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architexts ISSN 1809-6298


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Reflexão da migração do dispositivo cinema para os espaços da arte, com o objetivo de observar as modificações ocorridas nesse dispositivo, focando a relação entre projetor / imagem projetada / arquitetura do espaço expositivo / corpo do espectador.


how to quote

NUNES, Ellen de Medeiros. De outros cinemas. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 196.03, Vitruvius, set. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.196/6223>.

Prólogo

O ensaio é voltado à reflexão da migração do dispositivo cinema para os espaços da arte, com o objetivo de observar as modificações ocorridas nesse dispositivo, focando a relação entre projetor / imagem projetada / arquitetura do espaço expositivo / corpo do espectador. Pressupõe-se aqui que o cinema expandido antecipa muitas das problemáticas que norteiam a produção norte-americana das décadas de 1960 e 1970. Este momento marca a passagem da escultura moderna para a contemporânea, que, sob a influência do minimalismo, abstracionismo e arte conceitual, quebra os cânones sob os quais a escultura moderna se assentava e funda novas relações espaciais. Essa apuração se dá por meio da leitura de Between the black box and the white cube de Andrew V. Uroskie, Modern sculpture reader organizado por John Wood, David Hulks e Alex Potts (1), O complexo arte-arquitetura de Hal Foster, A escultura no campo ampliado (2) e Passages de Rosalind Krauss (3), No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte de Brian O’Doherty (4), The experience machine: Stan VanDerBeek’s movie drome and the expanded cinema de Gloria Sutton e Between the black box and the white cube de Andrew V. Uroskie. Para demonstrar esta hipótese trago a obra Line describing a cone de Anthony McCall, Shutter interface de Paul Sharits e Movie drome de Stan VanDerBeek. Todas as obras foram estudadas a partir de textos escritos pelos próprios artistas.

A espacialização da arte internacional e a imagem projetada nos Estados Unidos

A mudança de paradigma da sociedade industrial para a sociedade de serviços marca a passagem para o pós-modernismo. Essa mudança é produto da crise em vários campos da sociedade, que inclui a economia, a cultura e o meio ambiente. O declínio do papel do Estado promove uma organização da sociedade mais horizontalizada. Esse período do capitalismo tardio é marcado por profundas transformações políticas, culturais e comportamentais em todo o mundo.

Nesse contexto, o circuito artístico internacional é deslocado da Europa para ser representado pela produção norte-americana. A crise da arte nesse período está circunscrita na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, quando ocorre uma ruptura definitiva e drástica com o cânone da escultura e um esgarçamento dos conceitos de todas as categorias artísticas.

A presença expressiva e o deslocamento do dispositivo cinema das salas escuras de projeção para os espaços da arte se deu durante esse período, articulando a problematização dos três níveis de agenciamento desse dispositivo em uma nova instituição, a arte. Segundo Michel Foucault, um dispositivo possui três níveis de agenciamento: o primeiro se refere ao conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e poder; o segundo alude à natureza de conexão entre esses elementos heterogêneos; e o terceiro atribui a formação discursiva em sentido amplo, resultante das conexões entre os elementos (5).

A abertura das instituições de arte para o dispositivo cinema tangencia o pensamento escultórico sobre espaço, forma, gravidade e materialidade, que ganhou corpo a partir dos anos 1950, em conjunto com a reinvindicação das categorias escultura, pintura e desenho. Nesse momento, práticas e conceitos foram esgarçados, e aconteceu um transbordamento de tal ordem, que uma forte decisão contra esses suportes foi tomada (6).

Até o século 19, a categoria escultura foi associada à lógica do monumento, que remete a uma representação comemorativa, situada em determinado lugar, que fala de forma simbólica sobre o significado ou uso desse local. É a lógica do marco, normalmente associada a representações figurativas e verticais, onde o pedestal faz a mediação entre o local onde se situam e o signo que representam. No final do século 19, essa lógica já começa a ser tensionada, mas é durante o período pós-guerra, primeiro na década de 1950, e de maneira mais acentuada na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, que ocorreu uma ruptura definitiva e drástica com o cânone da escultura. Ela deixa de ser autorreferente e passa a se relacionar com outras mídias, marcando o fim do objeto autônomo escultural. O conceito de escultura, alusivo ao domínio da forma, do volume e da massa que interrompe a continuidade do espaço, torna-se excepcionalmente amplo, e passa a incluir as práticas modernas, que revelam uma produção abstrata, de esculturas que aparentam não ter peso, negando, assim, a massa e a solidez da tradicional escultura monolítica (7).

Os movimentos artísticos desse período, como a arte pop e o minimalismo, operam em direções opostas. A arte pop americana do começo da década de 1960 se apropria da mídia circundante para tornar mais aparente as suposições e as funções arquitetônicas e artísticas, enquanto o minimalismo do final dos anos 1960 utiliza-se de estratégias formais em operações anti-ilusionistas, objetivamente factuais e neutras. Em ambos os casos, as estratégias revelam-se na arquitetura do cubo branco, no interior dos museus e das galerias e nos trabalhos de arte.

O minimalismo alude a uma clareza de objetos de conteúdo mínimo, derivados de uma fonte não artística, seja natural ou industrial. Durante o período em que se desenvolveu esse movimento artístico, a escultura absorve seu pedestal. Sem base e sem lugar, torna-se extremamente autorreferente, e seu significado e função passam a ser mutáveis. Sua autonomia é exposta pela representação de seus próprios materiais e pelo seu processo de construção. É uma crítica à noção de forma pelo recurso à noção de série feita pelo desvio em direção ao processual e ao temporal, onde o tempo de concepção está explícito. Sua produção busca suprimir tanto as relações interiores (ilusionistas) quanto exteriores (de representação), para atingir o nível zero de significação.

A arte pop diverge do minimalismo por operar na paródia de clichês culturais pré-condicionados pela mídia; sua produção arquitetônica e artística emprega simultaneamente técnicas e temas populares. São obras que não podem ser assimiladas de imediato pelas instituições de “cultura mais elevada”, ao mesmo tempo que não podem ser absorvidas pelo sistema de valores da cultura popular comercial por causa de seu apoio seguro nas “artes mais elevadas” (high arts). São, portanto, a combinação por fusão ou por colagem de signos vernaculares e ambientais com signos artísticos e arquitetônicos.

Uma nova perspectiva na estética escultural emerge quando a cultura popular comercial é absorvida, mesmo que como crítica, no sistema das high arts, ao mesmo tempo que a escultura é considerada um fenômeno existente no mesmo espaço do espectador, e não mais um objeto modernista autossuficiente. Como resultado da negação do objeto autônomo e da infiltração da cultura popular nas instituições de arte, surgem operações de espacialização que exploram o ambiente, e outras mídias e interações determinadas por ele e o espectador.

Na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, os artistas enfrentam, em diferentes contextos, profundas transformações políticas, institucionais, tecnológicas, econômicas e, consequentemente, dos modos de perceber o mundo ao seu redor, redefinindo assim a própria atuação artística e a natureza da arte. Textos escritos pelos próprios artistas revelam sua presença decisiva no debate crítico do período, bem como a nova dimensão que a crítica alcança. A definição da arte, as novas relações que se estabelecem entre as categorias e entre a arquitetura, o processo de produção da obra, o local de exibição, posicionamentos políticos, ideologias, possibilidades de participação e novas mídias são abordados pelos artistas e apontam possíveis caminhos para a arte. Essas transformações mudaram o modo de existência e o modo de percepção; acometeram a produção e a recepção da obra de arte.

No texto “A escultura no campo ampliado” (1978), Rosalind Krauss afirma que a categoria escultura no campo ampliado não remete à mídia utilizada, mas à lógica que move artistas e trabalhos de arte em direção à escultura como uma construção cultural, descrita por meio de uma variedade de instalações espaciais e arquitetônicas, junto com sua documentação formada por textos, fotografias e filmes.

Deslocado das questões exclusivamente formais, acabadas e visuais, a escultura no campo ampliado é levada ao seu extremo oposto, a ponto de nem mesmo precisar existir fisicamente. Uma das implicações da negação do objeto escultórico nesse período é a desmaterialização do objeto. Outras contraposições acontecem nesse deslocamento: a materialidade-espacialidade da escultura, da arquitetura e da pintura e a transitoriedade narrativa da imagem audiovisual se entrecruzam. Do mesmo modo, a materialidade dos diferentes suportes tecnológicos próprios da imagem em movimento entra em diálogo tanto com a função de preservar a memória, própria do museu, quanto com a presença física e a experiência espacial, associadas ao campo tradicional das artes plásticas. Nesse contexto, constata-se uma espécie de permuta entre as duas áreas: a arte oferece uma nova dimensão experimental ao cinema, ao passo que o cinema apresenta para a arte um novo meio (mídia).

O experimentalismo é uma condição do início do cinema, já que o novo pressupõe experimentação. Suas formas pioneiras como a lanterna mágica, os aparatos óticos, o cinema de atrações, assim como as montagens inauguradas por sua linguagem eram associadas à fotografia, à pintura, ao teatro e à literatura. No entanto, com a consolidação do cinema modelo (Dubois) nas primeiras décadas do século 20, essas práticas, assim como os espaços que contavam com arquiteturas exclusivas, como Panoramas e Dioramas, tornam-se obsoletos (8). O cinema modelo estabelece um circuito em função das demandas da indústria do entretenimento. A partir delas, define-se uma forma de exibição, caracterizada, em termos gerais, por ocorrer em uma sala escura, cuja arquitetura se assemelha à do teatro italiano, com poltronas voltadas para uma única e grande tela horizontal, a projeção de uma imagem em movimento e uma narrativa influenciada pelo romance literário, com duração que varia entre 60 e 90 minutos.

Algumas experiências dadaístas e surrealistas contaram com a projeção de filmes nos circuitos artísticos na década de 1920, mas, de forma geral, o cinema se mantém distante da esfera das “artes mais elevadas” (high arts). No entanto, nas décadas de 1960 e 1970, a presença do dispositivo cinema é fundamental para a discussão das questões espaciais, que, até a ruptura do cânone da escultura, ficava restrita às manifestações tradicionais de sua categoria. É nesse deslocamento das salas de cinema para os espaços de arte, como museus e galerias, que o dispositivo cinema experimenta novas espacialidades, novas arquiteturas, novas narrativas e novas estratégias de interação.

Anthony McCall, Paul Sharits e Stan VanDerBeek são artistas que atuam no debate crítico do período no que concerne ao deslocamento do dispositivo cinema dos espaços tradicionais para os da arte por meio de suas obras e reflexões críticas. Line Describing a Cone (1973) de Anthony McCall, Shutter Interface (1975) de Paul Sharits e Movie Drome (1965) do artista Stan VanDerBeek são obras que utilizam em sua construção elementos desse dispositivo – projetor, superfície de projeção, espaço escuro, filmes –, mas produzem alterações na forma dominante de exibição que citamos anteriormente.

São trabalhos artísticos realizados a partir do projetor de filmes, nos quais o elemento principal é imaterial, a luz, e que estabelecem uma relação na qual o espectador é imerso na atmosfera da obra. Esses artistas criam espaços de realidades plurais compostos por camadas físicas e virtuais que são atravessadas pelo corpo. A obra é uma construção constantemente atualizada pela experiência do participador, e busca romper antigas limitações dominantemente óticas e contemplativas da recepção visual da imagem plana para conduzir a experiência do público a outras formas de relacionamento.

Line Describing a Cone, Anthony McCall

Anthony McCall, Line Describing a Cone, 1973. Litografia em offset sobre papel
Imagem divulgação

Embora a desmaterialização da obra de arte pressuponha a qualidade de algo que está além de sua presença física, o artista Anthony McCall (1946) trabalha a imaterialidade na constituição mesma das obras, tratando o imaterial como matéria, explorando estados físicos intermediários que se revelam em volumes e espessuras transitórios, afirmando o caráter instável, efêmero e até mesmo inatingível por meio da luz projetada.

Line Describing a Cone sendo projetada no Artists Space, Nova York, 1974
Imagem divulgação [Art Licks / eventos]

Sua obra Line Describing a Cone (1973) opera na fronteira entre cinema, escultura e desenho. É o primeiro trabalho de uma série de obras conhecidas como filmes de luz sólida (solid light films), onde o artista cria a ilusão de formas tridimensionais por meio da projeção de feixes de luz. É o primeiro trabalho em que implementa a relação entre público e obra utilizando o filme como meio. O espectador assiste ao filme em pé, com as costas voltadas para o que normalmente seria a tela, e olha ao longo do feixe de luz para o projetor. O filme começa como uma reta de luz, que se transforma durante 30 minutos em um cone oco e completo (9).

Line Describing a Cone trata diretamente do fenômeno da luz projetada; não estabelece referenciais externos para se configurar. É uma experiência que existe somente no tempo real, no espaço real, tridimensional. Não há estratégia ilusionista empregada. Os filmes de luz sólida nos convidam a pensar os parâmetros arquitetônicos de certo locais. Exibidos em espaços empoeirados onde as pessoas fumam, ficava visível justamente por causa das partículas de poeira e da fumaça dos cigarros.

O filme existe somente no presente: o momento da projeção. É uma experiência primária, não secundária: o espaço é real, não é relativo; o tempo é real, não é relativo. Trata-se, portanto, de uma obra que existe apenas dentro de um modo de presente contínuo compartilhado com a plateia.

Anthony McCall. Line Describing a Cone, 1973. Tinta sobre papel
Imagem divulogação [Art Net News]

O espectador tem um papel participativo na apreensão do evento. Ele pode − aliás deve − relacionar-se com a forma luminosa que se desenvolve lentamente. Anda em torno, entra e sai da projeção. O corpo é a medida básica das dimensões das projeções de McCall, que assumem a escala corporal humana e impelem à movimentação segundo a luz que se desloca no espaço. O espectador interage com o filme como se esse fosse o seu sujeito. A primazia da referência corporal e o fato de o filme esculpir volumes no espaço são traços em comum com a escultura.

O cineasta experimental americano Paul Sharits (1943-1993) articula em sua pesquisa e produção aspectos específicos de elementos internos, operando uma construção a partir da realidade física da película – suas passagens, fragilidade, perfurações e bidimensionalidade. As primeiras produções como cineasta consistem em trabalhos de desconstrução da linearidade narrativa (10). Assim como os grupos de cineastas independentes que produzem filmes experimentais entre os anos 1960 e 1970, suas obras são uma crítica ao cinema de massa e trazem uma compreensão expandida das possibilidades fílmicas.

Shutter Interface, Paul Sharits (11)

Paul Sharits, Estudo 4: Shutter Interface, 1975
Imagem divulgação [Website Paul Sharits]

Seus primeiros filmes, Ray Gun Virus (1966), Piece Mandala/End War (1966), Razor Blades (1965-68), N:O:T:H:I:N:G (1968) e T,O,U,C,H,I,N,G (1968), possuem uma abordagem lógica e matemática, no sentido em que o artista os aproxima da música. Essa construção segue a estrutura das partituras musicais, o que lhe possibilita se afastar dos aspectos de representação do cinema. Sharits, que começou a carreira como pintor, foi o primeiro cineasta a explorar fotogramas coloridos. O artista constrói seus filmes utilizando a técnica de flickr, na qual quadros distintos, cada um com uma cor diferente, parecem se fundir ou ressaltar sua alteridade. Dessa maneira, aproxima-se da continuidade entre a visão e a audição presentes na experiência fílmica, construída através de equivalentes operacionais de acordes musicais.

Em 1975, Sharits elabora um texto reflexivo sobre sua produção (12), no qual descreve sua pesquisa em torno das questões estruturais do cinema em sua própria materialidade: a película. Nesse período, Sharits agrega à sua pesquisa a questão da espacialização da imagem. Para explorar essa dimensão, trabalha instalações com projeções e telas múltiplas, a fim de maximizar o impacto da diferença da pulsação cromática na retina.

Paul Sharits, Shutter Interface, 1975, na exposição ColorForms no Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, 2011
Imagem divulgação [Website Paul Sharits]

Paul Sharits, Shutter Interface, 1975, na exposição ColorForms no Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, 2011
Imagem divulgação [Website Paul Sharits]

 

Shutter Interface foi exibida em 1975 e é composta por quatro projetores de 16mm posicionados sobre pedestais justapostos em frente a uma parede. Quatro filmes com durações diferentes intercalam fotogramas de cores diversas e fotogramas da cor preta. As imagens são projetadas diretamente na parede com as laterais sobrepostas, produzindo quatro retângulos com padrões de cores diferentes e uma intersecção entre eles onde os matizes se misturam. São fluxos cromáticos que geram diferentes combinações. O sistema de fecho rotativo do projetor, que tradicionalmente gera a ilusão de movimento cinematográfico, transforma os quadros de cor sólida em uma hipnótica panorâmica com imagens sucessivas e oscilantes. Como os filmes variam de comprimento, são criadas novas combinações de cores, que são exibidas em loop. Os quadros pretos intercalados aos coloridos dos rolos de filme criam um efeito ótico pulsante, que é amplificado quando sincronizado com os tons de alta frequência dos ruídos dos projetores.

O campo panorâmico formado pelas imagens sobrepostas ecoa o formato do CinemaScope. Sobre a obra de Sharits, Rosalind Krauss escreveu: “estamos tangenciados pela ilusão, conscientes de seu dispositivo: projetor/projetado; consciente dos mecanismos que estão mais próximos do nascimento da ilusão.”

Assim como os outros trabalhos de Sharits, Shutter Interface foi concebido como instalação para ser exibida nos circuitos de arte, fora do contexto do cinema. Seus filmes questionam a habilidade do dispositivo fílmico de produzir trabalhos a partir do uso de componentes básicos do filme, como velocidade, cor, luz, escuridão e som, em um contexto oposto, de característica anti-ilusionista. Sharits explora a relação entre consciência e percepção, e refere-se à perda da representação ao assumir como um compromisso a exibição dos códigos físicos e óticos da experiência cinematográfica, buscando, por meio de seus trabalhos, produzir um efeito no sistema nervoso que reverbera através do corpo.

Movie Drome, Stan VanDerBeek

Stan VanDerBeek na frente, Buckminster Fuller atrás e Movie Drome ao fundo, Stony Point, Nova York, 1965
Foto fivulgação [Website de Stan VanDerBeek]

Movie Drome (1957-1965) de Stan VanDerBeek (1927-1984) é uma estrutura para visualização de imagens constituídas de uma rede de informações por meio de múltiplas projeções. Para abrigar essa experiência foi construído um domo geodésico de 9,5 metros de altura em Rockland County, condado próximo ao norte de Manhattan. O projeto foi idealizado por Stan VanDerBeek em 1957, e realizado em 1965, financiado pelo prêmio Rockefeller destinado a estudos em comunicação não verbal.

Na década de 1950, VanDerBeek integrou a cena nova iorquina de filmes experimentais, realizou trabalhos de colagem e desenvolveu técnicas de animação por meio da programação de computadores. Entre os anos de 1952 e 1954, frequentou o Black Mountain College na Carolina do Norte, e foi influenciado por John Cage e Buckminster Fuller, que lecionavam nesse período.

O projeto Movie Drome surge como desejo de criar uma mídia capaz de ir além da representação ótica, apta para lidar com a ideia de espaço, tempo e movimento em uma mídia que conjuminasse conceitos inerentes à pintura, à escultura e ao teatro, e capaz de funcionar como resposta para a limitação das quatro paredes da sala de teatro e para as limitações visuais da pintura e escultura (13).

O domo não possui uma entrada formal; os visitantes acessam seu interior por meio de um alçapão. Não existem assentos marcados, somente vagas instruções para as pessoas deitarem no chão com a cabeça voltada para o teto e os pés voltados para o centro. Um banco de dados composto por filmes apropriados, discursos políticos, noticiários e comerciais publicitários se misturam a slides de retratos de políticos, personalidades midiáticas, trabalhos de arte, peças de publicidade e de moda. Essas imagens permeavam as mídias populares e a produção artística do período.

O barulho dos motores e estalos de mais de uma dúzia de projetores de filmes 16mm e slides se embaralha ao som das imagens e vozes que emanam das diversas fontes. Os projetores ficam fixos em carrinhos sobre rodas que se movimentam. A justaposição ilógica de imagens, combinada com o movimento multidirecional dos projetores, a velocidade e frequência da edição e o mistifório de mídias, causava estranhamento.

Stan VanDerBeek orienta o público no interior do Movie Drome, 1963
Foto divulgação [Website de Stan VanDerBeek]

Diversamente da projeção única e frontal, definida pelos limites da tela e pelo torpor do espectador imóvel nas salas de cinema, ou pela contemplação solitária nos museus, o domo esférico acomoda pequenos grupos e institui uma superfície para projeção sem bordas, sem as delimitações das telas; é um espaço multimídia, onde as múltiplas projeções e sons envolvem o participante. O espaço pulsa em um fluxo audiovisual contínuo que dispõe de uma velocidade visual muito particular. A combinação de efeitos audiovisuais pré-determinados e aleatórios, as múltiplas imagens projetadas, a mobilidade dos participantes e o ambiente imersivo favorecem a experiência fenomenológica.

Em um simpósio sobre arte experimental em 1967, John Cage fala sobre Movie Drome como uma experiência de renúncia a uma intenção específica, na medida em que propõe uma multiplicação das imagens. Cage explica que, como o observador não pode olhar para as cinco ou mais imagens projetadas ao mesmo tempo, mas só para uma imagem, ele teria liberdade, já que a intenção se perde, ou se torna silenciosa (14).

VanDerBeek idealizou uma proposta para corrigir e ajustar as falhas de intercomunicação cultural, que, para ele, refletiam a crise global do período. O projeto consistia na construção de estruturas equivalentes pelo mundo e a interconexão delas via satélite. Os Movie Dromes receberiam suas imagens via satélite a partir da programação de um banco de dados que armazenaria filmes, imagens e sons, que seriam transmitidos em apresentações locais. A programação em computadores ofereceria a possibilidade de combinações ilimitadas e do desenvolvimento de uma alternância constante no fluxo audiovisual. Movie Dromes seriam, portanto, estruturas para uma experiência coletiva de visualização e experimentação de informação audiovisual em um ambiente imersivo por meio de uma rede network compartilhada em tempo real.

Stan VanDerBeek no interior de Movie Drome durante uma exibição, 1965
Foto divulgação [Website de Stan VanDerBeek]

O estabelecimento de uma sociedade menos hierarquizada, que baseia todas as suas relações na intercambialidade, isto é, num sistema de equivalência de valores dado pelo dinheiro e pelo mercado (15), repercute nas relações entre poder institucional e discurso artístico. O momento proporciona a abertura e o trânsito de práticas entre instituições. A escultura deixa de ser autorreferente, e passa a se relacionar com o espaço e outras mídias. Os artistas se apropriam do dispositivo cinema, que, deslocado de seu contexto original, passa a operar dentro do espaço institucional da arte, em sua arquitetura para o seu público. Os artistas aqui apresentados operam na desmontagem do dispositivo cinema, a favor do discurso artístico dominante no período da espacialização da escultura, que inclui uma expansão do seu papel. Eles passam a atuar de maneira múltipla e mais ativa no debate crítico do período por meio de uma produção prática e teórica.

Nessas circunstâncias, artistas baseados nos Estados Unidos como Anthony McCall, Paul Sharits e Stan VanDerBeek retratam o contexto internacional. As obras Line Describing a Cone (1973), Shutter Interface (1975) e Movie Drome (1957-1965) são trabalhos que revelam, nos espaços expositivos, os projetores cinematográficos que ficavam ocultos nas salas de cinema. Essas obras trabalham com a espacialização da imagem e imaterialidade da luz, manejadas em projeções múltiplas e combinações aleatórias que exploram e revelam o projetor e a arquitetura supostamente neutra do cubo branco.

No deslocamento das salas escuras de cinema para o cubo branco das artes, os discursos presentes nas obras de McCall, Sharits e VanDerBeek respondem problematizações em vigor no campo da escultura, forma, volume e massa, e se relacionam com a arquitetura dos espaços da arte, o cubo branco. O uso do projetor nas obras dos três artistas explora luz, cor e a imagem em movimento projetada como ferramenta para gerar espaços imateriais, com uma forma fluida, que se transforma constantemente e que se relaciona com a arquitetura do espaço expositivo.

O rompimento do dualismo moderno entre realidade e representação está no abandono da imagem representativa e da linearidade narrativa do cinema tradicional. Enquanto o cinema modelo traz a imagem representativa, os artistas usam a imagem de modo relacional por meio de formas geométricas, campos de cor e fluxos de imagem que se transformam em um movimento contínuo.

Enquanto o arco proscênio dos antigos teatros gregos separava o público do espetáculo, nas salas de cinema ele opera como uma divisão entre a imagem projetada e o espectador. O deslocamento do dispositivo cinema para os espaços da arte promove um rompimento espacial do dualismo realidade e representação, já que a arquitetura dos espaços expositivos não possui arco proscênio e, com isso, uma divisão hierárquica do espaço. Isso corresponde em grande medida à perda da aura da obra de arte, aura esta que antes destacava a arte da realidade mundana, situando-a em um plano quase sagrado, hierarquicamente separado da vida (16). Assim, na aproximação entre arte e vida que acontece no contexto artístico, o dispositivo cinema passa a ser entendido como ferramenta para criação de um campo imanente e relacional, uma realidade que parece estar acessível à manipulação e à transformação, daí sua enorme vitalidade.

Os avanços da tecnologia desse período emparelham os primeiros computadores e transmissões via satélite. É o momento de influência do pensamento sistêmico (17), das teorias de informação, da lógica de circulação e armazenamento de dados. VanDerBeek explora essa lógica em Movie Drome (1957-1965) por meio de uma velocidade visual gerada a partir de um banco de dados de imagens midiáticas apropriadas (18).

Nas proposições de McCall e Sharits estão presente estratégias anti-ilusionistas e abstracionistas cara às questões esculturais do período. Suas obras desmontam o dispositivo cinema para revelá-lo; negam a ilusão de movimento e de um discurso narrativo; no caso de Sharits, revela a estrutura em cores; em McCall, em formas geométricas.

A natureza das obras Line Describing a Cone, Shutter Interface e Movie Drome revela conexões entre diferentes categorias artísticas, como o desenho em Line Describing a Cone, a pintura e a música em Shutter Interface, a colagem e sobreposição de temas presentes em mídias populares em Movie Drome. Portanto, não só incluem como legitimam e reconhecem a entrada da categoria de uma mídia audiovisual nos espaços da arte.

As três proposições evocam o espírito das práticas pré-cinematográficas. Remetem à experimentação, à associação com outras linguagens e outros espaços e a estratégias do dispositivo primitivo. Tais práticas, acolhidas nos espaços da arte, instauram um espaço complexo, que possui múltiplas camadas e é constituído a partir de mídias heterogêneas. É um espaço múltiplo e fluido, que se transforma ao longo do tempo e na relação com o público, já que promove a participação. Line Describing a Cone de McCall convida o público a se deslocar e interagir com a luz projetada, interrompendo-a, transformando os desenhos. O trabalho de Sharits, Shutter Interface, explora o processo de percepção do espectador, enquanto em Movie Drome a experiência aciona a percepção do público em um fluxo contínuo de múltiplas imagens.

Enquanto na escultura a ruptura drástica com o objeto autorreferente se dá no abandono do pedestal, no cinema ocorre no deslocamento institucional, espacial e enunciativo. O discurso das práticas de cinema nos espaços da arte se compatibiliza com a discussão dominante no período, a problematização da escultura. A narrativa associada à literatura dá lugar à abstração e à revelação do dispositivo. Nesse outro espaço, não existe a separação dicotômica entre produtor e receptor, configurada na divisão do lugar da plateia com assentos demarcados voltados para uma única direção, a da tela (ou palco do teatro italiano); o público está livre para se deslocar, criar percursos, ver uma ou mais imagens simultaneamente, onde o dispositivo é revelado, onde outros sentidos também são explorados; o tempo de duração não é determinado e promove a abertura para que o público escolha o tempo de fruição necessário da obra, libertando-se da ideia de um tempo produtivo controlado. Esse deslocamento promove, por sua vez, a entrada de uma forma de lazer associada à cultura popular e comercial nos espaços da cultura elevada (high arts).

notas

NA – O presente artigo é versão revisada do texto: NUNES, Ellen de Medeiros. Outros modos de relação com a imagem projetada: do plano da tela para o espaço. Art&Sensorium, vol. 3, n. 1, jun. 2016, p. 144-152.

1
WOOD, John; HULKS, David; POTTS, Alex. Modern Sculpture Reader. Leeds, Henry Moore Institute, 2007.

2
FOSTER, Hal. O complexo arte-arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2015.

3
KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture. Cambridge, MA: The MIT Press, 1981.

4
O'DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

5
FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Tradução Pedro Moura. Conferência proferida no Cercle d’Études Architecturales. Paris, 14 mar. 1967.

6
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Gávea, Rio de Janeiro, 1985, p. 129-137.

7
Idem, ibidem.

8
DUBOIS, Philippe. Movimentos improváveis: o efeito cinema na arte contemporânea. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2003; DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo, Cosac Naify, 2004.

9
MCCALL, Anthony. Line Describing a Cone e filmes correlatos. Catálogo de exposição. São Paulo, Luciana Brito Galeria, 2011, p. 17-21.

10
SHARITS, Paul. Ver/ouvir. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia. Escritos de artistas: anos 60/70. 2a edição. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 421-428.

11
JONES, Kristin. Paul Sharits <www.frieze.com/issue/review/paul_sharits>.

12
SHARITS, Paul. Ver/ouvir (op. cit.).

13
SUTTON, Gloria. The Experience Machine: Stan VanDerBeek’s Movie-Drome and the Expanded Cinema. Cambridge, The MIT Press, 2015, p. 1.

14
Idem, ibidem, p. 9.

15
WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: diálogos cruzados entre arte e arquitetura contemporânea. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2012, p. 42.

16
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução José Lino Grunnewald. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996, p. 2-3.

17
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 2004; CAPRA, Fritjof. The Systems View of Life: a Unifying Vision. Londres, Cambrigde, 2015.

18
SUTTON, Gloria. Op. cit.

referências complementares

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

CHIPP, Herschel Browning. Teorias da arte moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. São Paulo, Scritta, 1995.

CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, Papirus, 1997.

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sobre a autora

Ellen Nunes é artista visual e pesquisadora. Atualmente cursa o programa de mestrado em Poéticas Visuais na ECA USP. É bacharel em Artes Visuais pela FASM e estudou Arquitetura e Urbanismo na PUC-Campinas.

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