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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O tag reto é uma solução gráfica e caligráfica que toma as construções como um grid, em uma disputa visual da cidade. Pichadores são mais um grupo disputando a paisagem da cidade, mas que não são nem os proprietários e nem o poder público.

english
The straight tag (or pixo reto) is a graphical and calligraphic solution that uses buldings as a grid, in a visual struggle for the city. Taggers are another group fighting for the city landscape, who are not owners or the government.

español
El tag recto es una solución gráfica y caligráfica que toma los edifícios como una cuadrícula, en una disputa visual de la ciudad. Los "taggers" son otro grupo más a disputar el paisaje de la ciudad, pero que no son ni los dueños ni el poder público.


how to quote

FILARDO, Pedro. Pichação (pixo). Histórico (tags), práticas e a paisagem urbana. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 187.00, Vitruvius, dez. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5881>.

Histórico

Pessoas sempre usaram as paredes para escrever e desenhar. Há relatos e evidências dessa forma de usar as construções e moradias desde cavernas pré-históricas, passando por ruínas romanas, até chegar aos muros da cidade moderna (1). Dentre suas formas temos basicamente a escrita (grafada) e a pictórica (desenhada).

Mesmo sendo as formas parecidas, suas funções e conteúdos diferem muito. Desde trechos de obras latinas clássicas nas ruínas romanas, passando por muralistas renomados no campo das artes plásticas, até protestos políticos e declarações de amor. Conteúdos e funções distintos, frutos de momentos históricos e necessidades da época. Expressão da literatura, estética visual, política (somente alguns exemplos dentre muitos outros).

O fenômeno das tags, porém, é recente. Pela primeira vez a cidade começou a ser sistematicamente alterada pela velha forma de escrita na parede, mas dessa vez com um objetivo diferente: obter a fama entre pares em uma disputa pela cidade. Disseminou-se por todo o mundo, partindo de duas cidades norte-americanas no final da década de 1960 (primeiro Philadelphia, e depois New York).

Essa nova forma de escrita apresenta algumas particularidades:

  • Não é uma assinatura pessoal, mas uma tag estilizada, que pode remeter tanto a um indivíduo quanto a um grupo (que pode ser grande o bastante para os membros nem se conhecerem pessoalmente).
  • É urbana, e está por toda a cidade. O primeiro a fazer isso foi TAKI 183, morador da rua 183 (Harlem, gueto negro de New York). No início da década de 1970 ele foi all city, isto é, alastrou por toda a cidade.
  • A grafia apresenta uma evolução dentro de suas próprias regras estético-formais.

As marcas começaram a aparecer pelo sistema de metrô, que dava a chance de espalha-las por toda a cidade, uma vez que uma boa parte do sistema da cidade de New York corre pela superfície. Vagões eram cobertos por completo com spray ou canetões de feltro, assim como os interiores dos trens. Os pioneiros nessa atividade preferiam ser chamados de writers (escritores), o termo grafite foi usado pelas autoridades policiais da época.

Ley e Cybriwsky (2) associaram as assinaturas em New York a marcadores territoriais de gangues. Elas rivalizavam por disputas de territórios e por diferenças étnicas (negras, porto-riquenhas, orientais). Baseados em observações de campo sistematizadas em mapas, os autores chegaram a uma distribuição relacionada à atuação de gangues rivais em guetos norte-americanos. De gangues operando em seus guetos, o grafite passou a se espalhar por toda a cidade pelas crews (grupos multiétnicos e com uma maior preocupação estética quanto às suas assinaturas).

Em New York, as tags também se ligaram ao Hip-hop, que tem como pilares o Rap (Rithm and poetry, ou ritmo e letra, uma forma de canção falada, sem melodia), o Break (dança de rua praticada pelos B-boys) e o Graffiti (palavra de origem latina, derivada do verbo escrever). Esse movimento teve um grande impacto na juventude negra e imigrante, e se espalhou pelo mundo todo (3).

Elas também operam como o Rap: através de remix (pedaços de músicas diferentes são colados juntos por samples, pequenas amostras geralmente tocadas repetitivamente, isto é, em loop). Os DJs (disk jockeys ou tocadores de disco) usam dessa técnica para criar bases rítmicas sobre as quais vão ser cantados sem melodia versos improvisados pelos MCs (master of cerimonies ou mestres de cerimônia). As crews de New York operavam de maneira parecida, copiando e reinventando os estilos, mas sempre de uma forma nova, um remix que adiciona algo e que não é uma cópia pura e simples. A própria comunidade controlava essas inovações, dando crédito e reconhecimento aos responsáveis.

O Hip-hop é um movimento que unifica esse sentimento de pertencer à margem da cidade (ou ao outro lado dos trilhos, como os anglo-saxões chamam, em uma referência à divisão da cidade que se deu historicamente a partir da industrialização). Phipadelphia é um exemplo de cidade dividida pelos trilhos, apartada entre o norte rico e o sul pobre. New York, por ser localizada em um arquipélago, não apresenta tal divisão. As tags foram uma forma de manter a identidade em meio a mudanças e conflitos raciais de minorias forçadas, por falta de melhor alternativa, a viver em conjuntos habitacionais ou partes degradadas da cidade (4).

Isso também marca um momento bem definido na história das cidades norte-americanas: o white flight (5). O que ocorreu no pós-guerra foi abandono da cidade (inner city) pelos brancos durante o processo de sprawl suburbano, fruto de uma política de descentralização do território por autoestradas e de incentivos do governo para a aquisição de uma casa no subúrbio, em um grande lote com um grande gramado, símbolo do american way of life. As lutas raciais que explodiram nos centros das grandes cidades americanas nessa época também tornaram esses locais desvalorizados, certamente abrindo brechas na defesa dos imóveis ou desinteresse por pintá-los novamente.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, a segregação norte-americana se dá principalmente por etnia. O gueto é uma parte da cidade ocupada por um grupo não branco relativamente homogêneo em termos de origem. Também pode ser heterogêneo e apresentar uma mistura de negros, hispânicos, orientais e imigrantes. Essa divisão oficialmente se dá por ascendência e acaba por marcar uma sociedade profundamente dividida, divisão que vai se refletir na cidade.

O sul dos USA manteve uma sociedade altamente segregada mesmo após o fim da escravidão, segregação que permanece culturalmente presente e só foi acabar em termos legais na década de 1960 após os movimentos pelos direitos civis, restando a segregação de facto. O norte do país, historicamente menos racista, acabou sendo destino dos negros que fugiam do sul, formando grandes comunidades negras nas metrópoles de New York, Chicago, Philadelphia, Detroit etc (6).

Grosso modo, essa segregação urbana ocorre no mundo todo, mas sempre de maneira diferente de acordo com a formação histórica e territorial de cada local. Mas é possível falar de uma certa unidade na medida em que os problemas são parecidos (crime, abuso de drogas, violência, abuso policial, pobreza). A necessidade de afirmação identitária acaba por unificar locais tão distantes entre si. O Hip-Hop agiu nesse sentido, criando um sentimento de pertencimento que se espalhou pelo mundo disseminando uma forma de sociabilidade típica dessas partes segregadas da cidade (7). O Bronx (NY) não é tão distante assim do Capão Redondo (SP, zona sul), que por sua vez pode estar bem próximo de Guaianazes (SP, zona leste).

No Brasil, essa divisão urbana se dá principalmente pela renda, o que também reflete uma divisão por cor da pele. Geralmente os pobres são também negros, descendentes de escravos com menos oportunidades.

A divisão pobres-ricos geralmente também marca a fronteira entre a cidade central e a periférica. As cidades brasileiras são o inverso das norte-americanas: via de regra os pobres moram na periferia (muito embora isso tenha mudado recentemente em ambos países, com a expansão suburbana no Brasil de condomínios de classe média e alta e a crescente gentrificação dos centros das grandes cidades norte-americanas).

A escravidão também deixou marcas no Brasil, mas sob a forma de uma divisão que não é tão clara e marcada quanto a que ocorreu nos EUA. O critério de divisão adotado pelo IBGE é diferente dos EUA. O que é considerado é a autodeclaração: as pessoas se classificam pelo o que acham que são (brancos, indígenas, pardos, negros). O fato de a segregação ser velada, e não explícita, não torna o Brasil uma democracia racial, só pede que a questão seja tratada de outra maneira.

A abrangência das marcas na cidade de São Paulo é muito maior, está por toda a mancha urbana (aproximadamente 80 km no sentido leste-oeste e 35km no norte-sul), e se estende a municípios vizinhos. Existem poucas fontes quanto à abrangência do fenômeno na New York da década de 1970, e a maioria delas relaciona a pichação com o sistema de metrô, que tem raio de abrangência da ordem de 38km.

Um dos primeiros pichadores a usar de toda a cidade foi o dono de um canil, que grafava Cão Fila Km 26 por toda São Paulo. Ele não foi o primeiro do Brasil, mas ele ganhou mais notoriedade na medida em que a cidade de São Paulo é a referência nacional da atividade. Sua intenção era meramente fazer propaganda do seu canil situado no km 26 da estrada do Alvarenga, mas a sua insistência e presença em toda a cidade acabou inspirando e antecipando todo o movimento da pichação. Ele é fartamente reconhecido pelos primeiros pichadores, muito embora sua motivação seja distinta.

No Brasil, a palavra grafite acabou sendo usada para denominar um tipo de intervenção geralmente não autorizada com uma maior preocupação estética, marcada por cores e por uso de técnicas como o stencil (forma vazada através da qual é usado o spray de tinta) (8). O grafite passou a ser associado a um investimento estético maior (com estêncil, cores e formas pictóricas), enquanto o termo pichação passou a denominar formas de escrita (geralmente monocromáticas, que eventualmente podem ter um investimento plástico-estético maior quando na forma de bombs).

Essa divisão pichação/grafite é problemática, considerada inexistente por muitos praticantes. Também é fruto de um preconceito social, uma vez que uma das técnicas está associada à periferia da cidade, enquanto a segunda se concentrou na área central, realizada por pessoas de classe média.

Alguns artistas plásticos traziam informações e técnicas de New York quando a cena de grafite dominava a cidade. Essas técnicas eram usadas dentro de um contexto de artes plásticas, e não necessariamente para fazer assinaturas (9). A intenção por trás era a de tornar a cidade mais bonita e de se comunicar com o passante na rua, criando significações inusitadas que buscavam exprimir intenções estéticas. Muitos desses primeiros pichadores depois se enveredaram no ramo das artes plásticas.

Rebatendo com certo atraso a cena de New York, grupos começaram a bombardear a cidade inteira com assinaturas. Aproximadamente em 1985 surgiu um certo estilo que define visualmente as intervenções até hoje: o pixo reto ou tag reto (10).

Os pichadores, para denotar sua atividade na forma de assinaturas, usam o termo com a letra x. Pixação seria diferente de pichação (a rigor, qualquer intervenção não autorizada na forma de pinturas, inscrições ou gravação de baixo relevo).

Até hoje o que se vê como intervenção hegemônica são essas marcas, que persistem na cidade. Como são geralmente datadas, é possível observar inscrições de até 10 anos de idade, mas que certamente foram feitas por cima de outras, pois a cidade é como um palimpsesto gigante, em permanente escrita. Não há documentação sobre o quanto a cidade foi alterada por esse fenômeno, só alguns relatos baseados na sensação de que o seu pico ocorreu nos anos 1990, sendo que atualmente não seria tão prevalente.

Prática

O que pode ser visto em São Paulo são assinaturas de grupos em letras angulosas maiúsculas, algumas vezes antecedidas por um signo próprio da grife (aliança de grupos, cujos membros nem sempre se conhecem). As assinaturas variam muito, mas um padrão é muito recorrente. Primeiro vemos a marca pictórica de uma grife (aliança de grupos), seguida pelos grupos (em pixo reto). O indivíduo deixa a sua marca individual no fim, colocando sua procedência e o ano (Z/O, 2013, por exemplo). Se um grupo pichou com o outro no mesmo rolê, uma seta entre as assinaturas vai indicar isso. No final podemos ver algumas inscrições pictóricas e recados para os demais usuários da cidade, escritos com uma grafia deliberadamente legível.

Abaixo, exemplo de pixo reto (árabe-gótico) em um muro. O nome do grupo (OS GS) é seguido por uma assinatura individual e muitas vezes pelo ano e local de procedência do pichador (Z/S significa Zona Sul, por exemplo). O signo entre OS e GS é a marca da grife, uma aliança de grupos (é uma honra para um grupo ou pessoa ser convidada para participar de uma grife). Pequenos ícones podem acompanhar: setas indicam grupos que fizeram a pintura juntos, folhas de cannabis mostram o uso recreativo de drogas etc.

Exemplo de pixo reto (árabe-gótico) em um muro
Foto Pedro Filardo

As intervenções não autorizadas em construções públicas e privadas usam de diferentes técnicas:

Estêncil, muito usado para arte de rua, travessa da R. Cardeal Arcoverde, Pinheiros
Foto Pedro Filardo

Bexiga de tinta, ponte Bernardo Goldfarb, vista da ponte Eusébio Matoso
Foto Pedro Filardo

Lambe-lambe, usado em propaganda e arte de rua, Avenida Corifeu de Azevedo Marques, Butantã

Canetão, muito usado em nível de solo, assim como o giz de cera e rabiscos que raspam a superfície com objetos duros. Capturado na rua João Moura, Pinheiros
Foto Pedro Filardo

Látex, bomb, throw up ou grapixo usando látex como base e preenchimento na rua Cardeal Arcoverde. Marcado pelo uso de cores e grafias redondas, é um híbrido entre a pichação e a arte de rua

Spray, rua Santa Rosa, Butantã
Foto Pedro Filardo

Extintor de incêndio carregado com tinta, Travessa da rua Teodoro Sampaio
Foto Pedro Filardo

As noções de design gráfico são aprendidas na prática (espaçamento entre caracteres, ocupação proporcional do edifício, alinhamento, entre outras). Alguns designers de fontes fizeram o caminho inverso: das ruas para o formalismo da tipografia, criando algumas fontes como a Adrenalina e a Brazil Pixo Reto (feitas por Gustavo Lassala e Tony de Marco, disponíveis no site myfonts.com).

A forma mais comum encontrada em São Paulo é o tag reto (ou pixo reto), também chamado de escrita árabe-gótica. Surgido nos anos 80, baseia-se em capas de disco de rock e punk (como Iron Maiden e Judas Priest). A grafia foi se alterando a partir de uma combinação desse tipo híbrido de maiúsculas Góticas com os letreiros comerciais, geralmente em fontes maiúsculas não serifadas (11).

Essas marcas não deixam de ser uma forma de logotipo que concorre visualmente com outras formas de escrita como a propaganda e os letreiros da cidade. Estima-se que em 1985 essa forma tenha se consolidado, de modo que é possível observar uma homogeneidade dentro das diversas soluções caligráficas dos grupos (12). Enquanto no resto do mundo se observa uma certa emulação do estilo de New York, a pichação de São Paulo tem um estilo próprio, que se tornou referência dentro do Brasil. Assim como é o caso do Rap, que apesar de mundializado tem que ser adaptado às circunstâncias locais por usar outro idioma, a escrita passa pelo mesmo processo. A adaptação se dá pelo vocabulário gráfico-estético existente no local, que é remixado em uma forma própria.

Logotipo da banda Iron Maiden. Possui semelhança com as fontes chamadas de blackletter ou góticas (alguns chamam a pichação de escrita árabe-gótica
Desenho Pedro Filardo

Via de regra, a opção é por traços simples que possam ser feitos rapidamente com rolo de tinta ou spray. Essa economia de gestos aproxima a caligrafia das ruas da tradição caligráfica formal, e até de um suposto arquétipo que aproximaria todas a letras pela experiência prática. Os instrumentos devem ser pequenos e caber dentro de uma mochila, para conferir mais agilidade nos rolês (a velocidade diminui o risco das ações e alastra a assinatura por uma área maior).

A execução é um misto de caligrafia com tipografia, pois a forma deve se manter independente do tamanho, instrumento ou suporte (tal como se espera de uma fonte).

O spray é muito semelhante à caneta-tinteiro: ambos são de fluxo contínuo de tinta. É fácil borrar (ou escorrer, no caso do spray). O pichador deve ter um traço firme e rápido, controlando o fluxo de tinta pela pressão no bico da lata. A forma depende muito do gesto e da fluidez do movimento.

O suporte define a quantidade de tinta a ser usada. Se for muito poroso, é necessário mais tinta, já que parte dela vai ser absorvida pela superfície. Se for liso, o traço tem que ser mais rápido, para evitar o escorrimento.

O rolo de tinta e o canetão apresentam uma resposta mais homogênea e menos sensível ao gesto. O primeiro é rápido, e sua largura estreita as opções de grafia quando são feitas curvas, o que não significa que somente é usado para traçar retas. O segundo é muito utilizado em nível de solo e no mobiliário urbano (lixeiras, pontos de ônibus). O giz de cera também pode ser visto, mas é uma forma inicial de aprendizado, de pouco impacto visual. O resultado deve ser parecido, mesmo que cada ferramenta de escrita apresente possibilidades e limitações diferentes.

A legibilidade é secundária nessa forma de escrita, que geralmente só é entendida pelos que se interessam em decifra-la. Isso acaba criando uma evolução gráfica dentro de suas próprias regras, um sistema de comunicação fechado. A própria noção de legibilidade é também contestável, uma vez que as pessoas leem o que estão acostumadas (em termos de fontes e suportes). Seu valor muitas vezes reside no impacto visual, em como se escreve (e não tanto no que é escrito). Por ser mais gestual e plástica, também serve como demarcação entre os que dominam ou não o traço.

Para aplicar as assinaturas, além da prática do próprio alfabeto em termos de traço e uniformidade, é necessário também prever os resultados a partir do nível de mirada na rua, saber os melhores ângulos das construções, escalar as edificações.

No esquema abaixo, pode-se ver o edifício como grid composicional gráfico. As letras e seu tamanho e espaçamento seguem a lógica da construção. Na figura de baixo temos as diferentes visadas que um passante tem para um edifício, desde o nível do solo até o topo (os pichadores assumem que o observador está no nível da rua.

O edifício como grid composicional gráfico
Desenho Pedro Filardo

A paisagem urbana

A paisagem urbana é resultado de disputas pelo espaço, e das suas diferentes formas de apropriação por seus habitantes. A apropriação do espaço deve ser entendida aqui de duas formas: material e simbólica. Como a cidade é construída e alterada (material). E como ela é sentida, apropriada e vivenciada pelos usuários (simbólica). Estes últimos a vivenciam e veem de formas distintas: neste trabalho focamos, em particular, os pichadores (que a utilizam como suporte para a suas pinturas).

A ordem de um sistema baseado na imagem é pré-verbal, não linear (13). Esse sistema depende basicamente do usuário, pois ele se apresenta dispersamente, sem uma linguagem pré-definida, é um sistema low-fi (ou de baixa fidelidade, que em termos acústicos denomina um sistema onde o ruído é muito alto em comparação com o sinal que queremos ouvir).

As variáveis contextuais em que estamos imersos (consumo, transporte, trabalho) vão determinar em larga parte o recorte dessa realidade de imagens. Esse recorte pode ser repetitivo, linear, fruto de uma contiguidade cotidiana, dos sucessivos ambientes nos quais as pessoas se deslocam. Mas também pode ser criativo, por associação mais abstrata, uma semelhança entre imagens desconexas. As assinaturas nos muros são, ao mesmo tempo, um elemento visual e verbal. Podem ser vistas como poluição irrelevante, como sistema de comunicação ou por suas qualidades formais caligráficas (dentre outras). São uma ordem espontânea que acaba gerando um resultado não intencional, uma semelhança visual entre lugares muitos distintos, algumas vezes em outros países ou continentes. O resultado visual acaba dando a sensação de estar em uma cidade grande ou uma metrópole.

Da imagem que abre o artigo foram suprimidas as inscrições com auxílio de software gráfico; é possível verificar como sua remoção pode gerar um estranhamento, como se algo estivesse faltando
Foto Pedro Filardo

As intervenções visuais têm objetivos muito diversos entre si, e refletem um uso da cidade que está à margem das intervenções privadas ou públicas. É uma forma de apropriação do espaço urbano muitas vezes ignorada, tratada como irrelevante ou simplesmente odiada, mas que define visualmente a cidade, assim como a identidade das pessoas que optam por tomar as construções como suporte de suas letras ou desenhos (usam da cidade como forma de afirmação identitária transgressiva).

Cada usuário tem o seu próprio filtro sensorial e se relaciona com a cidade de uma maneira própria (14). O grupo ao qual pertence pode oferecer uma probabilidade de um tipo de filtragem, mas não determina o tipo em última instância.

Michel Conan, um teórico francês da paisagem, coloca como os diferentes grupos se apropriam das paisagens segundo os seus usos, um reflexo dos seus desejos e expectativas (15). Nesse sentido, os ritos partilhados por determinados grupos serão fundamentais na alteração ou manutenção da paisagem (no sentido de defender o local contra transformações).

Mas a apropriação apresentada aqui é a do olhar, do visual (um dos sentidos dentre muitos que são atribuídos à materialidade). Ela seria somente visual, e não contemplaria outras formas de vivência colocadas por Conan. Esses diversos usos escapam muitas vezes da produção econômica no sentido mais estrito, estando ligados ao lazer e outras celebrações culturais.

Conan coloca três condições para a existência de um grupo que partilha um objetivo comum:

  • Suas interações com a participação de todos os membros (que seria a fama partilhada pelo uso da cidade como suporte da pichação, seja com objetivos de comunicação ou de estética)
  • Modelos de práticas (a conduta baseada na humildade e no respeito à quebrada e aos outros pichadores, onde o atropelo é tabu)
  • Um objeto simbólico (que seria o tag reto em todas suas variações, tão comum na cidade de São Paulo)

As diversas manifestações da pichação têm sempre dois lados. Ela serve objetivamente para afirmar a existência dos pichadores (material), assim como a sua identidade perante um grupo (simbolismo enquanto fruto de uma sociabilidade). Essa materialidade revestida de sentido seria o símbolo de um grupo que se torna coeso pela apropriação ritualizada da cidade.

Porém é difícil falar em coletividade como quer Michel Conan: de uma forma ampla e que abarque tudo em harmonia. Há um estranhamento entre os usuários da cidade na medida em que olham a cidade de forma diferente. Existem disputas e contradições, e um grupo hegemônico (Estado e proprietários de imóveis) age no sentido contrário a qualquer transgressão. É muito difícil gerir esse patrimônio coletivo de modo a gerar harmonia dentro de uma sociedade permeada por conflitos.

As construções para os pichadores seriam uma espécie de formulário a ser preenchido, um suporte de escrita onde elementos como janelas, parapeitos e marquises formariam um grid, um imenso caderno de assinaturas. Tomando a cidade de assalto transgressivamente para seus próprios fins, eles subvertem a arquitetura, impondo novas funções além do projetado. A almejada máquina de morar dos modernistas também pode ser uma máquina de comunicação, habitada por uma espécie muito curiosa que não deixa de ser uma máquina de produzir significados e signos.

Para os demais usuários que valorizam outros aspectos, as pichações são sujeira, um vandalismo indesejado, um ruído visual que não comunica ou significa nada. Ela é cancelada da vista, não é levada em conta quando olham para a cidade. É um processo semelhante ao ruído dos carros, que é anulado da audição na paisagem sonora das grandes cidades, povoada de automóveis e outras máquinas (16). A diferença entre o sinal (ordenado) e o ruído (desordenado) depende fundamentalmente do ouvinte.

Isso também mostra que a relação com a cidade pode passar como uma indiferença total, como se o espaço urbano fosse somente uma ligação entre o local de trabalho, moradia e lazer. Não existiria propriamente uma relação com a cidade, mas um estranhamento de um ambiente visto como hostil, violento, sujo e degradado.

Ocorreria aqui o mesmo cenário de abandono das ruas descrito por Jane Jacobs, fruto de uma perda de relação com o meio resultante de reformas urbanas que destituíram a cidade de urbanidade (17). Rasgadas por vias expressas e por toda sorte de mudanças em grande escala, a cidade sofre com uma falta de uso dos diversos espaços urbanos em sua totalidade (não por um acaso as obras viárias e seus espaços adjacentes são muito afetados pela pichação).

Como mostrado em Morte e Vida de Grandes Cidades, os muros separam as pessoas e bloqueiam os olhares, tornando a cidade impessoal e perigosa. Esses mesmos muros se tornam suporte das assinaturas, o que para alguns aumenta essa sensação de perigo e abandono.

O maior responsável pela sensação de segurança nas ruas da cidade é o olhar dos passantes. Quando o uso o automóvel virou prioridade, acabaram sendo necessárias grandes obras viárias que criaram zonas cinzas, terras de ninguém, mera passagem entre localidades. Locais desprovidos de ambientes de sociabilidade, onde a transgressão vira regra (violência e vandalismo).

Na cidade de São Paulo, esse momento também foi marcado pelo fenômeno metropolitano (mudança de escala de cidade para metrópole). O sistema de bonde sobre trilhos foi substituído pouco a pouco pelos pneus (automóveis e ônibus), espalhando a cidade por uma área muito maior, até o ponto de criar uma imensa conurbação que é a Região Metropolitana de São Paulo.

Destituir a cidade de urbanidade significa acabar com essa vivência cotidiana entre pessoas, vivência que exige uma maneira de se portar, de conviver em civilidade. Esse estranhamento com o meio também é relatado por alguns pichadores, que respondem a isso na forma de uma agressão estética (muito embora esse estranhamento seja também fruto de uma cidade dividida entre centro e periferia, e não só das mudanças relatadas por Jane Jacobs).

A análise de Jane Jacobs diz respeito às cidades norte-americanas, que passaram por um processo de suburbanização diferente. Mas alguns pontos são comuns para quase todas as grandes cidades no final do século 20 (principalmente a preponderância do automóvel e a perda de urbanidade por separação entre áreas residenciais e comerciais).

Conclusão

A pichação é um fenômeno recente, e que aponta para muitos caminhos. O breve histórico apresentado aqui serviu somente para situar ela dentro do contexto temporal e espacial, principalmente para comparar o caso de dois países distintos. Faltam aprofundamentos em cada um dos casos, assim como um levantamento mais preciso do caso da cidade de São Paulo.

A parte prática se limitou a enquadrar o fenômeno em sua expressão sobre as construções, na sua forma de apropriação da arquitetura. Não foi feito nenhum aprofundamento na parte propriamente caligráfica, que apresenta diversas soluções dentro do que seria uma escola informal que emerge de uma ordem espontânea.

Foi feita uma tentativa de inserir a pichação dentro de uma discussão maior (conceito de paisagem). A pichação é somente mais um elemento dessa coisa maior, que certamente tem outros desdobramentos e conexões além das mostradas aqui.

Resta saber se esse recente fenômeno vai permanecer nas cidades, tal como é observado em nível mundial desde a década de 1970. Ou se será mais uma coisa passageira a ser apagada pelo tempo, como tantas outras que já passaram pelas cidades.

notas

NA – Parte da dissertação: FILARDO, Pedro R. A pichação (tags) em São Paulo: dinâmicas dos agentes e do espaço. Orientadora Yvonne Mautner. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2015.

1
KOSSOVITCH, Leon. NOX – São Paulo Graffiti. São Paulo, Cinemateca Brasileira, 2013.

2
LEY, David; CYBRIWSKY, Roman. Urban graffiti as territorial markers. Association of American Geographers, V. 64, Dec. 1974, n. 4.

3
MASON, Matt. The pirate's dilemma, How Youth Culture Is Reinventing Capitalism. Nova York, Free Press, 2008.

4
GÜNES, Serkan; YILMAZ, Gülsen. Understanding Graffiti in the built Environment. 42nd ISoCaRP Congress, 2006.

5
BYRNE, David. Diários de bicicleta. São Paulo, Manole, 2009.

6
SOWELL, Thomas. Three Black Histories. The urban institute, 1978.

7
PEREIRA, Alexandre Barbosa. As marcas da cidade: a dinâmica da pixação em São Paulo. Lua Nova, São Paulo, n. 79, 2010, p. 143-162.

8
RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, pichação e cia. São Paulo, Annablume, 2008.

9
FRANCO, Sérgio. Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores representando o contemporâneo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2009.

10
CHASTANET, François. Pixação: São Paulo signature. France, Xgpress, 2007.

11
Idem, ibidem.

12
Idem, ibidem.

13
FERRARA, Lucrécia D'Aléssio. Olhar periférico. São Paulo, Edusp, 1993.

14
MUNARI, Bruno Design e comunicação visual. Lisboa, Edições 70, 2006.

15
CONAN, Michel. L'invention des identités perdues . In BERQUE, Augustin (org.). Cinq propositions pour une théorie du paysage. Paris, Champ Vallon, 1994.

16
SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo, Editora da Unesp, 2001.

17
JACOBS, Jane (1961). Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

sobre o autor

Pedro Filardo é graduado em Geografia pela FFLCH/USP, onde desenvolveu pesquisa em paisagens urbanas. É mestre pela FAU USP, com o tema da pichação em São Paulo.

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