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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A arquitetura paulista nos anos 1950 se produz em um contexto de severa crítica ao processo de modernização adotado. Este artigo procura compreender a proposta de Artigas para o Edifício Louveira à luz dos embates vigentes à época de sua construção.

english
The Sao Paulo architecture in the 50s takes place in a context of severe criticism of urban modernization adopted. This article seeks to understand the proposal of Artigas to the Louveira in light of the current conflicts at the time of its construction.


how to quote

MEDRANO, Leandro; RECAMÁN, Luiz. Vilanova Artigas e o Condomínio Louveira. Verticalização e ordem urbana. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 191.00, Vitruvius, abr. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.191/6003>.

A metrópole em formação

Com grandes taxas de crescimento econômico, os anos 1940 pareciam indicar, em São Paulo, uma feliz confluência entre os interesses dos terratenentes, dos setores industriais e de um novo pensamento urbanístico, agentes produtores desse espaço urbano em grande expansão. Alguns ajustes seriam necessários, mas não existiria contradição entre as suas estratégias. Tampouco parecia haver grandes conflitos entre esses interesses e a melhora das condições de vida da nova classe trabalhadora, de origem rural, que chegava às cidades em busca de trabalho. A dinâmica da "cidade que mais cresce no mundo” parecia poder incorporar a todos em sua máquina produtiva de espaço. Era isso que indicava, do ponto de vista do que se pensava sobre o espaço arquitetônico, as possibilidades abertas pela industrialização.

Essa energia canalizadora de esforços e interesses diversos, foi rapidamente substituída pela imagem de uma cidade sem paisagem, sem ordem e sem controle, palco de grandes conflitos espaciais. A consciência arquitetônica paulista nos anos 1950 se produz em um contexto de severa crítica ao processo de urbanização e modernização adotados, deletérios ao processo de ocupação do território e às classes trabalhadoras. Ter se voltado, nesse momento crítico, paradoxalmente, para a unidade “casa”, indica as vicissitudes ideológicas de um projeto estético que sobrepôs contradições próprias e alheias. As camadas mais profundas desse projeto manifestam-se na obra do arquiteto Vilanova Artigas, em seus projetos do final dos anos 1940 até o início dos anos 1960.

O Edifício Louveira não pode ser sem alinhado a essa rebeldia estética que Vilanova Artigas protagonizaria na segunda metade dos anos 1950. Tal anacronismo desconsidera o fato de que essa guinada disciplinar se deu confrontando a realidade desordenada da explosão das periferias pobres e ricas da jovem cidade industrial. E que o Louveira estava situado, em todos os sentidos, na pura formalidade urbana, no cenário idealizado por seus governantes e elites econômicas, em uma cidade cujo urbanismo “foi essencialmente negativo”, segundo o olhar estrangeiro de Yves Bruand (1). A subida da nobre encosta norte da cumeeira paulistana era, provavelmente, um dos poucos momentos de “viço” que outro estrangeiro, o antropólogo Levi-Strauss, captou, prévio à da “decrepitude” que a cidade parecia alcançar antes mesmo de sua ancienneté (2).

A compreensão da proposta de Artigas para esse edifício deve ser buscada no contexto do final dos anos 1940, seja em relação aos modelos de arquitetura moderna que estavam disputando hegemonia no país, seja em relação à dinâmica de desenvolvimento urbano e dos instrumentos urbanísticos que eram utilizados na definição da ocupação territorial. A solução do edifício, principalmente a sua implantação em lâmina dupla, não prosperou, pelo menos em suas intenções originais. Atesta esse fato a própria obra madura do arquiteto, e suas propostas radicais posteriores para o que ele entendia ser o espaço desejável da cidade.

Um bairro particular

O sítio em que o edifício Louveira foi implantado constitui uma exceção no processo de urbanização da cidade. A experiência urbana da ocupação da encosta norte próxima ao centro resultou da associação de estratégias do mercado imobiliário, intenções urbanísticas orientadas pelo poder público e estéticas modernizadoras que pretendiam orientar a nova face da metrópole moderna em formação. Essa associação realizou-se nos inícios da expansão territorial da cidade, ou melhor, de suas áreas nobres, e, tendo se tornado um modelo de ocupação geral para os bairros regulares, raramente encontrou resultados similares. Isso porque, nessa experiência única, considerou-se como fundamental a configuração prévia dos espaços públicos e de sua infraestrutura, dado progressivamente abandonado nas décadas seguintes, pelo menos no sentido urbano aqui analisado.

Nos últimos anos do século 19, a ocupação rarefeita das chácaras nos arrabaldes a oeste da cidade dá lugar aos primeiros loteamentos que receberam os casarões da burguesia cafeeira. O Boulevard Burchard, que mais tarde delimitaria grande parte do novo bairro de Higienópolis, foi lançado em 1895, no terreno originalmente pertencente às chácaras do Barão de Ramalho e Barão Wanderley. Esse loteamento de elite definiu as características principais do novo bairro: o traçado regular das vias, a divisão em lotes amplos, arborização urbana, a forma de implantação dos edifícios, iluminação a gás, rede de água e esgoto, e o uso habitacional exclusivo (3). Ainda que a existência desse novo bairro - tanto sua idealização quanto sua configuração e características urbanas - deveu-se ao investimento privado, algumas intervenções realizadas pelo poder público o viabilizavam. Seus espaços públicos originais se restringiam às calçadas e vias; a praça Buenos Aires foi construída pela Prefeitura em 1913 e a praça Vilaboim, em 1937 (4). Essa confluência de estratégias particulares acompanhadas de intervenções da Prefeitura caracterizou esse período de formação da metrópole (5). E constituiu, ao longo do século 20, seu principal modelo de urbanização, próprio do patrimonialismo nacional (6).

Edifício Louveira, fachada para a rua Tinhorão. São Paulo, 1946, João Batista Vilanova Artigas
Foto Nelson Kon

No final dos anos 1920 essa configuração se altera, indicando uma nova dinâmica urbana na cidade na qual essa parceria se complexifica e amplia em direção às normativas urbanísticas, o planejamento urbano e um mercado imobiliário estruturante na economia da cidade. Em primeiro lugar, o crash de 1929 e a revolução de 1930 agudizam a crise da superprodução de café, atingindo as fortunas que construíram essa vizinhança. O bairro passa a sofrer as consequências do custo do  luxo original que não pode ser mais financiado pelo esquema econômico da Primeira República (7). Esse declínio anunciado do bairro foi rapidamente ajustado na capitalização imediata desse lugar burguês, sui generis em sua conformação planejada. O que nos interessa neste momento é uma alteração, à anterior conectada, que indica que a transformação do bairro, sua verticalização resultante da capitalização da forma urbana anterior, passa a ser uma estratégia da administração do território da cidade, que ingressa em uma nova fase de planejamento urbano.

Nesse período, a cidade altera suas representações espaciais e urbanas. À cidade embelezada da primeira república, de inspiração francesa, segue a cidade do automóvel e dos arranha-céus (8). A verticalização deixa de ser exclusiva da área central, e alcança seus bairros mais próximos. As mudanças na legislação – a criação do zoneamento em 1931 e a regulamentação do Código Arthur Saboya em 1934 – providenciam a multiplicação de edifícios de uso exclusivamente residencial. Em um primeiro momento, esse alastramento se dá em direção ao Largo do Arouche, Santa Efigênia e Higienópolis (9).

O Bairro de Higienópolis novamente se torna um território de experimentação urbanística diretamente vinculado aos investimentos das renovadas elites econômicas da cidade. Uma junção peculiar de lotes amplos, alta renda, novidades arquitetônicas e mercado imobiliário em ascensão vão criar novos paradigmas e padrões espaciais para a cidade: o edifício moderno com grandes recuos em terrenos parcelados. A sua virtualidade, pelo menos do ponto de vista da arquitetura e de seus arquitetos, era a realização de uma espacialidade moderna própria e inovadora, não conflitante com a propriedade privada do solo urbano. Interesses do mercado e interesses arquitetônicos – disciplinares – pareciam ter encontrado no bairro de Higienópolis uma fórmula da modernização espacial brasileira, que agradava a todos. E esse foi o laboratório urbanístico “prático-sensivel” que irá orientar o urbanismo “ideológico” desse momento em diante, para usar termos lefebvrianos (10). A partir dos anos 1940 intensifica-se a atuação dos órgãos de planejamento da cidade por meio de legislação reguladora do zoneamento – exclusividade residencial de áreas nobres – e o uso e ocupação do solo – os recuos (11).

O concomitante avanço da ocupação de elite em direção à Av. Paulista e os bairros Jardins ajudou a alterar a configuração espacial do Bairro de Higienópolis. Esse momento de crise – imobiliária, mas vislumbrando uma nova oportunidade de acumulação via propriedade de solo urbano – promoveu, a partir dos anos 1930, o início de sua verticalização, apoiado – et pour cause – pelas modificações na legislação, como o Decreto-Lei no. 5481, de 25/06/1928, que criava as regras de formação de condomínios. Mas foi em 1937 que o bairro começa a definir uma outra tipologia de implantação de edifícios residenciais. Nesse ano, a lei 3.571, estabelece novas áreas exclusivamente residenciais que podem ser verticalizadas. Procura regular os locais que apresentavam tendência à verticalização, indicando um novo parâmetro de construção que determinava os recuos frontais e, em alguns casos, laterais (12). A tipologia que a cidade preparava para sua grande expansão associava verticalização, prevalência da lógica do lote em detrimento da quadra e, principalmente, a expressão da unidade edilícia subtraindo a expressão de uma ordenação geral do urbano (quadra, rua, áreas coletivas). Em aparente disparate, esse experimento urbanístico realizado em Higienópolis contou, para seu sucesso, com a estrutura urbana cuja espacialidade pública fora determinada pelo moldes urbanísticos da belle époque. Esse fato dificulta a aposta e o consenso de que aí existiu uma São Paulo moderna, no sentido idealizado pelos pressupostos de sua arquitetura e urbanismo modernos inerentes.

O edifício isolado no lote, impulso irrefreável da modernização arquitetônica ao enfrentar a realidade da metrópole, passa a orientar progressivamente o desenho da cidade e sua legislação urbana. Esse bairro, laboratório de criação das representações espaciais da metrópole moderna, permite aproximar, paradoxalmente, a implantação do palacete isolado burguês à torre residencial moderna, à brasileira.  Higienópolis não é o locus no qual uma hipotética boa arquitetura pode se expressar, mas uma equação que dá forma a um tipo de solução que foi definida como o modelo moderno a ser generalizado na metrópole paulistana e brasileira. A formulação moderna hegemônica, niemeyeriana, advinda da relação entre governo federal e cidade-paisagem, não poderia informar essa nova necessidade modernizadora com protagonismo do capital privado. A cidade de São Paulo produzia, assim, à sua maneira – elitista e privatista – uma alternativa para o desenvolvimento metropolitano brasileiro. É evidente que essa representação do espaço moderno da cidade era plena de contradições, ideológica que era. Mas é evidente que, neutralizadas essas, a torre residencial isolada em lotes, passa a inspirar os arquitetos e os urbanistas e a povoar a desordem fundiária das cidades.

Em 1933 ergue-se o primeiro edifício do bairro, o Condomínio Alagoas, esquina com a Avenida Angélica, com cinco pavimentos e duas lojas no térreo. Construído para uma mesma família, os apartamentos tinham 400 m2e o térreo comercial, no alinhamento das ruas, conforme a legislação em vigor. Em 1935, Jaques Pillon, sócio de Andrea Matarazzo, constrói o Edifício Santo André, com sete pavimentos e dois apartamentos por andar, ambos com frente para a praça Buenos Aires, esquina com a rua Piauí. Nesse mesmo ano, Rino Levi projeta o edifício Higienópolis, na rua Conselheiro Brotero no.1092. Com 5 pavimentos, mais a cobertura, sua implantação prevê um pátio em ambos os lados que permite um futuro acoplamento que permitiria a ventilação e iluminação das áreas de serviço dos 4 apartamentos existentes em cada andar (com exceção da cobertura, privilegiada com 2 apartamentos aproveitando a vista para o bairro do Pacaembu).

Dessa maneira, esse edifício considera uma continuidade volumétrica, sem afastamentos laterais, que caracterizava a legislação herdada do centro da cidade. Essa pesquisa que a arquitetura comercial estava realizando, procurando modernizar a ocupação nos lotes – que implicava certa separação volumétrica – vai sintonizar com a legislação já citada de 1937, que estabelece recuos laterais em algumas localidades do bairro. Edifícios como Buenos Aires (1938), Dona Veridiana (1940) e Maria Teresa (1940) e Santa Amália (1942) já se isolavam em meio ao lote, da mesma maneira que indicavam uma simplificação do estilo art déco, em direção às linhas ortogonais da arquitetura moderna (13).

Portanto, uma pesquisa inovadora da nova configuração dos edifícios na metrópole estava sendo realizada na confluência dos interesses dos investidores, dos legisladores e da arquitetura brasileira, desde seu início recolhida à expressividade do edifico, ainda que em vasta paisagem. A capitalização da ocupação territorial foi intensa na cidade a partir da década de 1930, recebendo os excedentes das riquezas do café, que buscavam valorização no novo estágio de acumulação que o processo de modernização industrial alcançava. Os debates sobre o modelo de urbanização, centrados na Escola Politécnica e nos órgãos municipais, também buscavam inovação a partir de modelos possíveis, entre a sprawl city e a metrópole congestionada (14). Da mesma maneira, a arquitetura brasileira formada na circunstância ideológica de criação do Estado Nacional na década anterior devia enfrentar o fato da metropolização da cidade de São Paulo a partir de suas premissas fundadoras – o nacionalismo e a identidade nacional. O bairro de Higienópolis foi o laboratório mais importante dessa ação conjunta que unificava ganhos econômicos e espírito modernizador. Um espírito cindido entre os modelos teóricos do urbanismo e os sucessos irreversíveis da arquitetura moderna nacional. Essa unificação estava sendo processada na máquina urbana de valorização. Essa associação vai se deteriorar nas décadas seguintes,  produzindo uma arquitetura virtuosa e social oposta a uma plenamente identificada com as modas mercantis. Nos anos 1940, contudo, indicou-se um acordo dessas forças modernizadoras que, mesmo depois de cindidas, deram fundamento estético para o tipo de ocupação deletéria que se expandirá por essa e outras grandes cidades do país: o edifício isolado no lote contra a rua, na produção de uma anti-cidade.

Edifício Louveira, vista interna. São Paulo, 1946, João Batista Vilanova Artigas

Um edifício particular

É a partir dessa pesquisa da nova configuração dos edifícios que deve ser compreendida a inovação do Edifício Louveira que Vilanova Artigas projetou em 1946. A inovação proposta pelo arquiteto, e amplamente apreciada, só pode ser compreendida a partir dos elementos dessa equação urbana na qual ele incidirá. Nesse momento, segunda metade dos anos 1940, o arquiteto conta com as soluções da arquitetura brasileira mainstream, de Lúcio Costa, Niemeyer e outros, com as experiências hesitantes dos conjuntos habitacionais dos programas dos fundos de pensão, e com os modelos internacionais aos quais se filiavam nossas conquistas espaciais modernas. Ao invés de recorrer à tipologia inercial em formação – o edifício moderno em meio ao lote com genética de palacete – Artigas aprofunda suas reflexões naquele momento de grande intensidade profissional e intelectual (criação da FAU USP, do IAB-SP, bolsa Guggenheim para os EUA, diversos projetos importantes em Londrina).

O arquiteto chega ao projeto do Edifício Louveira em meio a um percurso curioso, pois, tendo sido influenciado por Frank Lloyd Wright no início de sua carreira, passa a adotar soluções corbusianas filtradas pela leitura dos mestres cariocas durante os anos 1940. Essa decisão, já bastante discutida, interessa aqui na composição da equação que vai resultar em alterações peculiares nesse vocabulário e que vão preparar  as suas soluções radicais dos anos 1950. A pesquisa espacial de Vilanova Artigas se orienta por um vetor que possibilita encontrar coerência nessas diferentes expressões arquitetônicas, e que dá destaque especial à sua obra. Ele buscava definir uma espacialidade nacional, que poderia ser expressa idealmente por uma arquitetura nacional – eis aí uma primeira dificuldade de alcance, pois o caminho para a generalização inicia na particularidade das questões que envolvem a dinâmica da unidade estético-construtiva (15). Essa era sua pesquisa e a adoção de tal ou qual solução deve ser entendida nessa busca, em sintonia com o projeto de desenvolvimento nacional e com as tarefas intelectuais da geração da formação. Esse vetor se radicaliza durante os anos 1950, diante das dificuldades que a metrópole brasileira apresenta às tentativas de totalização formal. O embate entre a aposta na arquitetura moderna – o que equivale ao plano territorial –, a busca por uma especificidade local – o que equivale ao papel do Brasil na divisão de trabalho internacional em jogo nas macro alterações da geopolítica produtiva do segundo pós guerra – e as resistências sociais e históricas à grande cidade – a ordem pública e socialmente modernizada diante das estruturas arcaicas da modernização conservadora – moldaram o concreto da obra desse arquiteto.

A espacialidade nacional consagrada pelo sucesso na década de 1940 da arquitetura brasileira, liderada por Oscar Niemeyer, prescindia da realidade urbana em formação do Brasil unificado politicamente no período varguista. Tal unificação identitária envolvia emblemas nacionais populares, sintéticos e nítidos. As alegorias da nação se fizeram todas presentes depois da Pampulha: a paisagem exuberante, o barroquismo atávico, a beleza miscigenada (“de perna fina e cara lavada”), a figura-fundo inequívoca dos palácios do poder e da dolce vitta. Nenhuma realidade social podia participar dessa formulação, nem as dificuldades produtivas e técnicas – sublimadas na ousadia do cálculo – tampouco qualquer expansibilidade urbana – plano ou não – desses objets trouvés. Essa alienação arquitetônica em relação à realidade sócio-urbana não pode mais ser sustentada quando a metrópole paulistana passa a centralizar a dinâmica econômica nacional. Isso fica claro nas tentativas de conciliação entre vaguidão contemplativa e fragmentação fundiária realizadas por Oscar Niemeyer na cidade, especialmente no projeto do Copan. A curva livre esgueira-se pela irregularidade formal da propriedade, tentando indicar uma não contradição entre o esquema pensado na paisagem idealizada e a metropolização intensificada dos anos 1950, desordenada e sem o controle urbanístico por “princípios artísticos”.

Era necessário uma mudança de paradigma espacial, que atualizasse a arquitetura em ralação a novos problemas (16). O Louveira situa-se a meio caminho dessa pesquisa que se iniciou já na casinha (1942) e que terá no projeto para a FAU USP sua conclusão. Ele não constitui um avanço em relação às inovações alcançadas  na unidade ético-espacial da “casa”. Mas o fato essencial de ser um edifício – ainda que de “casas” – coloca questões que podem ser interessantes observar, principalmente para quem busca compreender a arquitetura brasileira confrontada com o déficit de “forma urbana”, novamente na acepção não formal de urbanidade de Henri Lefebvre.

O Louveira constitui uma espacialidade híbrida, consideradas as dinâmicas constitutivas da modernidade arquitetônica, do “tipo” e da “unidade”. Principalmente se pensadas a partir de sua transposição para o Brasil, por meio da obra de Le Corbusier. Do Ministério da Educação e Saúde Pública – MESP à Pampulha, e à grande disseminação durante os anos 1940 do esquema niemeyeriano, pode-se pensar em uma utilização prioritária do esquema “palácio”, excepcionalidade tipológica tanto da cidade moderna quanto da cidade burguesa do século 19. Esse paradigma espacial nacional pode ser resumido na tensão social entre a concentração sígnica e espacial do palácio, pressionada pelos vetores de expansão formal da célula construtiva na cadeia de montagem industrial. Contradição formal de conteúdo social flagrante. Se na versão hegemônica do esquema nyemeyeriano, os volumes desmembrados criavam jogo fechado e abstrato, com limites espaciais definidos por seu estatismo associal, o enfrentamento da questão habitacional deveria recorrer à seriação: a casa tornou-se o lugar da contradição moderna do país. Artigas constrói esse silêncio no Louveira. Não existem duas lâminas possíveis, assim como não existem duas “casas” (como pretendeu Paulo Mendes no Butantã). Ao procurar estabelecer um padrão de repetição – homogeneidade, racionalidade e indústria – o projeto do Louveira colide com o lote Burchard, e portanto apenas formaliza essa inadequação.

Se considerarmos que o Bairro de Higienópolis, como dissemos, estava definindo um padrão urbanístico que aproximou dinâmicas distintas (empreendimento, urbanística e disciplina arquitetônica), a decisão tipológica estabelecida no Louveira, curiosamente denominado “edifício Louveira”, ainda que com dois volumes bem destacados, é uma alternativa crítica ao que se produzia. Tanto no que se refere aos edifícios contíguos – de tipologia tradicional – quanto às torres residenciais isoladas, que começavam a se generalizar pelo bairro e que se tornariam o modelo padrão da ocupação urbana nas metrópoles brasileiras (unificando as três dinâmicas apontadas). O Louveira constituiu uma excepcionalidade na obra desse arquiteto e uma raridade na paisagem da cidade. Isso pode indicar o hibridismo improlífero que ali se estabeleceu, ao procurar uma correção de rumos do esquema niemeyeriano-corbusiano com o qual dialogava. O próprio Niemeyer chegara à mesma conclusão no início da década seguinte, em sua experiência paulistana, mas por rejeição à cidade sem controle formal. O caminho de Artigas, pelo menos é o que indica inequivocamente a proposta construtiva do Louveira, foi acertar contas com os princípios seriais – e consequentemente sociais – a que estava ligada formalmente por origem a arquitetura brasileira.

É portanto de um insucesso que se trata, na medida em que a alternativa moderna à cidade não estava colocada por nenhuma das forças sociais operantes, e tampouco a disciplina poderia, em seus termos contraditórios, indicar essa possibilidade (repetição e plano urbano). Também a experiência dos IAP’s enfrentavam, pelo lado fraco da corda, questão similar. Em glebas baratas, as lâminas se dispunham segundo a mais desispiritualizada funcionalidade econômica, traduzindo a operação financeira da qual eram estágio material intermediário. As exceções de praxe consistiam nos belos edifícios independentes, como o Anchieta (1943) e o Japurá (1947), não por coincidência, em áreas centrais e valorizadas da cidade. Ou seja, a solução em lâmina repetida servia não para traduzir uma expansibilidade radieuse do espaço moderno, da  nova Grossstadt – uma lógica geral do espaço que unificava unidade construtiva e plano – mas para extrair produtividade econômico-industrial e segregação – novamente seguindo Lefebvre em sua crítica aos grands ensembles.

O projeto do Louveira opta pela duplicação, afastando-se conceitualmente das torres habitacionais modernas que erguiam-se sobre o terreno dos palacetes demolidos de Higienópolis. Estas, afastadas dos limites do terreno, multiplicavam em altura a mesma lógica das anchas casas, despreocupadas portanto com elementos de conexão hipotética, como é o caso das empenas laterais das lâminas-tipo da arquitetura moderna. Janelas buscavam o melhor sol, sendo que este não determinava mais o ângulo do volume, submetido ao retângulo do lote, ajeitado economicamente à via. Os lotes generosos permitiam por vezes afastamentos e recuos maiores, em lógica desdobrada da genética do casarão (frontalidade e nitidez). Esses edifícios modernos, assim paradoxalmente construídos, tornam-se emblema e modelo para o bairro e para a cidade. Exclusividade e modernidade, novo hibridismo entre lâmina habitacional e arranha-céu americano. Estamos no universo formal do entre-guerras, em alteração aqui e alhures em busca de uma nova universalidade, um novo estilo geral. Mies nos EUA, e Le Corbusier em Marselha criariam, passado o susto da guerra que paralisou a imaginação arquitetônica, novas formas construtivas da habitação e sua relação com uma cidade não mais passível de ordenação unificada e totalizadora. Algo similar se passava por aqui precocemente, numa liberdade criativa típica da apropriação dos significantes aliviados de significados indesejados. A isso reage o Louveira, mas com esperanças retrovertidas, a buscar, com muita dificuldade, a criação de um espaço abstrato e homogêneo moderno em plena exclusividade burguesa. Ou melhor: impor, ou justapor, uma espacialidade técnica e “tipo”, a uma estrutura burguesa dominada pela lógica da propriedade, restritiva, e seu imaginário antinômico pré-fordista.

As lâminas, duas, são então assentadas por meio das suas exigências intrínsecas, confrontadas com conjuntura desfavorável. Em acanhado sítio, a distância máxima resulta dos limites sem recuo do terreno de esquina, favoravelmente, e dos recuos com os terrenos lindeiros, desvantajosos. Esse é o primeiro desconforto espacial, consideradas as lógicas distintas se ajustando. Reafirmando essa geometria abstrata dos dois edifícios, as laminas se repetem em volume e disposição. Isso quer dizer que o paralelismo segue uma coordenada de inserção que torna idênticas as arquitetura, relativas ao procedimento geométrico. E, claro, à máxima espacial da orientação, também esta exigindo, por lógica, o paralelismo da boa insolação. A implantação do Louveira resiste, portanto à tentação de espelhar as unidades potencializando o específico, o lugar, a praça. Bem como resiste à disposição dos cômodos privilegiados em direção à vista do vale (SW), o que tem feito muita reforma para capturá-la à área social. Tanto o não espelhamento quanto a orientação seguem a mesma estratégia de implantação: a relação funcional, abstrata e inovadora – moderna – com o espaço, anulando as especificidades do lugar. Essa estratégia, inclui – para o desdobramento lógico necessário – a praça.

Desde o MESP, inaugurado nesse momento em que o Louveira era construído, o pilotis se transformou em pièce de résistance da arquitetura brasileira. As possibilidades espaciais contidas nesse elemento que portaria o urbanismo para o edifício foram exploradas pelos arquitetos brasileiros de maneira, provavelmente, não autorizada pela lógica dominó. No Ministério, o espetacular trompe-lóeil do jogo de colunas monumentais de alturas similares e funções diferentes, resulta da unificação apenas visual da estrutura da lâmina principal e a do salão de exposições. Da mesma lição expressiva, o térreo do Louveira concentra uma complexidade espacial que mostra a perícia do arquiteto, em confronto com a regularidade tanto das lâminas acima, quanto com o princípio que regia o “pilotis”, um dos cinco pontos da arquitetura moderna. Considerando as limitações urbanísticas – a altura máxima em relação à rua – e as necessidades do empreendimento – o número máximo de unidades – o térreo é “único”. Mesmo a duplicidade volumétrica se anula na inversão do pé-direito único entre frente e fundos. É de particularidade que se trata a operação, dando pleno sentido ao paradoxo semântico do nome: o Edifício Louveira.

A oposição particular-universal, que rege esse e outros grandes projetos do arquiteto, não se resolve formalmente, como não se resolvem socialmente, na versão contraditória da modernização conservadora, que antecipa conflitos atuais e globais. Mas é importante enfatizar que unicidade, em oposição ao serial, não implica sentido de “lugar”, contraposto ao espaço abstrato moderno. No Louveira existe uma reflexão que encontrará similar na década seguinte em Mies da Seagram, mas nesse caso com potência de produto, tornando-se mesmo “internacional”. Regularidade, industrialização (mesmo que seja de bronze), modulação e espaço infinito tem que se haver, nas “tarefas marginais da arquitetura” (17), com o lote, a quadro, o grid. No Louveira, uma angústia bem menos materialista põe os elementos da equação em fila, sem função ou fórmula. Mas tem o mesmo problema estético de fundo, ou seja, a passagem formal entre o mundo do plano e a realidade urbana e social da metrópole. O pilotis resolve a realidade: a garagem, a entrada anunciada, as unidades extras – estranhas ao purismo tipológico – e, principalmente, o vazio finito. E o recuo entre as lâminas adquirem um novo sentido não geométrico, ou seja, um vazio localizado, definido e estratégico na composição. O pilotis, que tem função primeira de isolar a lâmina para além das irregularidades da natureza, aqui acomoda um desnível, que era suave e se transforma em subsolo “aberto”. Um muro de arrimo divide, paralelo à praça, o térreo em dois níveis, visível apenas do estacionamento. Consegue assim que a área verde coexista com a necessidade de estacionamento, sem que essas funções se contaminem formalmente. A praça Vilaboim não entra no edifício. O vazio restrito se amplia fagocitando a praça para a função de fundo restrito. A fim de alcançar um vazio necessário ao esquema, mas destituído de universalidade. Uma versão de cidade parque em formato resumida, não exemplar. Mies, fugindo dos volumes, enfatizando os planos, transforma o lote, quase uma quadra, em plano horizontal que o espelho d’água desmaterializa e estende. Resolve socialmente a nova função da arquitetura da metrópole. O Louveira, puro volume, busca o verde-parque, o jogo sábio, que Niemeyer explorava na folga estatal. Aqui, na cidade particionada, a folga é pouca, a paisagem outra. A praça, por recursos de grande virtuosismo, é internalizada como vazio. Não existe o movimento contrário, de integração ao entorno urbano. Para além da ironia do arquiteto, quando diz que a relação com a praça é comentário de amigos (18) as enfáticas empenas cegas voltadas para a praça reafirmam a relação espacial abstrata desejada.

O inusitado – e o enigma de que tal performance arquitetônica não tenha replicado – pode ser explicado por essa tensão raramente alcançada na arquitetura a partir de um único artefato. O duplo e o único – e os vetores sociais implicados nesse mal-estar moderno – se apresentam com clareza. O conflito entre o urbanismo Burchard e o espaço do plano convivem com tensão que se espalha por toda a solução arquitetônica. Mas essa tensão não é formal, é estética e social. Industrialização e cultura rústica, o edifício e a casa, o contrato e os afetos estão procurando definir um espaço nacional. Essa é a obra de Artigas: enfrentar essa impossibilidade histórica, na medida em que avanço e atraso, na conjuntura desenvolvimentista nem se chocavam nem harmonizavam, apenas se auto-digeriram em funções sistêmicas e não “culturais”, uma destruição não criativa.

notas

NA – Agradecimentos ao CNPq, pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa; ao fotógrafo Nelson Kon, pelas imagens do Edifício Louveira.

1
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 2010.

2
“Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decrepitude sem conhecer a civilização. Poder-se-ia, com mais acerto, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do viço à decrepitude sem parar na cidade avançada”. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 91.

3
Completar os benefícios do bairro Higienópolis: grandeza de um bairro paulistano. HOMEM, Maria Cecília Naclério. Higienópolis – grandeza e decadência de um bairro paulistano. São Paulo, Edusp, 2011.

4
Idem, ibidem.

5
REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo: vila, cidade, metrópole. São Paulo, Via das Artes, 2004.

6
OLIVEIRA, Francisco de. O estado e o urbano no Brasil. Espaço & Debates, v. 6, Neru, São Paulo, p. 36, 1982.

7
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Editora 34, 2007.

8
SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo, 1920-1939. São Paulo, Edusp, 1997.

9
Idem, ibidem.

10
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 4a edição. São Paulo, Centauro, 2001.

11
FELDMAN, Sarah. Planejamento e zoneamento: São Paulo, 1947-1972. São Paulo, Edusp, 2005.

12
A lei 3571, de 07/04/1937, em seu artigo primeiro diz: As exigências do corpo do artigo 40 do Ato 663 são aplicáveis ás avenidas Paulista, Higienópolis, Angélica, Pedro I, Pompeia e rua Maranhão, mantidos os recuos estatuídos em lei.” Em seu artigo terceiro, diz: “Nas vias públicas para as quais vigoram as disposições citadas no artigo 1º, só serão permitidas construções coletivas (casas de apartamentos) quando afastadas no mínimo três metros das divisas do lote, devendo as fachadas laterais e posteriores receber tratamento arquitetônico idêntico ao das fachadas principais”.

13
Apesar desses edifícios não estarem situados nas avenidas descritas na legislação de 1937, todos eles se valem de recuos laterais. Seria interessante investigar as razões disso. Uma tendência geral, entendida como um avanço em termos de qualidade da saúde das edificações, reconhecida pelo mercado emergente? De qualquer maneira trata-se do progressivo afastamento do edifício de suas determinações urbanas mais gerais, submetidas à morfologia, em direção à sua independização estética o objetual.

14
TAFURI, Manfredo. La esfera y el laberinto: vanguardias y arquitectura de Piranesi a los años setenta. Barcelona, Gustavo Gili, 1984.

15
A relação sempre retomada com Frank Lloyd Wright deve ser entendida por essa pesquisa de definir um espaço social moderno e não europeu, americano, nas circunstâncias outras de subdesenvolvimento.

16
MEDRANO, Leandro; RECAMAN, Luiz. Vilanova Artigas. Habitação e cidade na modernização brasileira. Campinas, Editora da Unicamp, 2013.

17
TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia: Design and Capitalist Development. Cambridge, The MIT Press, 1979.

18
FERRAZ, Marcelo (org.). Vilanova Artigas. São Paulo, Instituto Bardi, 1997.

sobre os autores

Leandro Medrano é professor doutor associado do Departamento de História e Estética do Projeto da FAU USP. Autor do livro “Vilanova Artigas. Habitação e cidade na modernização brasileira”.

Luiz Recaman é professor doutor do Departamento de História e Estética do Projeto da FAU USP. Autor do livro “Vilanova Artigas. Habitação e cidade na modernização brasileira”.

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191

191.01 crítica

Vilanova Artigas e o edifício da FAU USP

A formação dos espaços de formação

Rafael Antonio Cunha Perrone

191.02 urbanismo

Planejamento urbano enquanto campo de disputa de poder

O caso do PDDU de Salvador BA

Thaís de Miranda Rebouças

191.03 patrimônio

Património e paisagem

Os edifícios religiosos enquanto marcos no território nas vilas marítimo fluviais do litoral português de Entre-douro-e-minho: Vila do Conde e Azurara

Cláudia Cristina Gomes Duarte

191.04 crítica

La post-modernidad creando ciudades monótonas en Europa y en Brasil

Una propuesta metodológica de proyecto para ayudar a cambiar este escenario

Euler Muniz

191.05 crítica

Paredes Pinturas e o fim da autoria

Regis Filho, Pedro Aniceto and Cláudio Silveira Amaral

191.06 desempenho

Avaliação do ciclo de vida energético (ACVE) de uma habitação

Estudo para diferentes cenários considerando as etapas do berço ao túmulo

Lucas Caldas, Gilson Pedroso and Rosa Maria Sposto

191.07 ensino

Prática de ensino de planejamento urbano e regional

Desenho como ferramenta de discussão e agentes como protagonistas

Jonathas Magalhães Pereira da Silva, Denio Munia Benfatti, Tomás Moreira and Joana A.Z.M.T. Ribeiro

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