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drops ISSN 2175-6716

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Posicionar-se diante do computador e poder contar com uma comunidade de apoio, constituída a partir de opiniões comuns, permite o livre circular de inverdades as quais se chocam, muitas vezes, com qualquer realidade mesmo a mais longínqua.

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JOANILHO, André Luiz. Reflexões de um historiador sobre as notícias falsas na Web. Drops, São Paulo, ano 14, n. 080.08, Vitruvius, maio 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.080/5180>.


Disputa na mesa, desenho de George Grosz, 1912 [Inventário do catálogo da Galerie Ronny Van de Velde, Bélgica]


Ao parafrasear o título de um artigo de Marc Bloch, publicado em 1921, na Revue Synthése Historique, vol. 33, já acuso as minhas intenções: o ambiente web é fértil em notícias falsas, mentiras, boatos. Pode-se dizer que foram liberadas as tradicionais amarras sociais de difusão de calúnias e fatos falsos, pois, na maior parte dos casos, posicionar-se diante de uma máquina atenua o desgaste de assumir opiniões que, em face de pessoas, poderiam se tornar complicadas. Há, portanto, uma permissividade diante da tela inerte do computador. Ainda mais, forma-se rapidamente uma comunidade de pensamento apoiando o que poderia chocar em locais públicos não controlados.

A livre manifestação de opiniões na web e, em particular nas redes sociais, não traz a necessidade do debate que pode ocorrer de maneira esporádica e, muitas vezes quando acontece, é carregado de expressões chulas, menosprezo, ofensas. São atitudes que pessoalmente, por conta das regras de convívio social, deveriam ser evitadas ou, no mínimo, contornadas.

É interessante observar o espectro político sendo propagado unicamente para próprias audiências, excluindo a dissenção e desqualificando as pessoas e opiniões contrárias. Se alguém tem uma opinião racista, antirracista, homofóbica, homoafetiva, de direita, de esquerda, contra o governo, a favor do governo, encontra rapidamente um público que faz parte dos “amigos”, criando uma espécie de consenso grupal. Caso alguém discorde poderá ser excluído da lista e possivelmente vilipendiado.

Posicionar-se diante do computador e poder contar com uma comunidade de apoio, constituída a partir de opiniões comuns, permite o livre circular de inverdades as quais se chocam, muitas vezes, com qualquer realidade mesmo a mais longínqua.

Isso nos leva a perguntar: por que há pessoas que se sentem livres para espalharem mentiras, boatos, notícias falsas? Por que difundir o ódio a “inimigos” políticos ou pessoais? Podemos, de início, pensar junto com Marc Bloch essas questões:

“O erro não se propaga, não se amplifica, não vive a não ser sob uma condição: encontrar na sociedade na qual ele se espalha um caldo de cultura favorável. Nela, inconscientemente, os homens experimentam seus preconceitos, seus ódios, seus temores, todas as suas emoções fortes. Somente os estados d’alma coletivos têm o poder de transformar uma má percepção em um boato” (1).

O caldo de cultura é o velho e quase onipresente medo. Medo do desconhecido, medo do estranho, medo do diferente, enfim, medo de um Mal que não mostraria claramente o seu rosto e que agiria sempre nas sombras. E a ideia de que o Mal conspira o tempo todo é recorrente.

Pelas redes sociais é possível observar vários complôs em andamento: complô comunista; complô fascista; complô dos negros; complô gay; complô vegano, quer dizer, há tanto complôs quanto temores. Raoul Girardet já fez notar que

“em relação à temática do Complô, serão evocados assim, sem grande risco de erro, os velhos terrores infantis e sua persistência tenaz através dos pesadelos da idade adulta: medo dos porões tenebrosos, das paredes sem saída que se fecham, das fossas escuras de onde não se sobe de novo; medo de ser entregue a mãos desconhecidas, de ser roubado, vendido ou abandonado (...) Do mesmo modo (...) impõe-se a aproximação com algumas das formas mais características dos delírios de perseguição” (2).

Mas os terrores infantis não nascem com as crianças, muitos pais cultivam medo e a paranoia, tentando obter da criança a obediência e a submissão: “se não ficar quieto te largo aqui”; “o homem do saco vai te pegar”; “menino mau não vai ganhar presente do Papai Noel”, “você vai ficar de castigo”, “se fizer isso de novo, vai apanhar” e assim por diante (não é possível dar conta da imaginação sombria de muitas pessoas).

Dessa forma, o temor adquirido na infância se revela na disposição de atacar todo aquele que não comunga da mesma opinião, tratando a divergência como inimiga e, portanto, destruidora, pois a opinião contrária, para este tipo de atitude, não é simples opinião, mas expressões do Mal que sempre aparecem edulcoradas: “defesa de minorias”, “defesa de indivíduos”; “defesa de instituições”; “defesa do governo”; “defesa de animais” etc. Assim, face à ação deletéria do Mal, impõe-se a ação saneadora do Bem, pois, “o postulado inicial é simples: o único meio de combater o Mal é voltar contra ele as próprias armas de que se serve” (3).

Atacar o inimigo, não é atacar outro ser humano, mesmo porque, dentro desta lógica, o inimigo não leva em consideração a humanidade. São inúmeros os exemplos desse tipo de atitude e a mais sintomática foi a dos nazistas com relação aos judeus. Sistematicamente eles foram transformados em não humanos e isso tornou “fácil” tentar o seu extermínio. Não se matava simplesmente um inimigo político, mas uma sub-raça que estaria contaminando os seres humanos (os nazistas, é claro).

Podemos dizer que os nazistas somente expressaram temores infantis, porém as consequências foram imensas. Eles utilizaram justamente a arma da notícia falsa, do boato. Sabia-se que “Os protocolos dos Sábios do Sião” era de uma falsidade vergonhosa de tão mal feito, porém utilizaram a publicação para “comprovar” a ação do Mal praticado pelos judeus.

As notícias falsas na web têm as mesmas características. Expressam temores infantis e têm o único papel de desumanizar “inimigos” denunciando a maldade de suas ações, pois

“o inimigo opera subterraneamente, clandestinamente; versátil, inapreensível, capaz de infiltrar-se em todos os meios, sua habilidade suprema é a manipulação, suas tropas invisíveis, mas presentes em toda parte. Apenas uma organização que corresponda às mesmas características, secreta, disciplinada, hierarquizada, treinada para manobrar na sombra, é capaz, portanto, de lhe ser vitoriosamente oposta” (4).

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. São sintomáticos os pedidos de ajuda, por exemplo, a militares ou a militantes e de ameaças de uma união invencível de forças que, até então, eram vítimas do Mal. A ameaça é a do retorno de alguma antiga ordem ou de uma idade de Ouro (outro mito recorrente) e a total destruição dos inimigos. A obsessão do complô é a obsessão de uma sociedade unificada:

“ergue-se o modelo de uma comunidade poderosamente integradora, de coerência solidamente assegurada, e onde serão reencontrados o calor e a força das velhas solidariedades desaparecidas. O político e o sagrado vêm, assim, unir-se e, em certa medida, confundir-se” (5).

Cabe ressaltar que, contrariamente à afirmação de Marc Bloc de que a censura e falta de informações permitem o surgimento de notícias falsas (6), no caso da web ocorreu justamente o contrário. O excesso de informação libera totalmente a notícia falsa, já que dificilmente alguém irá procurar as suas origens e a sua fiabilidade, ainda mais quando o relato é passional, daqueles: “veja o que aconteceu comigo...”.

O que nos cabe refletir é sobre a banalidade do Mal, para usar uma expressão de Hannah Arendt. Pessoas absolutamente comuns estão dispostas a propagar discursos, mesmo que totalmente falsos, e agir em nome de ordem e unidade: agir em nome do Bem! Mas, sempre é bom lembrar: o governo dos puros é a pior das tiranias.

Dificilmente se combate a notícia falsa, pois mesmo o desmentido pode parecer mais um estratagema do Mal. Apesar da possibilidade de se obter informações com isenção e correção, muitos difusores de notícias falsas preferem os seus medos infantis mesmo quando confrontados à realidade.

sobre o autor

André Luiz Joanilho é Professor Associado de História, Universidade Estadual de Londrina

notas

1
BLOCH, Marc. Réflexions d’un historien sur les nouvelles fausse de la guerre. Revue de Synthèse Historique, t. 33, 1921. Tradução livre do autor do artigo.

2
GIRARDET, Raoul. Mitos e motilogias políticas. São Paulo, Cia. das Letras, 1987, p. 57.

3
Idem, ibidem, p. 59.

4
Idem, ibidem, p. 59.

5
GIRARDET, Raoul. Op. cit., p. 61-62.

6
BLOCH, Marc. Op. cit.

 

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