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architexts ISSN 1809-6298


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O texto analisa como a preservação e salvaguarda do patrimônio cultural pode colaborar para a adoção dos princípios do desenvolvimento sustentável, em um contexto mundial onde prevalece a crença em um modelo de desenvolvimento predatório e perpetuo.


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TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio mundial e desenvolvimento sustentável. Desafios para o século 21. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 177.04, Vitruvius, fev. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.177/5488>.

“Iremos ao encontro do próximo milênio sem esperar encontrar nele nada além daquilo que seremos capazes de levar-lhe”
Italo Calvino

O objetivo deste trabalho é de refletir sobre a incorporação dos princípios do desenvolvimento sustentável a preservação, salvaguarda e conservação do patrimônio cultural, com vistas à promoção da qualidade de vida e do bem-estar social. Além disso, sugerir diretrizes e ações que repliquem as experiências positivas, tanto dos sítios reconhecidos como Patrimônio Mundial, como aqueles reconhecidos como Patrimônio Brasileiro. Para que não se incorra no risco de dubiedade conceitual, foi utilizada uma bibliografia referencial, mencionada ao longo do texto e devidamente consignada ao final. O conceito de desenvolvimento sustentável adotado é o constante da Agenda 21, de larga aceitação entre governos nacionais, organizações internacionais, organismos multilaterais e organizações não governamentais.

É possível estabelecer pactos globais que permitam o controle e a redução de todas as formas de poluição e degradação dos recursos naturais e culturais, e adotar princípios e procedimentos de desenvolvimento que assegurem as atuais e futuras gerações, o direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza? É possível construir um futuro solidário sem considerar a dimensão cultural e seu papel primordial na preservação da memória e identidade dos povos?

Apesar dos sinais evidentes manifestos no aquecimento global, escassez de água potável em muitas regiões – vide a atual crise de abastecimento da cidade de São Paulo – e a poluição dos oceanos e do solo, não foi suficiente para que muitos países desenvolvidos ou emergentes adotassem medidas restritivas ao consumo e a uma concepção de desenvolvimento que em sua essência é predatória. Simultaneamente os países pobres ou emergentes, reivindicam a superação de tal condição e igualmente o aumento do consumo. Infelizmente os recursos são finitos e insuficientes em médio prazo para atender as demandas de todos, caso perdure o modelo atual de desenvolvimento, calcado em uma falsa noção de progresso infinito.

Neste cenário repleto de paradoxos, o conceito de patrimônio cultural ampliou-se consideravelmente nas últimas décadas (1). A adoção da transversalidade como princípio e as leituras territoriais como meio, onde os aspectos naturais e culturais se entrelaçam, tornaram as abordagens mais complexas e múltiplas. Seja em sua dimensão material estendendo a ação preservacionista a um espectro maior de bens em várias escalas, como, por exemplo – nas paisagens e itinerários culturais – seja em sua dimensão imaterial, cujos avanços foram notáveis, no registro, salvaguarda e difusão de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que constituem o cerne das culturas em suas diversas manifestações. Pode-se afirmar que na atualidade, a preservação do patrimônio cultural não é apenas mais abrangente, ela reflete com maior intensidade a diversidade, as várias identidades formadoras das nações, povos e etnias. Especialmente aquelas que por estarem vinculadas a agrupamentos sociais restritos, muitas vezes marginalizados e de limitada expressão demográfica e econômica, apresentam riscos elevados de desaparecimento. Ressalte-se, ainda, que essa nova acepção do conceito de patrimônio cultural, expressa-se cada vez mais como um dos caminhos do desenvolvimento, em oposição a uma compreensão vigente nos anos 80, de que eram processos antagônicos.

Caboclo de pena, Pernambuco
Foto divulgação [Acervo Iphan]

A mesma dinâmica social que determinou a ampliação do conceito de patrimônio cultural, tem sido fundamental para a sua inserção gradativa no contexto das demais políticas públicas. Embora ainda seja necessário um grande esforço para articular e promover um aumento dos investimentos públicos e privados, em uma estratégia que esteja voltada para sua melhor eficiência e eficácia, progressos importantes foram alcançados nos últimos anos tanto no âmbito do crescimento da capacidade de investimento quanto da gestão. Estes avanços tem determinado um aprimoramento técnico e administrativo, que permitiram a inserção de um número muito maior de países, em fóruns internacionais, conferindo escala mundial as agendas locais. Todavia, ainda temos uma longa caminhada para que a preservação do patrimônio cultural seja um dos agentes de um desenvolvimento includente, sustentável e sustentado, conforme preconiza Inacy Sachs (2). Especialmente no que diz respeito à intensificação da cooperação internacional, Norte/Sul e Sul/Sul, sem a qual nossos esforços serão sempre insuficientes.

A missão de preservar a memória, para assegurar as gerações futuras o conhecimento de sua história é inerente ao trabalho do Iphan, da UNESCO e de milhares de instituições de proteção ao patrimônio cultural por todo o mundo. Este fato se constitue em um importante facilitador, na assimilação dos valores do desenvolvimento sustentável, por seu compromisso diacrônico com o amanhã. Estamos diante de um desafio planetário de elevada complexidade, onde a assimetria dos interesses e aspirações dos agentes envolvidos é múltipla e profundamente desigual.

O conceito de desenvolvimento e sua trajetória: para onde estamos indo?

Durante muito tempo crescimento econômico e desenvolvimento foram quase que sinônimos. No Brasil a expressão “deixar o bolo crescer para depois reparti-lo” esteve em grande evidência durante o “boom” econômico dos anos 70, antes do choque do petróleo. Esta ideia de larga aceitação em alguns círculos governamentais da época foi formulada pelo economista americano Simon Kuznets, Prêmio Nobel de Economia em 1971 (3). Era sustentada por evidências ocorridas em alguns países, de que a expansão da renda promovia concentração em um primeiro momento, mas em fase subsequente, após seu crescimento, haveria uma tendência à distribuição. Embora como o próprio autor reconhece fosse calcada em base empírica restrita, esta acepção perdurou por bastante tempo, possivelmente por convergir com posturas políticas e ideológicas de caráter liberal, então e ainda dominantes no cenário internacional.

Hoje sabemos que pode haver crescimento econômico, sem que haja desenvolvimento, já que muitos países viveram ou vivem este processo. Diversos autores, tem se debruçado sobre o conceito ou o entendimento do que é desenvolvimento. Celso Furtado, José Eli da Veiga, Ignacy Sachs e Amartya Sen, são alguns deles. Todos estabelecem com clareza que para que ocorra a conversão do crescimento econômico, em desenvolvimento, deve ser combatida a concentração de renda, a pobreza, a desigualdade e as diferenças substanciais entre as nações.

Em vários países do denominado mundo desenvolvido, o crescimento econômico precedeu o desenvolvimento ou ocorreu de forma simultânea. Já no Leste Asiático países como o Japão, Coréia e China, entre outros, obtiveram êxito em atingir níveis de desenvolvimento superiores ao massificar os investimentos em saúde e educação, antes mesmo de superar os patamares da pobreza. O crescimento do mercado interno com a apropriação crescente de novas tecnologias e uso intensivo em mão de obra, para aumentar o valor agregado da produção é outra característica relevante dos processos de desenvolvimento bem sucedidos, já que a demanda mundial por produtos e serviços com essas características, são bem superiores aos das matérias primas e dos produtos de baixo valor agregado.

Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto MG
Foto Luiz Philippe Torelly

Há um reconhecimento por parte dos autores citados, de que não pode haver desenvolvimento com supressão de direitos ou “liberdades instrumentais” como assinala (4). Direito ao trabalho com remuneração justa e as oportunidades econômicas; à saúde; à educação; à habitação e saneamento; às liberdades políticas, culturais, étnicas e religiosas. O caso do Brasil é bem ilustrativo para a última década, quando ocorreu crescimento econômico, distribuição de renda e melhoria dos indicadores sociais. Os números do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – evidenciam como investimentos públicos e programas sociais como o bolsa-família e a elevação do poder de compra do salário-mínimo – 72% em termos reais desde 2003 – e das aposentadorias, podem promover a elevação da qualidade de vida de milhões de pessoas. Em uma década o número de trabalhadores com carteira assinada, passou de 55% para 65% da população total. O analfabetismo caiu de 14% para 10%; a expectativa de vida cresceu de 71 para 74,6 anos. A mortalidade infantil em 20 anos passou de 60 para 16 em mil nascidos vivos. O percentual de crianças fora da escola de 5,5% para 3%, ao mesmo tempo em que cresceram os domicílios com saneamento básico adequado de 56% para 62% e atendidos por serviço de coleta de lixo de 79% para 87%. Em 2013 o índice de Gini que mede a concentração de renda, alcançou seu valor mais baixo desde o início da série: 0,498. (quanto mais perto de zero menor a concentração de renda)

A outra constatação importante é de que o padrão de consumo praticado nos países chamados desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, é impossível de ser reproduzido em todo o globo, seja pela insuficiência de capitais e recursos tecnológicos, seja pela incapacidade de fornecimento de matérias primas. Os cidadãos dos Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão, consomem em média 32 vezes mais recursos, como por exemplo, combustíveis fósseis, e geram 32 vezes mais rejeitos do que os países pobres (5). Em prazo muito curto haveria um colapso ambiental decorrente da falta de água, energia, alimentos e demais insumos básicos e a poluição do ar, da terra e da água se tornariam insuportáveis. Este conjunto de países, graças ao acumulo de capital, inovações tecnológicas e o desenvolvimento de seus mercados internos, tornaram possível que grande parcela de suas populações, urbanizadas em consequência da industrialização, conquistassem melhores e diversificados padrões de consumo. Contudo, a conciliação de crescimento econômico e conservação do meio-ambiente é ideia nebulosa e incerta, que não deve ocorrer em curto prazo, mesmo que de forma isolada, em algumas atividades ou locais (6). Certamente dependerá de soluções tecnológicas que ainda não estão disponíveis, e de um controle demográfico que deve envolver o planeta como um todo, e que via de regra, é atingido pela melhoria dos padrões de desenvolvimento e bem estar social. Este é um dos paradoxos que deveremos enfrentar.

Em decorrência dessa circunstância histórica originou-se a denominada assimetria norte/sul, agravada pelo processo de globalização que ampliou o poder das empresas transnacionais e do capital financeiro e reduziu o papel regulador dos estados nacionais, determinando um processo de concentração de renda em escala mundial, em patamares nunca vistos. Segundo o economista Ignacy Sachs, “os padrões de consumo do Norte abastado são insustentáveis” (7). Diante da concreta possibilidade e justa aspiração de desenvolvimento, dos países que ainda não atingiram padrões satisfatórios de bem-estar social, é determinante como proposto pelas Conferências das Nações Unidas sobre o Meio-Ambiente de 1992 e 2002 e 2012, que se estreite a cooperação econômica e tecnológica norte/sul e sul/sul e que sob mediação da ONU, todos os habitantes do planeta, sejam possuidores das “liberdades instrumentais” e que haja uma reaproximação entre ética, economia e política de que nos fala Amartya Sen.

A continuidade do quadro atual alimentado pela equivocada noção de que o desenvolvimento é perpétuo, e de que os bens naturais são integralmente recicláveis e reaproveitáveis e de que o capital natural não tem custo ou este é muito baixo, podem nos levar a um futuro de difícil previsibilidade. O aprofundamento das tendências atuais especialmente a ausência de controle demográfico, poderá levar em 2020, os países pobres exportadores de “commodities” de baixo valor agregado a um incremento populacional enorme, de 1,3 bilhões para 3,0 bilhões de habitantes (8). Importante lembrar que a atual crise financeira, denominada de crise da dívida soberana da zona do euro, poderá retardar a já insuficiente cooperação Norte/Sul, pela necessidade de reter investimentos e acumular capitais em regiões já desenvolvidas, onde alguns países apresentam baixos índices de desenvolvimento e elevadas taxas de desemprego, como Espanha, Portugal, Grécia e Itália.

Caminhos para o desenvolvimento no século 21: uma encruzilhada inevitável

A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em 1992, conhecida como Rio 92, estabeleceu os princípios necessários para uma convivência harmoniosa do homem com o meio ambiente, na denominada Agenda 21. Os princípios aí consagrados definiram os contornos do conceito de desenvolvimento sustentável, a par das controvérsias que perduram entre os especialistas, desde aqueles que o limitam ao crescimento econômico, aos que os consideram inexequíveis ou incompatíveis com a conservação da natureza. Os princípios que assinalam o compromisso com a preservação do meio-ambiente para as atuais e futuras gerações, como indissociável do conceito de desenvolvimento e que preconiza ser indispensável à erradicação da pobreza e a inserção social, são os que mais de perto determinaram o que se entende hoje como sustentabilidade, sem reduzir a importância dos demais.

Embora seja um documento de referência para todos os países, e o conceito de desenvolvimento sustentável que dele emana é o que é adotado pelos organismos internacionais e governos nacionais, pode-se afirmar que trata-se de conceito ainda em construção. Segundo José Eli da Veiga, “a expressão desenvolvimento sustentável foi a que acabou se legitimando para negar a incompatibilidade entre o crescimento econômico contínuo e a conservação do meio ambiente. Ou ainda, para afirmar a possibilidade de uma conciliação desses objetivos, isto é, de crescer sem destruir” (9).

O livro de Amartya Sen, Desenvolvimento como liberdade, teve desde seu lançamento em 1999, enorme repercussão. Tal êxito deve-se principalmente a simplicidade e objetividade de suas ideias, que associam o alcance do desenvolvimento sustentável a supressão das privações que restringem os direitos e liberdades dos trabalhadores e da noção de que não existe um único caminho. Mas a efetividade das liberdades de que nos fala Sen, enfrenta obstáculos gigantescos. A existência de um mercado financeiro e de corporações transnacionais de caráter essencialmente especulativo, cujo objetivo principal é o lucro dos investidores é um deles. Novamente a continuidade da crise financeira de 2008, exemplifica o potencial desestruturador da economia mundial, proporcionado por mercados com baixo nível de regulamentação. Ignacy Sachs nos fala, da relação entre o mercado e o desenvolvimento sustentável. “O desenvolvimento sustentável é, evidentemente, incompatível com o jogo sem restrições das forças de mercado Os mercados são por demais míopes para transcender os curtos prazos e cegos para quaisquer considerações que não sejam lucros” (10). Depreende-se que para alcança-lo será necessário não apenas regulamentar e impor restrições. Mas, sobretudo combater a supressão das liberdades, distribuindo renda, promovendo incentivos e subsídios e respeitando valores éticos e culturais que foram relegados.

Igreja Nossa Senhora do Rosário, Ouro Preto MG
Foto Luiz Philippe Torelly

Embora a população da terra tenha atingido recentemente a cifra de sete bilhões de habitantes, sete vezes mais do que no primeiro quartel do século XIX, nunca existiu tanta fartura e disponibilidade de meios, e embora, parte considerável da humanidade cerca de 20%, vivam segundo o Banco Mundial abaixo da linha de pobreza – U$1,75/dia – a riqueza acumulada seria suficiente para garantir a todos satisfatórias condições de qualidade de vida. Diante desses números a superação de alguns desafios são essenciais: 1) reestabelecer as relações entre economia e ecologia; 2) controlar o crescimento populacional; 3) controlar o crescimento econômico e estimular a distribuição de renda; 4) aumentar do consumo dos países pobres e emergentes; 5) universalizar e baratear as inovações tecnológicas.

1) A exemplo das demais ciências a economia tem uma dimensão espacial e ambiental. Contudo, a não ser para atender os limites ou restrições estabelecidos pela legislação, os agentes econômicos atuam, na maioria dos casos, como se não estivessem inseridos em um “habitat” e muitas vezes ignoram que o ambiente já foi degradado, que seus efeitos se acumulam e que a escassez ou falta é inexorável a médio e longo prazos (11). É necessário que ecologia e economia interajam, uma indicando o que é necessário para a sustentabilidade, outra elaborando as estratégias de transição para esse objetivo (12);

2) É uma unanimidade entre os estudiosos de que haja um controle do crescimento populacional e que o mesmo é diretamente relacionado com os padrões de desenvolvimento. Países como o Brasil que cresceram a elevados índices durante o último século devem dar início ao decréscimo de sua população em 2030, segundo projeções do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Contudo, na África e parte da Ásia especialmente em países pobres, a população continuará crescendo;

3) A adoção do conceito de desenvolvimento sustentável, ou “caminho do meio” foi à alternativa política construída para superar o confronto entre os que priorizavam a aceleração do crescimento como alternativa para ampliar a conservação do meio ambiente no futuro quando os países atingissem o desenvolvimento, em oposição aos que preconizavam estagnar o crescimento econômico e do consumo (13). A distribuição de renda interpessoal, inter-regional e internacional (norte/sul e sul/sul), o controle populacional e as inovações tecnológicas são medidas fundamentais. Principalmente diante da possibilidade cada vez mais concreta, de crescimento “zero” ou mesmo seu decréscimo, face ao aprofundamento da crise econômica. Sem que isso ocorra haverá uma expansão inexorável da pobreza e dos conflitos socioeconômicos, com suas imprevisíveis consequências, principalmente diante da perspectiva cada vez mais concreta de recessão com encolhimento da economia.

4) Para que seja crescente o aumento de consumo de países pobres e emergentes, os padrões de vida dos países desenvolvidos devem ser controlados e o consumo reduzido. Na atualidade eles são inalcançáveis (14). Para que todos os países tivessem o nível de bem estar social e econômico da América do Norte e Europa, seriam necessários respectivamente, 5,22 e 2,66 planetas Terra (15). Não podemos nos esquecer de que a humanidade adquiriu a capacidade de autodestruição;

5) A permanente evolução tecnológica ainda não gerou os benefícios capazes de mitigar as mazelas do crescimento econômico. Precisamos de tecnologias mais eficazes e baratas para que possam ser universalizadas. Algumas delas estão ao nosso alcance, como por exemplo, o tratamento de esgotos. Em muitas sociedades como no caso do Brasil, ainda convivem tecnologias seculares com as de última geração. É uma questão de prioridade.

Estamos diante de desafios que exigirão de todos os países e nações, organismos internacionais, empresas e pessoas uma nova postura ética, política e cultural, que supere os conflitos que nos acompanharam até hoje. Sem um esforço que transcenda os interesses imediatos de cada país, ou bloco de países, que reduza substancialmente os padrões de consumo e de impacto sobre a natureza estaremos em uma situação insólita. Pois além do rápido declínio dos recursos renováveis e não renováveis, e de desastres ecológicos em grande escala, corremos um elevado risco de conflitos multinacionais. Eric Hobsbawn um dos maiores intelectuais e historiadores da atualidade, no epílogo de seu livro A era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991, assim se manifesta de maneira contundente: “Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até esse ponto e – se os leitores partilham da tese deste livro – por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, uma alternativa para uma mudança da sociedade é a escuridão” (16).

Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável: uma dimensão ainda por incorporar

O conceito de patrimônio cultural é dinâmico e cada vez mais abrangente, sua natureza é cumulativa, transmissível e diversa. Manifestação material e imaterial da relação adaptativa do homem aos diferentes ambientes ecológicos, não esta restrito ao que é patrimonializado, reconhecido ou definido como objeto de salvaguarda e acautelamento. Seu estabelecimento, – ato discricionário embasado em critérios de valoração objetivos e subjetivos de uma determinada sociedade – determina parcela do legado cultural da humanidade às futuras gerações. Sua relação e impacto sobre a natureza são permanentes e se intensificam na medida do crescimento demográfico.

A importância da dimensão cultural no processo social e em uma visão crítica do desenvolvimento é recente como preconiza Celso Furtado. Sua percepção ocorre com a constatação de que “a qualidade de vida nem sempre melhora com o avanço da riqueza material” (17). Embora expressivos segmentos alcancem significativos progressos em seu bem estar, continuam prisioneiros de padrões culturais determinados por questões religiosas, etnocêntricas e geocêntricas, por exemplo. O que não deve ser confundido com o direito a diversidade e identidade, atitudes que podem preservar as características da vida tradicional de muitos povos e nações, estabelecendo um dialogo do passado com o futuro, sem que se converta em um obstáculo ao desenvolvimento sustentável.

O caráter inevitável da globalização deve respeitar as especificidades das culturas locais e não ocidentais. Não é possível um único processo de desenvolvimento, mas possibilidades de escolhas qualitativas e quantitativas (18). Este nos parece o nexo fundamental para que a preservação e salvaguarda do patrimônio cultural estejam imbricadas ao desenvolvimento.

Não existem formulas prontas para este imenso desafio que une todos os países cada vez mais interdependentes, mas que estabelece simultaneamente contradições e paradoxos entre ricos e pobres. O compromisso sincrônico com as atuais gerações e diacrônico com as futuras, e a educação, são os esteios que podem permitir uma nova visão e mentalidade. Nesse processo como nos lembra Celso Furtado, “o ponto de partida terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e a comunidade. Portanto, a dimensão cultural dessa política deverá prevalecer sobre todas as demais” (19). As atitudes cotidianas mesmo que pareçam insignificantes, tendem a se multiplicar e estabelecer novos padrões comportamentais. Ainda não nos apropriamos o suficiente da abrangência do conceito de sustentabilidade a ponto de confundi-lo com sustentação. Um projeto pode ser viável técnica e financeiramente sem ser sustentável. Portanto, não pode existir preservação patrimonial sustentável, sem integração com as demais políticas públicas; o combate à pobreza e o desemprego; a saúde; o saneamento; o uso e ocupação do solo urbano e rural; a conservação da natureza.

A experiência de 161 países na gestão de 1007 bens incluídos na lista do Patrimônio Mundial, bem como a de cada um deles na gestão de seu próprio Patrimônio Cultural, precisam ser valorados e replicados de forma igualitária. O mapa mundi de distribuição dos bens Patrimônio Mundial, evidencia a relação do desenvolvimento econômico e social, com preservação do Patrimônio Cultural, ao exibir a concentração de bens na Europa. Em oposição vemos que na lista de bens em situação de perigo, a maioria se concentra na África. Assim, fica claro que ao adotarmos os princípios do desenvolvimento sustentável, nosso compromisso passa a ser não apenas o da preservação e salvaguarda, mas o da elevação dos padrões educacionais, da renda e do emprego, enfim, dos indicadores socioeconômicos em níveis recomendados pela ONU e suas agências.

Para que possamos atingir esse patamar, empreitada sabidamente árdua há que se estreitar e intensificar a cooperação internacional norte/sul e sul/sul, não apenas com assistência técnica, mas também com investimentos intergovernamentais e privados com efetiva transferência de renda. Simultaneamente, a ampliação do círculo de agentes e atores institucionais e sociais é tarefa indispensável. Ao trabalho de organizações especializadas, técnicos e pesquisadores, é necessária a adesão e incorporação dos governos nacionais e locais, de organizações não governamentais e da população em geral, especialmente aquela que interage territorialmente com os sítios e monumentos, ou é protagonista de ações e manifestações da dimensão imaterial.

Em suma, a gestão do patrimônio cultural, independentemente de seu nível de reconhecimento – se mundial, regional, nacional ou local – só rompe seu isolamento e se harmoniza com o real sentido de desenvolvimento sustentável se fizer parte da pauta e do esforço de planejamento governamental e das ações do poder público e da iniciativa privada. Cada vez mais a dimensão cultural deverá se incorporar às outras dimensões do desenvolvimento, como a social e a econômica, relegando ao passado as soluções parciais, incapazes de proporcionar alternativas para uma realidade complexa e dialética. Ao refletir sobre novas possibilidades e alternativas de gestão para o patrimônio cultural, não basta olharmos o local, as comunidades sob a esfera de influência dos bens, mas o global. O slogan “Pensar globalmente e agir localmente” nos parece superado frente ao poderio quase ilimitado das corporações e dos mercados transnacionais. O desafio hoje é agir e pensar localmente e globalmente.

notas

1
LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006.

2
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável sustentado. Rio de Janeiro, Garamond. 2004.

3
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro, Garamond. 2005.

4
Amartya Sem nos fala que “entre os desafios cruciais do desenvolvimento em muitos países atualmente inclui-se a necessidade de libertar os trabalhadores de um cativeiro explícito ou implícito que nega o acesso ao mercado de trabalho aberto”. Ele denomina de “liberdades instrumentais”, cinco dimensões de direitos e oportunidades que ajudam a promover as capacidades de uma pessoa: liberdades políticas; facilidades econômicas; oportunidades sociais; garantias de transparência; segurança protetora. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2010, p. 21-25.

5
DIAMOND, Jared. Colapso. Rio de Janeiro, Record, 2005.

6
VEIGA, José Eli da. Op. cit.

7
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro, Garamond. 2002.

8
VEIGA, José Eli da. Op. cit.

9
Idem, ibidem.

10
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável (op. cit.).

11
VEIGA, José Eli da. Op. cit.

12
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável (op. cit.).

13
Idem, ibidem.

14
DIAMOND, Jared. Op. cit.

15
O futuro que queremos. INPE/BR, 2012.

16
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo, Cia das Letras, 1995.

17
FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo, Paz e Terra, 1998.

18
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável sustentado (op. cit.).

19
FURTADO, Celso. Op. cit.

sobre o autor

Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista. Trabalha no Iphan.

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