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drops ISSN 2175-6716

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Um ensaio interpretativo sobre olhares e escolhas projetuais, sobre a ação da arquitetura no viver. Faz a interlocução entre obras de arte, cinema e arquitetura onde o personagem principal é a empena, cega.

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NADER, Carolina. Cegueira e arte. Sobre olhares e escolhas. Drops, São Paulo, ano 17, n. 110.08, Vitruvius, nov. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.110/6296>.



“Todos os edifícios, absolutamente todos, têm uma cara inútil. Imprestável. Que não dá nem para frente nem para trás. A empena. Superfícies enormes que nos dividem e nos lembram o passar do tempo. A poluição nas paredes da cidade.

As empenas mostram nosso lado mais miserável. Reflete a inconstância, as tirinhas, as soluções provisórias. É o lixo que escondemos debaixo do tapete. Só nos lembramos dela excepcionalmente, quando vulneráreis ao tempo deixam transparecer suas reivindicações.

As empenas se converteram em mais um meio de publicidade, que em raras exceções conseguiram embelezá-la.

Em geral são duvidosas indicações de quanto minutos nos afastam dos grandes supermercados ou da comida rápida (fast-food). Anúncios de loteria que nos prometem muito em troca de quase nada.

Ainda que ultimamente nos recorde a terrível crise que nos deixou assim, desocupados.

Contra toda a opressão que significa viver nestas caixas de sapato existe uma saída, uma via de escape. Ilegal, como todas as vias de escape. Em claro rompimento com as normas do código de planejamento urbano se abrem umas minúsculas, irregulares, irresponsáveis aberturas que permitem que uns milagrosos raios de luz iluminem a escuridão em que vivemos.”

Trecho transcrito do filme “Medianeras”, de 2011. Tradução da autora

Empenas. O sentido literal diz: paredes laterais de um edifício, sem aberturas, lisas e cegas. Preparadas para receber um edifício logo ao lado, colado. Quando este não aparece o que sobra são paredões cinzas e cheios de história: rachaduras, remendos, buracos de máquinas de ar condicionado, antenas de televisão. Oportunidade perdida de comunicação com o mundo.

Paredes que não recebem um edifício contíguo muitas vezes são dotadas de nova função: o outdoor. Anúncios e propagandas que na cidade de São Paulo no máximo chegarão a ser painéis com bons grafites, já que desde 2006 este tipo de anúncio foi proibido, abrindo espaço para que as pessoas revejam quantas oportunidades de interação com o mundo externo foram desperdiçadas.

Ivan Padovani, fotógrafo paulista, enxergou nestas paredes uma oportunidade: arte.

Na série “Campo cego” (1), de 2010, ele nos traz um inventário de empenas tão comuns na paisagem de São Paulo, mas jamais vistas sob esta ótica. É “um respiro visual em meio a complexidade” urbana (2). A série pede atenção, instaura a pausa em meio ao caos urbano. As imagens precisamente enquadradas não deixam que o olhar desvie para nenhuma borda. De maneira sutil e silenciosa, foca nos espaços vazios e escondidos dos edifícios: os grandes paredões. O que está ali no recorte é a materialidade pura, a parede cinza, concreta, livre de perspectiva e quase geométrica, que a princípio não nos diz nada mas reflete à nós mesmos. Convida à reflexão.

Refletir sobre a cidade, sobre a sociedade. O concreto, o cinza. Refletir sobre o belo e o feio. O que é arte. O que é a cidade. Sobre a solidão urbana gerada por grandes barreiras de concreto tão frequentes nas grandes cidades.

A solidão urbana é tema do filme “Medianeiras” (“empenas”, em espanhol), de Gustavo Taretto (3). Os personagens principais são um web designer autônomo que trabalha solitário em sua morada e só sai de seu apartamento pela necessidade de levar a cachorra para passear; e, no prédio vizinho, uma arquiteta recém divorciada que em tempos de crise trabalha como vitrinista e se vê nos manequins: “fria, imóvel e silenciosa”. Cegos pela empena, ambos buscam um amor que está logo ao lado, atrás desta barreira de concreto.

Desenvolve-se uma trama que induz ao pesar da solidão urbana: a solidão do concreto, da falta de iluminação, a solidão do mundo cibernético. Não nos é apresentada de uma forma dramática mas, pelo contrário, aparece ironicamente na rotina típica das pessoas que vivem nas grandes metrópoles.

Na visão dos personagens, a cidade e a arquitetura aparecem como os grandes responsáveis por planejar e manter o isolamento entre as pessoas. Ambos com problemas de socialização, vivem e trabalham na mesma rua. Procuram um amor que está logo ao lado, cego e separado pela grande barreira de concreto, “la medianera”.

Soluções arquitetônicas responsáveis por tanta depressão, tensão, ansiedade e individualismo, criam verdadeiras barreiras que nos levam cada vez mais a esta escuridão.

Arquitetos e construtores são os grandes encarregados pelo desenho da cidade e devem estar cientes de sua influência direta no modo de vida da sociedade. Segundo o grande arquiteto pensador de espaços urbanos Jan Gehl, além de bons projetos, pensar a escala humana é a grande diretriz para se projetar a cidade para as pessoas.

Um bom exemplo desta relação é o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires – Malba, Argentina), projetado por AFT Arquitectos (4) e inspirado em várias referências arquitetônicas, sendo a mais acentuada delas Álvaro Siza, autor do projeto do Centro Galego de Arte Contemporânea – CGAC, em Santiago de Compostela, Espanha (5). Ambos museus se assemelham em forma, plantas, materiais e no seu aspecto mais evidente: a empena (6).

Pedras naturais geometricamente lapidadas e harmoniosamente alinhadas formam o mais puro volume. Uma parede limpa. Prismas amarrados criam uma volumetria simples e leve. A empena protege e isola a rua, mas não como barreira negativa.

No Centro Galego de Arte Contemporânea o grande trunfo deste paredão é o respeito com seu entorno. Desenhada para abraçar a passagem de pedestres, a grande empena abriga o transeunte ao mesmo tempo em que o respeita e não o priva de poder mirar o entorno desvendado através de um rasgo. Uma gentileza urbana.

A encorpada empena do Malba também é gentil. Protege o visitante dos ruídos externos. Um grande volume de pedras também geometricamente lapidadas compõe a fachada principal. Face direta a uma grande avenida, é concebida com o único propósito de isolar o ambiente interno, promovendo assim uma melhor experiência dentro do museu. Uma fachada cega.

Planos envidraçados justapostos a estes volumes maciços recortam a paisagem, trazendo para dentro da edificação fragmentos do ambiente externo, que devidamente selecionados remetem às próprias obras, podendo ser interpretados quase como pinturas. Essa comunicação com o exterior promove ao usuário uma sensação de que o interno abre-se para o seu entorno. Ainda assim, empenas são o ponto alto destas obras.

Ambos os edifícios seguem o mesmo objetivo: a neutralidade. Nenhuma distração é aceita na edificação onde as obras de arte são as protagonistas.

A pedra é o elemento chave destas obras. Sua materialidade incita à simplicidade de um material rudimentar mas ao mesmo tempo polido, nos levando ao requinte desta composição. Elaboradas com um material tão comum que poderia ser julgado despretensioso, o que se entende destas empenas vai de acordo com a bagagem do observador. João Cabral de Melo Neto, no poema “A educação pela pedra”, relata de maneira especial algumas reflexões sobre o material e sua capacidade de se comunicar com um ser humano:

“Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma” (7).

A pedra dura, fria e inanimada passa desapercebida aos olhos dos que não tem conhecimento. Somente ensina a quem se dispõe a aprender. A pedra do sertão só ensina a viver, não pode lecionar se nunca aprendeu.

As paredes dos museus e das fotografias estão ali para nos ensinar.  Em todos os casos, quem souber lê-la, interpretará.

A empena é arte. Ensina o olhar. Pede e merece sua reflexão.

"Aprender a ver, que é fundamental, para um arquitecto e para todas as pessoas. Não só a olhar, mas a ver em profundidade, em detalhe, na globalidade” (8).
Álvaro Siza Vieira

notas

1
PADOVANI, Ivan. Campo Cego <www.ivanpadovani.com/campocego>. Acesso em: 16 abril 2015.

2
MAIA, Elisa. Ivan Padovani. Revista DASartes, n. 36, São Paulo, 23 out. 2014 <https://ivanpadovani.wordpress.com/2014/10/23/revista-dasartes>. Acesso em: 16 abril 2015.

3
Medianeras, direção de Gustavo Taretto, filme, Espanha/Argentina/Alemanha, 2011, 1h 35min. Com Javier Drolas, Pilar López de Ayala e Inés Efron.

4
AFT Arquitectos. Proyectos, Malba <www.aftarquitectos.com.ar>.

5
SIZA, Alvaro. 1994 Galician Museum of Art. 2011 <http://alvarosizavieira.com/1964-galician-museum-of-art>.

6
MONTANER, Josep Maria. Clarín.com Arquitectura <http://edant.clarin.com/suplementos/arquitectura/2003/09/01/a-614532.htm>.

7
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro, Alfaguara Brasil, 2008.

8
Entrevista a Bernardo Pinto de Almeida. Uporto, n. 9, out. 2003, p. 31.

sobre a autora

Ana Carolina Nader Scripilliti é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie onde atualmente é mestranda. Fez um mestrado em Design pela Universidad Politècnica de Catalunya em Barcelona, Espanha. Possui escritório próprio onde desenvolve projetos residenciais e comercias.

Série Fotográfica “Campo Cego”
Foto Ivan Padovani [website do fotógrafo]

Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires – Malba, de AFT Arquitectos
Foto divulgação [website AFT Arquitectos]

Centro Galego de Arte Contemporânea – CGAC, Santiago de Compostela, Espanha, arquiteto Álvaro Siza Vieira
Foto Josugoni [wikimedia commons]

 

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