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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Texto retoma controvérsia sobre a origem da preservação do patrimônio cultural brasileiro. As primeiras restaurações de monumentos têm sido revisadas e criticadas. Esse trabalho opõe-se a essa linha fundamentando suas análises em rica pesquisa documental.


how to quote

CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Considerações acerca d’O nariz torcido de Lucio Costa. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 180.04, Vitruvius, maio 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.180/5567>.

“o Patrimônio para mim foi sobretudo uma questão de amizade e afeto, uma oportunidade de convivência e conhecimento devidos a bons amigos. Mas bem sei que um estudo objetivo mostraria como esses amigos, e todos os funcionários que não conheci nem conheço, realizaram profissionalmente com a inteligência e o coração uma das obras mais notáveis que este país já viu” (1).

“O problema da recuperação e restauração de monumentos, trata-se de uma casa seiscentista como estas de São Paulo, ou das ruínas desta igreja de São Miguel, no Rio Grande do Sul, é extremamente complexo. Primeira, porque depende de técnicos qualificados cuja formação é demorada e difícil, pois requer, além do tirocínio de obras e de familiaridade com os processos construtivos antigos, sensibilidade artística, conhecimentos históricos, acuidade investigadora, capacidade de organização, iniciativa e comando e, ainda, finalmente, desprendimento. Segundo, porque implica em providências igualmente demoradas, como o inventário histórico-artístico do que existia na região, o estudo da documentação recolhida, o tombamento daquilo que deve ser preservado, a eleição do que mereça restauro prioritário” (2).

“Todavia, não é fácil deixar de divergir em problemas históricos. E essa divergência, em tese, embora não raro bizantina, é positiva. Dela nascem as grandes pesquisas decisivas. Dela nascem as descobertas fecundas. Duvidem, pois, os que quiserem duvidar” (3).

Antonio Luiz Dias de Andrade, um ano antes de obter o titulo de Doutor em Arquitetura ao defender a tese Um estado completo que pode jamais ter existido, publicou na revista Sinopses, em 1992, o artigo O nariz torcido de Lucio Costa, colocando em destaque um dos casos analisados na monografia relativos às obras empreendidas nos anos iniciais de atividade do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Neste artigo, após examinar detidamente a documentação relativa às obras de restauração da antiga capela ou igreja de Nossa Senhora do Rosário, do Embu, chega-se à conclusão de que este importante exemplar da arquitetura jesuítica paulista, em seu projeto original, jamais possuíra torre sineira. Baseia sua interpretação em uma criteriosa e bem fundamentada análise da correspondência trocada entre os arquitetos Luís Saia (então Diretor da Regional paulista) e Lúcio Costa (que chefiava a Divisão de Tombamento e Conservação, no Rio) à época dos trabalhos (1939-41), quando discutiam diversas questões que foram surgindo no desenrolar dos trabalhos, e mais especificamente aquelas atinentes à reconstituição da fachada original da antiga capela jesuítica, e em especial a problemática da torre sineira.

Tentarei, inicialmente, resumir o relato que Antonio Luiz apresentou das propostas então defendidas pelos mencionados arquitetos, a busca por evidências e os testemunhos obtidos bem como as soluções adotadas, e por fim a confrontação dessas soluções com as premissas que orientavam os trabalhos e as interpretações a que chegou.

Antes, porém, quero dizer que torno a esta questão por considerá-la um assunto ainda de relativa importância, seja pelo caráter histórico que lhe é próprio, seja pelo interesse e a atenção que ainda desperta enquanto pendência não suficientemente esclarecida nos técnicos de preservação e, ultimamente, também nos pesquisadores acadêmicos. Outros motivos subsidiários podem ser alinhados. Primeiramente, embora diga respeito a apenas um ou dois elementos ou aspectos do monumento arquitetônico, trata-se este de um bem cultural sobre o qual existe um conhecimento que, se por um lado é suficiente para determinar a que período corresponde e a que tipo de construção se destina (igreja e residência típica de aldeamento jesuítico dos três primeiros séculos de colonização paulista), de outro é ainda falto de explicação, incluindo a questão em foco, mas também sobre o seu rico acervo artístico (em especial as belíssimas pinturas de seus forros). Segundo por ter sido objeto de estudos e intervenções em um determinado momento (1939-41) por parte do órgão federal de preservação quando se realizaram obras que o salvaram da destruição, garantindo a sua preservação pela aplicação do instrumento do tombamento e sobretudo buscando-se reconstituir a sua fisionomia original, que era o propósito desde logo declarado pelo SPHAN quando se tornou alvo de suas atenções a partir de 1937 (4). Em terceiro porque os principais personagens responsáveis pelas investigações e estudos que resultaram nas soluções por fim adotadas no restauro, infelizmente, são todos falecidos – o que os faz merecer de nossa parte o respeito e a deferência de que são merecedores –, aos quais, pelo mérito de ter analisado com profundidade e espírito crítico isento as contribuições respectivas e ter desvelado os princípios e procedimentos que resultaram na sua configuração final, incluo também o ex-colega e coordenador da Regional paulista do Iphan, o arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade. E por fim, por entendermos que a questão, por não estar inteiramente esclarecida, demanda ainda pesquisas de natureza historiográfica – sendo o nosso propósito aqui oferecer uma primeira contribuição. Se esta ocorre somente agora, vinte anos após a publicação do artigo, deve-se ao fato de que a busca por documentos relativos aos bens e monumentos tombados – projeto que me propus a desenvolver a partir de 1992 – não corresponde, na maioria das vezes, à intenção sempre premente de encontrá-los e analisá-los em face das questões colocadas. Embora não tenha (eu) contribuído direta e pessoalmente para nenhum dos estudos que desenvolveu, de sua parte, Antonio Luiz dedicou-me atenção e reconheceu algum mérito em trabalhos por mim desenvolvidos, como no estudo que subsidiou o tombamento das pinturas de Padre Jesuíno do Monte Carmelo da VOT do Carmo de S. Paulo, e mesmo em questões que tínhamos entendimentos divergentes, como a da origem do Sítio do Padre Ignácio, jamais manipulou os dados ou interpretações que produzi acerca do monumento.

No artigo O nariz torcido de Lucio Costa (5), Antonio Luiz analisa a citada correspondência, chamando inicialmente a atenção para a sua importância na medida em que permite conhecer

“o caráter dos procedimentos adotados no início das atividades do órgão, momentos nos quais o estabelecimento de critérios e métodos a serem empregados na conservação e restauração dos monumentos tombados apresentava-se como a principal preocupação para o reduzido número de técnicos ainda inexperientes no assunto e impossibilitados de recorrer a qualquer referência anterior”.

Identificando o caso da Igreja de N. Sra. do Rosário como um dos que tem sido objeto de críticas relativamente

“as interpretações que conduziram a reconstituição das feições primitivas do frontispício do conjunto arquitetônico, alcançando a torre sineira maior grau de dificuldade face às reformas realizadas na década de 20 deste século, furtando-lhe totalmente o primitivo aspecto, destruindo, inclusive, quaisquer vestígios que sugerissem a forma anterior, restando apenas a consulta e análise das fontes iconográficas, raras e fragmentárias”.

O nariz torcido de Lucio Costa veio ao conhecimento público, como nos relata Antonio Luiz, por iniciativa do próprio Luís Saia no curso que promoveu em convênio com a USP e a Secretaria de Estado da Cultura em 1974, e foi devido à questão da reconstituição do frontispício da capela e, mais especificamente, da torre sineira, sobre a qual Lucio Costa era de opinião de que o telhado primitivo possuiria duas águas apenas, contrariamente ao que advogava o diretor da regional paulista do Sphan, que havia se convencido de que possuíra quatro águas. Pesquisas posteriores o teriam levado a um prospecto da Empresa de Colonização Sul Paulista, no qual encontrou uma antiga fotografia de Embu onde seria perceptível o telhado de duas águas, “dando afinal razão ao arquiteto Lucio Costa”, admitiu Saia. Assim foi reconstituída e é o que lá observamos até os dias atuais.

Outras mais pesquisas foram encetadas por Saia em 1940, especialmente através de prospecções nos edifícios do convento e da própria igreja, buscando levantar outras evidências que permitissem a reconstituição da fachada primitiva (6). Na busca de mais elementos, relata Antonio Luiz Dias de Andrade, Saia envia outra carta a Lucio Costa em 6 de janeiro daquele ano, em que comenta depoimento do senhor José Cobertino que havia trabalhado “nas duas últimas reformas sofridas pela igreja, a primeira em 1897 e a segunda em 1917”, no qual obteve a informação de que “a primitiva torre (a que foi encontrada em 1897) apresentava cobertura de duas águas, com beiral na fachada”. Informe importante, pois vinha novamente de encontro à opinião de Lucio Costa, firmando a convicção da correção da solução adotada.

50 anos depois, porém, uma velha fotografia localizada no arquivo de Washington Luiz viria senão colocar tudo isso por terra, ao menos suscitar em Antonio Luiz “novas dúvidas quanto à forma da torre sineira”, sobre tudo porque, em sua opinião, “a reprodução [da foto] constante no mencionado prospecto, pouco nítida, é insuficiente para atestar peremptoriamente a solução acatada”. Já a fotografia recém-descoberta, tirada da parte posterior do edifício, apresenta uma terceira água no telhado da torre. De qualquer maneira, suficiente para reforçar “as objeções que lhe tem apresentado a crítica”.

Embora seja somente da torre sineira a imagem descoberta, a análise procedida por Antonio Luiz Dias de Andrade teve o efeito, senão de destruir, ao menos de abalar os alicerces da longa experiência e de todo conhecimento acumulado pelo Iphan. Ao “desvelar o pensamento que serviu de recurso para a formulação pioneira dos princípios e métodos aplicados na restauração e conservação do patrimônio arquitetônico no Brasil” fornecia um novo elemento e uma interpretação fundamentada em documentos gerados no próprio processo de desenvolvimento dos trabalhos de restauração, oferecendo assim uma base crítica bastante convincente, em especial àqueles que sempre postularam por um posicionamento contrário às orientações imprimidas pelos fundadores do órgão federal de preservação: além de Saia e Lucio Costa, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Mário de Andrade, entre outros.

Disposto a exercer o direito da crítica, levantando dúvidas novas sobre a questão, observa-se, contudo, repito, a maneira cuidadosa e sobre tudo respeitosa para com Luís Saia e Lucio Costa, procurando imprimir no artigo um caráter sério e objetivo, mais apropriado ao estilo da Academia. Não deixa, todavia, de apontar – valendo-se dos pronunciamentos de Rodrigo Melo Franco de Andrade – para o que considerou uma “ambiguidade” dos técnicos dos tempos heroicos do Patrimônio:

“de um lado as insistentes declarações de princípios, professando ‘conservar’ mais do que ‘restaurar’, de outro, prevalecendo o desejo de harmonizar as formas tradicionais, na incessante procura do ‘espírito de época’, perdido no curso de tantas reformas”.

E, por fim, chega ao ponto mais agudo de sua crítica, em que demonstra filiar-se às ideias propugnadas por seu mentor acadêmico ao dizer que, na falta de informações documentais irrefutáveis,

“obrigaram-se os técnicos do SPHAN a propor interpretações capazes de ordenar os vestígios parciais e as informações esparsas encontradas, tornando o processo de restauro a defesa de algumas teses que mesclavam a pioneira formulação dos princípios que viriam aplicar-se na proteção do patrimônio cultural com as explicações oferecidas à arte e arquitetura brasileiras, definindo assim o quadro tipológico das expressões merecedoras da tutela oficial, ‘por seu excepcional valor artístico’. A pequena torre da Igreja do Rosário adquire nesse contexto extraordinário valor simbólico, móvel da discussão onde se encontrava em questão a fisionomia admitida para o patrimônio cultural do país”.

Visto pelo prisma e contextualização produzida, não resta dúvida. O nariz torcido de Lucio Costa passou a ser referência obrigatória, dentro e fora da instituição, tão importante quanto o consolo agraciado por Sergio Miceli (Sphan: refrigério da cultura oficial. Revista do PHAN, n. 22, 1987).

Mas volto a uma das questões assinaladas por Antonio Luiz e que diz respeito à orientação presente desde a origem dos trabalhos, e que devia merecer a melhor das atenções dos responsáveis pela condução dos trabalhos de preservação: conservar ou restaurar. Questão polêmica ainda nos dias atuais, resultado de certa radicalização por parte de seus defensores. De um lado, aqueles, como Luiz Saia e Lucio Costa, que propugnavam pela reconstituição dos aspectos originais dos monumentos, através de projetos de restauração, com todos os pressupostos indispensáveis, tais como inscreveu no Compromisso de Brasília, em Abril de 1970. De outro, aqueles que postulam pela defesa irrestrita das Cartas ou recomendações internacionais de preservação, grosso modo os defensores da “historicidade” dos monumentos – vale dizer, aceitação de tudo quanto neles ocorreu em sua trajetória histórica, na qual foram se desfazendo e ou incorporando elementos ao sabor dos gostos, das necessidades e dos interesses dos distintos momentos ou períodos porque passou, dotando a sua fisionomia de diferentes aspectos que, segundo essa visão, devem ser conservadas, preservadas integralmente.

Nesta última perspectiva, entendo eu, não há mais espaço para o restauro. Não somente torres de antigas capelas, mas também currais que substituíram antigos terreiros para secagem de café, “encamisamento” com tijolos em paredes de taipa que permitiu em períodos posteriores uma ornamentação mais ao gosto da época, reformas que suprimiram ou acrescentaram cômodos de uma antiga edificação, enfim intervenções ditadas por sobreposição de programas novos, por atividades econômicas e sociais que se sucederam, por alterações de uso ou realizadas apenas ao sabor dos estilos arquitetônicos novos. Tudo isso é histórico; portanto merece ser conservado, tombado e preservado sem qualquer questionamento.

Pouco importa se a “prospecção” – recurso indispensável e primordial utilizado por Luís Saia no Embu e que antecede qualquer procedimento que conduza ao projeto de restauro – possa encontrar vestígios que informem ou que indiquem a existência de elementos e formas “primitivas” da edificação (recordo-me de um momento para mim significativo e que me valeu de aprendizado valioso nos trabalhos de conservação executados pelo Iphan na igreja Matriz de Itanhaém, que foi o encontro pelos operários de uma pedra aparelhada servindo de base para o batente de uma porta divisória interna, acrescida ao corpo da igreja, e que era primitivamente parte constituinte da escada da capela-mor, a qual possibilitou a realização de novas investigações que levaram a descoberta de novas evidências e, por fim, à restauração da escada primitiva, substituindo a posterior de madeira. Por sorte, contava-se então com a experiência do saudoso Mestre Antonio Taveira que, mediante a sua orientação, se procedeu às prospecções no piso da capela-mor e à determinação exata do local em que estava assentada a pedra descoberta. Em consequência, contrariou-se em certa medida a Carta de Veneza: a partir de uma única peça original, buscou-se outras evidências as quais permitiram localizar o exato espaço que ocupava originalmente. Em consequência, eliminou-se a escada existente e se fez a reconstituição da antiga escada de pedra. É porque havia “consenso” dos participantes. Afinal, até aqueles que se posicionam, em princípio, pela conservação apenas, se vem obrigados, às vezes, a enfrentar a questão da restauração, imposta pela evidência ou pelo encontro fortuito de elemento remanescente de período anterior, reaproveitado no próprio edifício. A diferença é que enquanto um “encontra”, o outro “procura”; portanto é e continua sendo uma diferença de princípio, de método).

O primado da visão historicista ignora tais procedimentos técnicos. Repudia o restauro. Portanto, impede qualquer descoberta que conduza à restauração. Por ela, em princípio, tudo no monumento merece ser preservado. Mas merece mesmo? Duvido. E minhas dúvidas não se restringem à dificuldade que teríamos todos nós, com exceção daqueles técnicos mais experientes que já não existem mais, ou já estão em inatividade, de fazermos uma “leitura” do monumento em cada um de seus diferentes aspectos históricos ou estilísticos incorporados ao edifício original. É uma situação diametralmente oposta aos procedimentos que conduziam à da “limpeza” efetuada pelos arquitetos da primeira geração. Minha dúvida maior é se devemos renegar totalmente a possibilidade que, a meu ver, só o restauro nos oferece (mesmo que sujeita a equívocos) de resgatar o monumento enquanto documento de uma sociedade em um determinado momento de sua evolução histórica, enquanto “expressão” artística de um período. É o caso, para sair um pouco do campo restrito da arquitetura, das pinturas de autoria de Padre Jesuíno do Monte Carmelo agora finalmente resgatadas. O restauro efetuado, depois de eliminar os “mostrengos” (como as chamava Mário de Andrade) que cobriam as pinturas originais dos tetos da capela da V.O.T. do Carmo da cidade de S. Paulo, possibilitou à sociedade conhece-las na sua inteireza e originalidade, podendo agora ser redimensionada verdadeiramente a sua importância no conjunto da obra do pintor colonial paulista e o seu valor na história da Arte brasileira. Aliás, Antonio Luiz bem reparou que Luiz Saia evitou incluir, em 1939-41, intervenções restaurativas nas pinturas da capela do Embu por não se sentir seguro com a qualidade dos profissionais então disponíveis. Não considero, porém, essa precaução como ambiguidade, como a interpretou.

Por outro lado, a preguiça, o despreparo, a falta de coragem para enfrentar as adversidades próprias do trabalho técnico, não me parecem motivos dignos para justificar a inércia com que muitos profissionais da área de preservação se deixam comodamente conduzir pelas premissas da visão historicista, que para melhor defende-la procuram atacar e criticar os equívocos notados aqui ou ali, e especialmente nos restauros efetuados nos primeiros anos de trabalho do Sphan. Digo, porém: se não há consenso sobre as intervenções restaurativas levadas a cabo em São Paulo e em outros estados do país, o mesmo se pode afirmar a respeito da posição dos historicistas que, todavia, as aceitam e as praticam em “determinados casos”. Isso sim me parece contraditório. Todavia, não há hoje prevalência de nenhuma das duas visões, pelo que podemos observar entre os profissionais de preservação. E isso não deixa de ser estimulante. Sobretudo por oferecer aos novos técnicos, termos de comparação, ainda sem compromisso de adesão; antes, a possibilidade de aprender, de inquirir sobre esse e aquele procedimento, de discutir, confrontar e compartilhar ideias, de se inquirir sobre como se posicionar, a partir de sua profissão (arquiteto, engenheiro, historiador, geógrafo, museólogo, restaurador artístico, arqueólogo, fotógrafo, arquivista, etc.), frente a essas questões. Sobretudo porque hoje creio não ser mais admissível a reprovação a uma opinião por mim enunciada a respeito da reconstituição da torre da igreja de Nossa Senhora do Carmo de Itu,       por um colega, arquiteto, que me inquiriu: “Você é arquiteto? Então não tem que dar palpite.” Continuei, todavia, a dar palpites. Naquele momento não me ocorreu invocar a Carta de Veneza; surpreso com tal grosseria, pedi respeito somente. Mas jamais aceitei a censura que me quis impor e fui procurar e encontrei apoio exatamente de um outro arquiteto, com fama de “ortodoxo”, que me incentivou a realizar pesquisas sobre os monumentos que careciam de melhor fundamentação historiográfica – o que, felizmente, tornou minha vida profissional mais produtiva e agradável na Regional paulista do Iphan. E, por ironia do destino, vejo o colega que me censurou filiar-se nos dias atuais entre os defensores do historicismo. Contradição ou ... acomodação?

Divergir, como escreveu o historiador Fritz Teixeira Salles, nem sempre é bizantino; pode daí ensejar pesquisas que revelem dados novos e que contribuam para alimentar o debate e, quem sabe, desvelar aspectos ainda não inteiramente conhecidos.

Com esse propósito, registro aqui o resultado de uma primeira investigação procedida na documentação dos Arquivo Público do Estado e da Cúria Metropolitana de São Paulo; uma pequena contribuição à discussão do caso analisado por Antonio Luiz Dias de Andrade.

Trata-se de uma correspondência entre o Vigário Colado da Igreja de MBoy, o Padre Alexandre Gomes de Azevedo, e o Conego Fabriqueiro da Sé Catedral de São Paulo, em junho de 1827 (7). Padre Alexandre, que assumira a direção da igreja em 1824, escreve inicialmente uma carta ao referido Conego em 27 de junho de 1827, na qual dá conta de que recebera da Junta da Fazenda Imperial ordem para dar cumprimento a Portaria de Sua Majestade o Imperador, datada de 1º de junho daquele ano, em que

“me determina, entregue pª o uso desta Cathedral dous Sinos, hum perfeito, e outro quebrado, e bem assim seis castiçaes de prata”

que apresentou no dia 23 de junho ao Comandante do Destrito, o Alferes Antonio de Camargo e Oliveira, juntamente com outra portaria do Vice-Presidente da Província dirigida ao próprio comandante para

“fazer remeter com toda a brevidade” à Sé Catedral.

Os acontecimentos que sobrevieram não deixam de apresentar aspectos curiosos, envolvendo índios e brancos moradores da aldeia, ameaças contra autoridades, artimanhas e até tentativa de suborno.

Continuando o relato do Vigário, informa que vindo o dito comandante a

“Aldea para fazer conduzir os sinos, e casteçaes em grade, aconteceu, que não pegando os animaes de vespora – Sexta frª que se contarão 22 dito corrente eu os havia pedido a hum vezinho de nome Francisco Xavier. Ex [Eis] senão quando vi huns poucos de homens brancos amontoados, em hum lado daquela praça, da dita Aldea que depois eu soube, pertendiam exbordoar o condutor, como me disseram, e fazerem voltar os ditos sinos, e castiçaes”.

Relata ainda o entendimento que então teve com o comandante de

“fazer conduzir os sobreditos Sinos, e castiçaes, sem falta, na segunda feira 25 dito corrente, porquanto ignoro, porque o não fez.”

O que nos interessa desde já ressaltar das informações contidas na missiva encaminhada pelo Vigário Colado de Embu a autoridade eclesiástica é o fato de que existiam naquele recuado ano de 1827, dois sinos na antiga capela, já então transformada em igreja Matriz de Embu, com jurisprudência sobre as aldeias vizinhas, Itapecerica e Carapicuíba. Se existiam sinos, haveria uma torre? Ou apenas uma abertura na fachada da igreja onde se colocavam os sinos, à semelhança da igreja da aldeia de Carapicuíba? A resposta, encontraremos na segunda carta que enviou ao mesmo Conego Fabriqueiro da Sé Catedral, poucos dias depois.

Antes, porém, tentaria reverter o curso dos acontecimentos junto ao comandante responsável pela condução dos sinos à Sé Catedral de São Paulo (8):

“cheguei a caza do Comde. deste Destricto de MBoy o Alffes. Ant° de Camg° e Olivrª, e por boas maneiras, fazendo-lhe eu ver, q~ a Portaria de Sua Magde. Imperador expedida pela Junta desta Provincia de 19 ditto Junho, me determinava remetesse dous Sinos dos q~ existião nesta Igrª, e bem assim os seus castiçaes de prata, ... e q~ se a Portaria do Exm° Vice preside. dizia herão dous pequenos Sinos, hera em relação aos Sinos da Cidade, onde os há grandes, e fazendo-lhe eu ver mais q~ o dever dele e meu, hera obedecermos as Ordens do Governo, e nada mais, continuou aquelle dito Comde. Com a mmª duvida do q~ a Portaria do Exm° Vice preside. a ele dirigida, hera de que ele Comde., remetesse dous pequenos Sinos”

e dá a entender o Padre Alexandre uma tentativa de suborno de sua pessoa por parte do comandante:

“e por ultimo perguntou-me se eu queria secenta mil rs. Pelo Sino, q~ ele os dava, ao que respondi-lhe, q~ o dito Sino não hera propriede. minha, e que nem aquella proposta ele me não devia fazer; finalmte com razões fui convencendo, thé, que ele disse-me, q~ no Dom° q~ se contou 1º do Corre. Julho, vinha a esta Aldea pª fazer conduzir o Sino e tendo com efeito vindo Ca, tratou com os Indios pª conduzi-lo hoje Segunda frª 2 do sobred° corre. Julho”.

E por fim, relatando os acontecimentos ocorridos naquele dia, dá a informação que buscávamos:

“ex senão quando, esta manhã pela volta do meio dia, apresentasse hum Indio, e logo depois deste vierão os mais, em Nº de seis – ou sete, e abertamte. me dicerão, que não querião levar o Sino, além de q~ já eu tinha previsto este acontecimto. porqto. quando eu cheguei ao Convento, já não achei o dito Sino, o qual havendo-o eu mandado descer da torre logo, q~ recebi a Portaria de S. Magde. Imperador, e polo na portaria da parte de dentro pª qdo. fosse ocasião, estar prompto”.

Portanto, em meados do ano de 1827, existia sim uma torre na igreja de N. Sra. do Rosário de MBoy que comportava dois pequenos sinos. De certo, sua dimensão devia corresponder ao tamanho dos sinos. Já o sino quebrado, por sua vez, não estaria a nos indicar uso constante e longevo? Infelizmente, ao padre Alexandre, naquele momento angustiante, não lhe ocorreu informar de quantas águas era feita a cobertura da torre, para infelicidade nossa. Coisas mais graves aconteciam então e que deviam ser relatadas imediatamente ao Cônego Fabriqueiro da Sé:

“passei a indagar, e me dicerão, q~ hum taberneiro, q~ he o Cabo daquela Aldêa, de nome Joaqm. Damasceno publicamte. dizia, q~ o Sino estava em Caza do Comde. e que ele cabo tinha a chave da dita caza, e que queria ver qm. seria capaz de lhe tirar o Sino, por consequência deve ele d° cabo Damasceno saber qm. o mandou tirar de dentro da portaria do Convento, sem duvida por recearem, q~ eu o remetesse pª a Cide”.

E o padre então resolve deixar a igreja e de imediato renunciar a função que desempenhava, explicando as graves razões que o levavam a tomar tal decisão:

“porqto. vendo-me eu inteiramte. abandonado já com o pr°, e já o segdo. tumulto, pois Que toda a Aldêa, e athe os vizinhos se conspirarão contra mim; venho port° a rogar a V. Exª a esmola q~ pelo mto. bem, q~ eu sempre quis a V. Exª haja aceitar mª desistência de tal emprego de Parocho de gente tão rebelde...”

Receoso, vendo índios e moradores brancos da aldeia e mesmo das vizinhanças conspirarem contra si, resolve abandonar a igreja, desistindo do emprego de Pároco e comunica que naquele mesmo dia iria a Capital, onde, judiciosamente, iria se apresentar

“aos benignos pes de V. Exª a qm. appeteço todo o bem, por q~ Sou com verdade, e sempre hei de ser De V. Exª O mais humilde Subdito, e fiel Captivo bem obrigd°”.

Situação aflitiva na verdade não era somente o padre Alexandre que estava passando. Parte do patrimônio da igreja jesuítica fundada por Padre Belchior, ou quem sabe até oriunda da antiga capela fundada por Fernão Dias Paes e sua mulher dona Catharina Camacho no século 17 entregue em 1668 aos Padres do Colégio de São Paulo, “com diversos encargos”, entre outros as obrigações de zelar e administrar seus bens e especialmente promover a festa anual de Nossa Senhora do Rosário, estava, naquele ano de 1827, sendo retirada de seu “habitat” e do convívio dos índios e brancos moradores da Aldeia de MBoy, quer pelo poder público (por ordens Imperial e Provincial), quer também por ação particular de um individuo que, embora no exercício de função pública, tentou subornar o pároco para obter os sinos para si, conforme se pode inferir do diálogo por ele relatado com o comandante. Aflitiva, portanto, mas corajosa e determinada, temos que reconhecer, era também a situação dos moradores da aldeia: brancos e índios se unem, resolvem reagir em defesa do patrimônio da capela e impedir a retirada dos sinos; e se rebelam contra a autoridade militar, ameaçam-na até, ameaça que respinga mesmo no pároco, que era quem, aos olhos dos aldeados, cabia zelar pelos bens da igreja, na condição de Vigário Colado. Verifica-se uma verdadeira convulsão na aldeia que se estende pelas aldeias circunvizinhas. O que nos faz lembrar a manifestação de Sônia Rabelo em debate sobre o instrumento legal do Tombamento: “a gente vê que são as comunidades com menos recursos que mais conservam seus valores próprios, não porque não tenham recursos para modificá-los, mas porque se sentem identificados com aquilo que têm” (Mesa Redonda Tombamento. Revista do Iphan Nº 22/1987). Alguém também afirmou que quando se está na iminência de perder é o momento que se pensa em lutar pela sua preservação.

O curioso, entretanto, é que parece que os castiçais de prata, talvez de maior valor monetário, não constituíram o motivo maior da revolta; mas sim os sinos. Toda a narrativa do Padre Alexandre nos induz a essa conclusão. Teria uma razão que não conseguimos alcançar o significado? Dizem os católicos que os sinos tem o poder e a missão de afastar de todos os lugares onde seu som repercute as potências inimigas do homem e de seus bens: o demônio, o raio, o granizo, os animais maléficos, as tempestades e todos os espíritos de destruição. Pelo que se tem notícia da situação em que a encontrou Dom Duarte Leopoldo e Silva em 1909 (9), especialmente a sua fachada que necessitava “de reparos urgentes”, somos tendentes a acreditar que os sinos não chegaram a ser retirados e transferidos para a Sé; teriam os aldeados dado o “sumiço” neles apenas temporariamente para, quem sabe, recolocá-los na pequena torre após a partida de Dom Pedro I para Portugal, quatro anos depois (1831).

De qualquer forma, este episódio de 1827 merece ser registrado no “histórico” desta veneranda capela jesuítica pelo significado agora desvelado – ocorrido quando contava com pouco mais de uma centena de anos de vida, presumindo que Padre Belchior de Pontes a tenha edificado ainda na última década do século 17 ou na primeira do século 18 (10) –, num momento em que sofria mais um duro golpe, pois, embora ainda aglutinasse em seu entorno uma pequena população de índios, já perdera a sua identidade originária há mais de sessenta anos, quando da expulsão dos Padres. Seus bens, ou o que restara de seu antigo patrimônio, passaram a ser administrados pelo Estado; e tornara-se igreja Matriz em 1808, sob a jurisdição direta do Bispo de São Paulo. Apesar de toda essa descaracterização, havia ainda uma identidade para com ela, um sentimento de pertencimento por parte de seus moradores – índios e brancos – e contava, suponho, com alguma solidariedade, mesmo que silenciosa, não bem dissimulada, por parte das autoridades eclesiásticas.

O significado agora assinalado, mesmo se analisado sob uma perspectiva historicista, me parece, constituiria de certo razão suficiente para argumentar pela preservação da torre que abrigava esses pequenos sinos. Não a de 1917, produto já de uma segunda reforma, nem a de 1897, quando da primeira reedificação da torre e que talvez lhe tenha subtraído a feição original – correspondente ainda a essa torre de 1827, mencionada na carta de Padre Alexandre - cuja configuração se buscou reconstituir em 1939-41 quando das obras de restauração da igreja encetadas pelo Sphan.

Certamente este episódio não foi um dos mais marcantes na história da igreja jesuítica de MBoy, assim também para a desprezada e aviltada população da aldeia. Outros mais gloriosos aconteceram no tempo dos padres jesuítas, certamente. A riqueza artística de seu interior é prova material de fatos notáveis que ainda estão por merecer pesquisas que a explique melhor. Mas este episódio dos sinos, todavia, não representou um fato insignificante, não foi um mero acontecimento – como se viu –, embora não se tenha observado desdobramentos que os contemporâneos julgassem dignos de registro, com exceção de um que anotamos na sequência. Vê-se, entretanto, o quanto complexa pode se configurar a questão da preservação quando examinada com um pouco mais de acuidade histórica, sobre tudo quando pode contribuir para a atribuição de valor aos bens culturais. O conteúdo dos documentos aqui apresentados nos é útil para resgatarmos o valor histórico do objeto cultural a que se relaciona em dois planos: de um lado, a importância a ele atribuída pelos contemporâneos que se pode inferir pelos acontecimentos relatados, nele manifestos; e, de outro, como testemunho “material” – presta-se, como dizem os arquivistas, como registro comprobatório da ocorrência ou existência de algo.

Infelizmente não encontramos mais informações acerca desse episódio. Sobre o padre Alexandre Gomes de Azevedo parece que foi acatada a sua desistência do emprego de vigário colado da igreja do Embu; porém não teve vida fácil depois, visto constar num apontamento no Arquivo da Cúria paulistana terem o Bispo, o Cabido e todo o Clero de São Paulo intercedido a seu favor junto ao Príncipe Regente solicitando a sua permanência no Brasil. Ao que parece conseguiram obter o perdão de Sua Majestade, porém foi o padre Alexandre obrigado a renunciar a cadeira de Cônego Catedrático que lhe havia sido conferida nove meses após ter se retirado de Embu (em 7 de março de 1828) (11). Desconfio que nem todos os meandros da verdadeira história foram devidamente relatados – o que me faz imaginar que a sua conduta no episódio compreendeu atitudes que estavam fora do alcance da compreensão dos moradores da aldeia. Estaria na verdade solidário com eles, tentando por outro lado convencer o mencionado comandante de que os sinos, pequenos em comparação aos da Sé, não teriam a mesma utilidade fora de Embu, estratagema que estaria por trás das palavras, um tanto contraditórias, com que relata o diálogo com ele mantido antes dos acontecimentos daquele domingo, 1º de julho de 1827. Por outro lado, a sua expulsão do país, que arregimentou toda a corporação clerical paulista para demover o Imperador da decisão tomada, não estaria relacionada com o (por mim) aventado e muito provável sumiço dos sinos?

Quanto ao Comandante Antonio de Camargo Oliveira, nada ainda descobrimos a seu respeito. Imagino que seu interesse particular pelos sinos possa ser relacionado a alguma capela que possuía num sítio qualquer, nas proximidades ou alhures. Mas não passa de uma hipótese. E relativamente a outro personagem também envolvido no episódio – Joaquim Damasceno –, o tal cabo que ameaçava quem se dispusesse a tirar o sino da aldeia, sabemos por ora apenas que era também artífice e que morava na região.

Quinze anos depois desses acontecimentos há notícia de um pedido do vigário colado da igreja ao Provedor de Capelas solicitando permissão para vender cabeças de gado vacum para custeio de obras necessárias no templo: forro e assoalho. Em março de 1852, o Vigário Colado Bento Pedrozo de Camargo participava as autoridades que “a Capella foi antigamente Aldêa” e que havia ainda “ornamentos e alfayas da mesma” que precisavam ser inventariados “pois entre eles há alguns d’oiro e prata” (12). Em 1860 o Cônego da Sé Joaquim do Monte Carmelo informa à Tesouraria da Fazenda Pública que a igreja e residência de N. Sra. do Rosário se achavam em “total abandono” e sem pároco (13).  E, de certo, já não existia índio algum para protegê-la.

E os sinos? É de se acreditar que ainda lá estavam, no alto da pequena torre, cumprindo a sua missão protetora.

Como observou Antonio Luiz Dias de Andrade, a iconografia existente sobre a antiga capela jesuítica, era e continua insuficiente, pois que restrita ao início do século passado. As fotos retratam apenas as suas fisionomias derradeiras. Todas com torre, mas de formato e dimensão diferentes. Talvez a mais antiga, a do prospecto da companhia ferroviária, fosse ainda essa mesma mencionada pelo Padre Alexandre Gomes de Azevedo em 1827. Vale também observar que, à época das primeiras intervenções do Sphan (1939-41), a documentação histórica estava menos disponível que nos dias atuais; mesmo assim já se contava com vários volumes da série Documentos Interessantes para a História de São Paulo e com os documentos publicados na Revista do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís que o historiador Nuto Santana conhecia muito bem. Mas a consulta às fontes manuscritas era, por esse tempo, ainda bastante restrita. Da mesma maneira os documentos eclesiásticos. Contava-se, é verdade, também com a colaboração do abade Clemente da Silva Nigra. Já o Padre Serafim Leite tinha iniciado a publicação da documentação da Companhia de Jesus no Brasil, pesquisada sobre tudo nos arquivos de Roma. A esse respeito, assinalem-se as expectativas de Lucio Costa relativas à publicação dos estudos que estavam sendo realizados pelo intelectual jesuíta (Arquitetura Jesuítica no Brasil. Revista do Iphan nº 5, 1941). Porém o volume acerca das igrejas de São Paulo do Padre Serafim Leite só viria a público em julho de 1945 (Tomo VI – Livro IV).

Hoje, talvez, a pesquisa histórica possa contribuir um pouquinho mais. É com essa intenção que aqui apresentei as informações colhidas nos documentos agora descobertos no Arquivo Público do Estado e no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo; assim também as considerações que fiz em relação aos questionamentos levantados por Antonio Luiz Dias de Andrade – inclusive as injunções que acarretam na organização e desenvolvimento do trabalho prático dos profissionais nos órgãos de preservação – e para cujo debate nos interessa contribuir, e de modo especial o problema da reconstituição ou da invenção da fisionomia primitiva da igreja de N. Sra. do Rosário de Embu.

Antes de concluir, cabe lembrar informação dada também por Antonio Luiz Dias de Andrade, qual seja de que Luís Saia teria conjecturado sobre a possibilidade desta igreja não possuir originalmente torre, apoiado num desenho presumivelmente feito por ele e que localizou no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro – informação que estranhamente não constou entre os dados levantados sobre o “caso” na tese defendida um ano depois. Mas, por enquanto, como se viu, a torre, com seus dois pequenos sinos, lá estava em 1827 (que, suponho, corresponda à da foto do prospecto citado), pouco mais de cento e dez anos da intervenção do SPHAN – o que me permite agora, com toda a segurança, afirmar: pertencia a um estado de coisas que efetivamente existia.

notas

NA – Versão adaptada do texto original para o site Resgate – História e Arte.

1
CÂNDIDO, Antônio. Patrimônio Interior. Revista do IPHAN, n. 22, 1987.

2
COSTA, Lucio.  Compromisso de Brasília, abr. 1970.

3
SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte, UFMG/Centrode Estudos Mineiros, 1963.

4
Conforme Relatório apresentado por Mário de Andrade em 16.10.1937. Cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, p. 84-85.

5
ANDRADE, Antonio Luiz Dias. O nariz torcido de Lucio Costa. Sinopses, São Paulo, n. 18, dez. 1992, p. 5-17. Este artigo, embora publicado um ano antes da apresentação e defesa de sua Tese de Doutorado intitulada Um estado completo que pode jamais ter existido (1993), desenvolve o tema com muito maior profundidade, expondo minuciosamente os dados colhidos nos acervos documentais do IPHAN, especialmente a correspondência trocada entre os arquitetos Luís Saia e Lucio Costa, acompanhada pelos desenhos produzidos à época. Afora este “caso” da igreja do Embu, mais outros cinco são analisados sob o mesmo prisma teórico desenvolvido nas Partes 1, 2 e 3 da monografia: Igreja de São Cosme e Damião, Igaraçu/PE, casa-sede e capela de Santo Antonio, São Roque/SP, Basilica de N. Sra. do Carmo, Recife/PE, Convento de Santo Antonio, Recife/PE, Casa de Câmara e Cadeia, Atibaia/SP.

6
Vale observar que por esses mesmos anos (1939-1941) Lucio Costa, além de discutir com Luís Saia esses aspectos do restauro da igreja jesuítica de Embu enquanto supervisionava os trabalhos técnicos de toda a repartição, desenvolvia paralelamente o estudo sobre “A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil”, o qual, publicado na Revista do Sphan, em 1941 (volume 5) se torna referência obrigatória não somente aos técnicos do órgão encarregados pelos trabalhos de conservação e restauro, como aos professores e estudantes dos cursos de arquitetura de todo o país, até os dias atuais. A sua influência sobre o ensino da Arquitetura no Brasil, bem como sobre a atividade dos arquitetos brasileiros, é reconhecida e reverenciada pelo próprio Antonio Luiz Dias de Andrade em sua tese de Doutoramento, ao destacar a liderança por ele exercida tanto dentro como fora do Sphan (A este respeito ver páginas 118 e seguintes da tese). Aliás, uma leitura mais atenta da tese de Doutoramento de Antonio Luiz Dias de Andrade pode avaliar a importância dos Autores de que se valeu para orientar as suas análises e interpretações, onde se vê a prevalência dos estudos de Lucio Costa, Luís Saia, Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário de Andrade, além de Maria Cecília Londres Fonseca e Lia Motta e dos acadêmicos como Carlos Guilherme Mota e Sérgio Miceli, afora os autores estrangeiros citados nas partes iniciais da monografia.

7
APSP Ordem 5599, Vigários e Bispos. Carta do Vigário Colado da Igreja de MBoy Alexandre Gomes de Azevedo, datada de 27 de Junho 1827.

8
APSP, mesma Ordem. Carta do Padre Alexandre Gomes de Azevedo, data provável: 2 de julho de 1827.

9
Livro de Tombo da igreja de Nª Srª do Rosário de Embu. Provimento de Visita de 20.10.1909

10
Padre Serafim Leite, S.I. – História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI. Imprensa Nacional. RJ. 1945. pp.359-360.

11
Fichário do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

12
APSP Ordem 1053, Ofícios Diversos de Itapecerica.

13
Relatório do DSPU constante no Arquivo do Iphan/SP.

sobre o autor

Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan/SP desde 1983.

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