – o passeio público.

Além disso, a Rua Diogo Cabrera, onde podem ser vistos os vestígios da antiga ponte, possui traçado exatamente perpendicular ao vale do córrego da Cobras, o que faz dessa via uma ladeira bastante pronunciada. Sua implantação permite não apenas a possibilidade de se apreender com nitidez o relevo, cuja forma fora esculpida a partir do insistente escoar das águas, como também revela, por meio da antiga ponte, que os primeiros projetos de loteamento do bairro do Imirim e de seus arruamentos não previam a canalização do córrego das Cobras. A comprovação dessa hipótese surge a partir da análise dos levantamentos cartográficos de Vasp Cruzeiro, de 1954, quando já eram visíveis vários arruamentos cruzando o curso d’água, por meio de pontes e pinguelas, e edificações situadas ao longo de todo o seu vale.

Córrego oculto, entre antigas pontes, o ruído rouco das águas oclusas invade a rua por meio de bocas de lobo
Foto Arthur Cabral

Fica evidente certa indiferença em relação à então ainda possível integração do curso d’água aos espaços do bairro. A princípio não se pensava em canalizar o córrego das Cobras, ou não se tinha o apoio do poder público para tal empreitada. Apesar do razoável número de construções em suas imediações desde os anos 1950, provavelmente as águas do córrego eram, até então, limpas. Mesmo assim, a urbanização, ao longo de sua consolidação, ainda que sem ocultá-lo, voltou as costas ao curso d’água. A partir do momento em que sua presença passou a significar um transtorno relacionado ao mau cheiro e à consequente presença de insetos e ratos – devidos não a outro motivo, se não ao próprio adensamento do bairro – não houve qualquer constrangimento em realizar sua canalização e seu tamponamento. Com isso, tem-se que os vestígios da existência do córrego das Cobras são verdadeiras sobras no tecido urbano.

Próximo aos fundos da Escola Estadual Professor Orlando Horácio Vita, posicionando o olhar na Rua Joaquim Couto, há outra viela que corta de ponta a ponta a quadra seguinte (5). Sobreposta ao curso do Cobras, a viela não permite acesso a nenhum lote: estes, por sua vez, têm seus fundos voltados para a viela. O pavimento, em tom de cinza mais claro que o do asfalto das ruas adjacentes, é a própria laje de concreto construída há poucos anos na ocasião do tamponamento do córrego. O desalinhamento nos muros das casas, que as separavam de forma tosca das águas do córrego das Cobras, dá à agora seca via um aspecto fragmentado. Nesse ponto tem-se a sensação de que o olhar não consegue avançar mais do que alguns poucos metros. Os muros tortos parecem censurar o prosseguimento da mirada. O espaço da viela, no entanto, afrouxa-se, deixando de determinar a tensão das águas comprimidas que se sentia a jusante. Tais quais diques, tem-se a sensação de que as paredes desalinhadas têm a capacidade de frear o entusiasmo das águas. O espaço, frouxamente mais largo, lembra o de uma área brejosa, lamacenta, embora não haja gota d’água sobre o cimento. O mover-se estridente das águas é aqui substituído por um empoçar moribundo no solo encharcado. Embora ocultas, as águas vinculam-se a esse espaço por meio da imagem de poças. A partir de tais vínculos, a água e o espaço parecem determinar-se mutuamente: o insinuar-se do córrego é o sentido de ser da viela na medida em que esta é o tênue véu que o recobre. Nessa coexistência, supostas condições de continente e conteúdo (con)fundem-se.

Assim, hoje acobertado, o córrego das Cobras persiste a escoar em seu curso. Pedaços de paredes mal caiadas como prismas posicionados ao acaso, cacos, ora avançam, ora recuam sobre a viela que o denuncia. Janelas abertas ao improviso nos muros cegos parecem espiar com grande curiosidade a novidade: a água virou pedra. Outros fragmentos podem ser percebidos ao se caminhar até a extremidade oposta da viela. Parte deles corresponde aos retalhos de outra mureta de ponte. Tratam-se, agora, dos guarda-corpos da antiga pontezinha da Rua Martins Fernandes, inutilizados a partir do momento em que já não se corria mais o risco de cair nas águas do Cobras. De ponte, a estrutura em concreto armado passa à condição de tampa. Mais janelas espontâneas, timidamente desalinhadas, debruçam-se, agora, sobre o córrego oculto.

Córrego oculto, o entorno do córrego das Cobras em 1930
Mapa topográfico do município de São Paulo. 1:20 000 [Empresa Sara do Brasil, S.A.]

Bocas de lobo foram implantadas na antiga ponte, permitindo a descida das águas da chuva à galeria subterrânea. Por outro lado, essas aberturas trazem à superfície o ruído do córrego que ecoa entre os tubos. O som rouco, constante, repercute as batidas fortes da água contra o fundo da calha de concreto. Mesmo em estiagens prolongadas, não é necessário agachar-se junto às bocas de lobo para escutar o úmido murmúrio. Ainda que invisível na superfície, a espuma das águas caudalosas que nervosamente rolam morro abaixo ganha uma forma sensível emprestada à imaginação por meio do som. Seu tom constante, grave, toma conta, aos rodeios, de quem o ouve. Por um instante, se tem o corpo todo tragado à vontade das águas: imersão borbulhante para o fundo das galerias, para além do subterrâneo, do subaquático das águas escondidas. As bocas de lobo da Rua Doutor Gabril Resende Filho não trazem, apenas, a presença do córrego à superfície. Mais do que isso, essas aberturas atraem para o fundo a imaginação de quem ouve o som das águas.

Seja em forma de poças turvas, moribundas; seja em sua viva agitação, espumante, notada por meio do som confinado nas galerias que alcança, por meio de frestas, a superfície, a materialidade das águas tem sua presença tangível ao longo de quase todo o curso tamponado do córrego das Cobras. A laje de concreto, com todas as suas irregularidades, emendas e frestas, não dá conta de anular o caminho das águas. Tal qual o leito irregular pelo qual escoava, há poucas décadas, o córrego das Cobras, o piso cinza e impermeável da viela é tomado, em determinados pontos, por certos tipos de gramíneas que, insistentemente, aproveitam qualquer fresta ou vestígio de terra para brotarem verdejantes. Curiosamente, a natureza das águas, das sementes, dos musgos, das rochas parece insistir no fato de que ali, naquele curioso corredor ligeiramente inclinado, há um curso d’água. Ainda mais curioso é o fato da cidade insistir em acreditar no contrário, negando para si própria tal existência.

O trecho da viela referente à quadra seguinte, compreendida entre a Rua Doutor Gabriel Resende Filho e a Travessa Luís Gonçalves, é um pouco mais longo que os anteriores. Entre uma pequena janela e outra, abertas para o córrego após sua canalização, pinturas em graffiti colorem as paredes como se ali estivessem presentes desde sempre, como se fizessem parte das empenas cegas e desalinhadas desde sua construção. Como em um museu ou em uma galeria de artes, é possível “passar de sala a sala”, ao longo da viela, acompanhando cada afresco disposto segundo uma expografia incomum: as pinturas confundem-se, dispostas umas muito próximas às outras, conferindo ao corredor estreito um aspecto peculiar. A multidão de figuras representadas não parece incomodar-se com o espaço pouco da viela, tornando o espaço inusitado densamente habitado.

Córrego oculto, diversas figuras em graffiti habitam as paredes da viela como se ali estivessem desde sempre
Foto Arthur Cabral

Alguns metros adiante, o encontro da Rua dos Timoneiros com a viela se dá por meio do alargamento em ambas as vias. Há um desnível de mais de dois metros entre elas, de modo que, de um lado, há um talude pavimentado e de outro uma pequena escada permitindo o acesso de pedestres no local. O espaço resultante, ainda que compartimentado entre empenas cegas e laterais de lotes, é consideravelmente mais largo que o restante da viela, assumindo função de ponto de encontro onde jovens empinam pipas e jogam bola. Como um antigo cais de porto, a Rua dos Timoneiros terminava, há vinte anos, exatamente à margem direita do córrego das Cobras, onde um barranco íngreme separava a parte final dessa via das águas que rolavam apressadas morro abaixo. Atualmente, dado às suas características, o espaço funciona quase que como uma “prainha seca”, sendo notadamente apropriado por parte dos moradores. O ponto de encontro na Rua dos Timoneiros preserva, assim, uma série de vestígios que atualizam a presença do curso d’água, oculto recentemente. Em dias ensolarados, as pipas soltas por ali sobrevoam silenciosamente a bacia do Mandaqui, desenhando no céu o traçado do córrego das Cobras.

Nas quadras seguintes, o corredor, agora muito mais estreito, provoca certo desconforto ao pedestre que por ele caminha. Esse trecho da viela preserva vestígios não apenas das feições do córrego das Cobras, como também da relação estabelecida com seu curso por parte dos moradores, antes e mesmo depois de seu ocultamento. A inclinação do terreno torna-se mais pronunciada e os muros cegos, dada a acentuada estreiteza do corredor, parecem mais altos. Nesse trecho, o leito do córrego das Cobras ganha maior profundidade, suas águas escoam com maior velocidade e, consequentemente, a largura do curso d’água é menor que nos trechos a jusante. Valendo-se da mesma lógica vista anteriormente, as primeiras casas construídas nas adjacências do córrego aproximaram-se tanto quanto possível de ambas as margens, confinando o curso d’água em um canal apartado de seu entorno por muros.

Após o tamponamento do córrego das Cobras, passa a interessar à população local, que, por mais de quarenta anos desprezou esse espaço, abrir ao menos uma portinha de seus quintais ao percurso já seco. Todavia, as tampas impermeáveis da galeria de concreto continuam no caminho preferencial para o escoamento das águas, que formam verdadeiras enxurradas pelo estreito corredor em dias de chuvas fortes. A solução encontrada pelos moradores, diante de tal situação, foi abrir portas acima do nível do chão, com acesso por degraus toscamente cimentados. Na impossibilidade de calar por completo a expressão das águas do córrego das Cobras, os moradores e frequentadores do entorno desse curso d’água acabam encontrando formas de driblar a repercussão de seus efeitos.

Córrego oculto, o mato cresce às touceiras próximo à Rua dos Timoneiros; pipas colorem no céu o percurso do córrego oculto
Foto Arthur Cabral

A partir da Rua Maria Simões, um primeiro olhar desatento diria que a viela não possui continuidade na quadra seguinte. Surpreendentemente, o já estreito corredor prossegue em uma fresta com um pouco mais de um metro de largura entre os portões das casas térreas. Entre as pinturas em graffiti, estruturas de contenção inclinadas, em concreto armado, parecem fazer força para evitar que o estreito corredor seja obstruído pela eventual queda dos muros. A presença dessas estruturas demonstra que os construtores, já na parte alta do bairro do Imirim, foram especialmente ousados. Os muros dos quintais e paredes de cômodos das residências foram erguidos nos últimos palmos de solo firme à beira d’água. Absolutamente confinadas, as correntezas do córrego das Cobras, durante suas cheias, seguramente atingiam uma faixa considerável dos muros das residências, os quais assumiam as funções de diques.

Desse ponto a montante é perceptível a mudança no padrão de urbanização. Os lotes, sempre residenciais e unifamiliares, possuem maiores dimensões e as edificações são, visivelmente, mais antigas. Com efeito, ao analisar os levantamentos de Sara Brasil, de 1930, nota-se, na área, a presença de algumas poucas casas já encarapitadas no morro, muito próximas às nascentes do Cobras. Além disso, mesmo que constando como arruamentos ainda sem nome, o traçado das ruas Estevão Helwadjian e Márcio Gandolpho já havia sido definido em 1930. O entorno das nascentes do córrego das Cobras tem o início de sua ocupação urbana associado à implantação do Cemitério de Santana, também conhecido como Cemitério Chora Menino, em 1897. É da mesma época o loteamento das terras da antiga Fazenda de Santana, cuja sede fora erguida também sobre os divisores de águas das bacias dos córregos Carajás e Mandaqui.

Não havendo continuidade da viela a partir da Rua Estevão Helwadjian, a Rua Márcio Gandolpho, poderia ser entendida como uma primeira forma de ocultamento do curso d’água. Todavia, ao observar novamente a planta de 1930, essa hipótese cai por terra. Cerca de trinta metros a jusante do que seria o cruzamento do córrego das Cobras com a Rua Estevão Helwadjian (ainda sem nome nos levantamentos da época) o traço em azul do curso d’água desaparece do mapa sem que, no entanto, haja qualquer indício de intervenção ou dispositivo implantado sobre ele. É muito provável que o ponto onde, em dias atuais, a viela inicia seu percurso morro abaixo e onde as águas do córrego das Cobras, em 1930, afloravam à superfície para escoar em direção ao vale do Mandaqui seja, de fato, a nascente do curso d’água. Nota-se, com isso, que o ponto onde nasce o córrego das Cobras, confinado entre os lotes construídos a poucos centímetros de suas margens, foi ocultado nas galerias de águas pluviais muito recentemente, também nos anos 1990.

Córrego oculto, os construtores ergueram os muros, ousados, nos últimos palmos de terra firme em época em que as águas ainda escoavam abertas
Foto Arthur Cabral

A casa mais próxima das nascentes, observada nos levantamentos de Sara Brasil, aparentemente já fora substituída por construções mais recentes. A casa da esquina da Rua Estevão Helwadjian com a Rua Márcio Gandolpho, no entanto, construída por volta dos anos 1940, preserva em seu alpendre a memória do tempo em que os morros ainda não haviam se transformado em ladeiras nem os vales em avenidas. Ao observar o espaço acolhedor de tal alpendre por cima do muro baixo da antiga casinha não é difícil imaginar a vista do vale do córrego das Cobras, com sua nascente vertendo água em abundância, uma água inesgotável, de som macio – um som outro que não o ruído rouco de quem lamenta, sussurrando pelas bocas de lobo.

A exemplo de muitos outros cursos d’água cujo tamponamento resultou em espaços residuais no tecido urbano paulistano, o Córrego das Cobras tem sua presença dissimulada no cotidiano da cidade. Antes de atingirem o Tietê e de percorrerem um longo percurso a caminho do oceano as águas paulistanas escoam por muitos desses cursos d’água capilares. O reconhecimento, por meio dos vestígios de sua presença ocultada por diversos dispositivos antrópicos é, assim, revelador, em condições imaginativas, de relações estéticas que foram deixadas de lado ao longo da consolidação urbana de São Paulo. Ainda que a dureza do concreto e do asfalto reprima a vista das águas do Córrego das Cobras a deslizarem morro abaixo, rabiscando curvas e desvios espontâneos, sua presença subterrânea vem à tona quando nos atemos às cicatrizes por elas deixadas – e que o fazer humano não deu conta de apagar por completo.

notas

1
Nos termos de Rosário Assunto, a paisagem, enquanto espaço finito, mas aberto à infinitude, é a espacialização da temporalidade à qual se nega a cidade industrial. A megalópole industrial, para o autor, é o espaço da não memória, dos prazos de validade constantemente vencidos e do tempo rigorosamente quantificado e consumido. Esse espaço, enquanto negação do infinito, opõe-se à temporalidade. Esta, por sua vez, é qualitativa: na temporalidade o presente não é uma subtração do passado nem o futuro um acréscimo ao presente. Ao contrário do ser temporâneo, o ser temporal é o passado que compreende o presente e o futuro, numa coexistência mútua e infinita das três esferas. De modo geral, nesses termos, entende-se o espaço da cidade industrial como o da negação de paisagem. ASSUNTO, Rosário. A paisagem e a estética. In. SERRÃO, Adriana Veríssimo (org.) Filosofia da Paisagem – uma antologia. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, p.356.

2
AB’SABER, Aziz. Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo. São Paulo, Ateliê editorial, 2007, p. 15.

3
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas – usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo, Editora Senac de São Paulo, 2007, p. 245.

4
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 411.

5
Desse ponto a montante, os vestígios aqui descritos referem-se ao trecho de canalização e tamponamento mais recentes do córrego das Cobras (realizados nos anos 1990). Não havendo praticamente nenhuma coincidência, no trecho que se segue, entre o traçado viário implantado e o curso d’água, os espaços livres resultantes das intervenções realizadas no córrego expressam de um modo muito peculiar os indícios de sua existência subterrânea, como será mostrado adiante.

sobre o autor

Arthur Simões Caetano Cabral, arquiteto e urbanista graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi bolsista de iniciação científica junto à FAPESP no âmbito do projeto de pesquisa “Córregos Ocultos em São Paulo” desenvolvido no Laboratório Paisagem, Arte e Cultura (LABPARC FAU-USP) sob a coordenação do Prof.º Dr.º Vladimir Bartalini.

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177.03 paisagismo
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177

177.00 literatura

Do anti-turismo ao turismo

A relação de um viajante com Veneza

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

177.01 tecnologia

Construção modular e evolutiva para situações de emergência

Roberto Bologna and Fernando Barth

177.02 urbanismo

Forma urbana e arborização no século 20

As distintas abordagens na cidade jardim, na cidade bela e na cidade funcional

Renato Leão Rego

177.04 patrimônio

Patrimônio mundial e desenvolvimento sustentável

Desafios para o século 21

Luiz Philippe Torelly

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