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drops ISSN 2175-6716

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José Roberto Fernandes Castilho coloca em debate uma questão polêmica nas escolas de arquitetura: o coordenador do curso deve necessariamente ser um arquiteto ou pode-se abrir exceções para outros profissionais?

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CASTILHO, José Roberto Fernandes. Poderá o coordenador da graduação em arquitetura não ser arquiteto? Reflexões à luz de um caso concreto. Drops, São Paulo, ano 17, n. 114.06, Vitruvius, mar. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.114/6481>.


Palácio do Alvorada, Brasília, arquiteto Oscar Niemeyer, engenheiro calculista Joaquim Cardozo
Foto Jorge Morais [Wikimedia Commons]


“L’art de faire chanter le point d’appui”.
Auguste Perret

“O que se ouve através dos edifícios da capital do país são as vozes de um coral de vários pontos”.
Joaquim Cardozo

A instituição da Engenharia não militar no Brasil ocorreu por obra e graça de D. Pedro II. Já as graduações em Arquitetura e Urbanismo são bem mais novas. Elas se organizaram, autonomamente, em meados do século 20 (Mackenzie em 1947, USP em 1948 etc.). Talvez por isso não exista entre os arquitetos brasileiros um “espírito de corpo” (no bom sentido do termo) que os faça defender as prerrogativas da profissão, mesmo depois da lei que criou sua corporação profissional, o CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo, em 2010. Uma dessas prerrogativas diz que apenas arquitetos podem ser coordenadores de curso de graduação em Arquitetura. Em outras profissões liberais – como médicos ou advogados – isso parece óbvio. Não se imaginaria um fisioterapeuta coordenando curso de Medicina ou um economista num bacharelado em Direito, mesmo sendo campos afins. Mas na Arquitetura não é bem assim e acham alguns (até mesmo arquitetos) que se trata de questão interna corporis da Universidade.

A questão a que me proponho a responder, pois, é a de saber se engenheiros podem ser coordenadores de graduação em Arquitetura nos 500 cursos que existem distribuídos pelo país. A meu ver isto não pode (juízo de legalidade) e não deve (juízo de conveniência) acontecer, por vários motivos que se somam. Destacarei dois, um de ordem material e outro de ordem formal.

Em primeiro lugar há a razão histórica. Engenheiros e arquitetos brasileiros têm uma longa trajetória de disputas e contenciosos que culminou com a criação do CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo que, separando-os, retirou os arquitetos da fiscalização do CREA, dominado pelos engenheiros civis. O fundamento desta disputa tem a ver com atribuições profissionais, que são discrepantes. Pode-se dizer que o arquiteto é um profissional generalista, que deve comandar todo o processo construtivo a partir do projeto até a pós-ocupação, passando pela execução que a lei do CAU expressamente refere (“concepção e execução de projetos” – art. 2º/Parágrafo único/I). Na verdade, é o primeiro e principal “agente da edificação” porque irá definir, no projeto, aquilo que vai ser levantado. Os engenheiros, por sua vez, desempenham, sem exclusividade (1), funções particulares no processo de construção do edifício, no sistema estrutural, nas instalações elétricas, hidráulicas, automação etc.

Portanto, a visão de ambos os profissionais não coincidem. Mas, por força exatamente deste perfil generalista do arquiteto, os cursos requerem a participação efetiva – e fundamental – de profissionais de outras áreas em seu corpo docente, inclusive dos engenheiros. É o caso também dos juristas que devem ministrar o Direito Urbanístico que é a face jurídica do urbanismo, além do Direito da Arquitetura, conjunto de regras jurídicas que disciplinam o exercício da profissão (contratos, direitos autorais, responsabilidades etc.).

É por tal motivo que, na França, apenas os arquitetos podem conseguir a licença edilícia, quando esta for necessária. Com efeito, a inserção harmônica da edificação no meio urbano deve ser pensada e resolvida pelo arquiteto. A famosa lei francesa de 1977 diz com todas as letras: “quem desejar empreender trabalhos dependentes de uma licença edilícia deve recorrer a um arquiteto para elaborar o projeto” (art. 3°, com as exceções do comando seguinte, modificado em 2016). No Brasil, por motivos históricos, os engenheiros civis fazem normalmente projetos edilícios mesmo tendo estudado Arquitetura e Urbanismo rapidamente (2). No entanto, assim como apenas os advogados têm capacidade para postular em juízo, apenas os arquitetos deveriam ter capacidade para projetar edificações ou, no campo urbanístico, parcelamentos do solo, por exemplo, obtendo as licenças e autorizações devidas do Poder Público. Mas, aqui, a lei não diz isso e os engenheiros continuam a desempenhar normalmente funções para a quais eles não foram devidamente formados (no conceito forte, cultural, de “formação”). Como disse, sua atuação no processo construtivo é parcial, pontual.

Em livro publicado no Brasil recentemente, o falecido urbanista italiano Bernardo Secchi ilustra bem estas duas perspectivas divergentes, citando Goethe e Orsenna. Goethe “desconfiava do uso de microscópio porque o considerava um instrumento que impedia a visão do conjunto, o domínio de amplos pontos de vista”. Já uma despretensiosa fábula política de Erick Orsenna – escritor francês contemporâneo –, trata de um “ditador que proíbe os habitantes da cidade de subir nas colinas que a circundam porque de cima é possível ter uma visão de conjunto, uma visão não somente das coisas, mas de suas relações recíprocas, de sua coerência e sentido” (3). Esta será a visão do arquiteto e daí os princípios fundamentais que orientam sua atuação como o da função social da propriedade, o da inserção harmônica da edificação na cidade, o da qualidade da edificação em termos de funcionalidade, habitabilidade, além, evidentemente, da preocupação estética na criação arquitetônica (v. o aforismo de Perret, na epígrafe, lembrado sempre por Joaquim Cardozo). Como diz o art. 1º da lei francesa antes referida, “a arquitetura é uma expressão da cultura”.

Portanto, partindo dessas premissas que são bem conhecidas, um coordenador que não fosse arquiteto não teria condições nem de compreender as necessidades e exigências do curso e muito menos de representar os alunos perante os órgãos competentes (Congregação, Conselho Universitário, CAU, IAB). Arquitetos e engenheiros têm divergências históricas, sendo certo que, por ser em muito maior número, os engenheiros sempre saíram ganhando, sempre foram exitosos nas suas pretensões multidirecionais. Então, todas as posições assumidas pela coordenação do engenheiro parecerão (ou serão) viciadas exatamente por uma possível concepção equivocada da Arquitetura, que não condiz com o atual momento da profissão, após 2010.

O segundo argumento é de ordem legal (formal). Dispondo sobre as áreas de atuação privativa e compartilhada dos arquitetos, a Resolução 51/13 do CAU/BR estabelece, precisamente, como função privativa de arquiteto, a coordenação de curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo (art. 2º/I/”g”) (4). Portanto, exatamente em razão das especificidades da profissão, o CAU, entidade autárquica que orienta, disciplina e fiscaliza o exercício profissional, fixou a coordenação de curso como atribuição privativa. E isto faz todo sentido porque não se imaginaria um matemático coordenando uma graduação em Engenharia: mas o inverso não é verdadeiro: os engenheiros civis – que se consideram “poliédricos” – querem coordenar outras graduações, como a Arquitetura. Trata-se, a nosso aviso, de grosso equívoco. A coordenação de curso existe para traçar rumos, definir estratégias, formular planos para fortalecimento das graduações. Ora, com um coordenador engenheiro caminha-se no sentido oposto porque se parte de uma inadmissível ilegalidade inicial que contaminará todos os atos posteriores, levando à fragilização do ensino.

Neste sentido, para afirmar a validade do princípio da adequação entre função e formação (é disto que se cuida), cabe recordar que anos atrás a Justiça anulou concurso para professor titular na faculdade de Direito da USP porque os membros da banca não eram da área científica do concurso (5). Tratava-se do concurso de professor de Direito do Comércio Internacional e integraram a banca uma professora das letras, especialista em sociologia da cultura (!!!), e outro da economia. Ora, o candidato derrotado ingressou na Justiça e conseguiu a anulação do concurso exatamente porque os professores daquelas áreas não eram adequados para aparecerem numa banca de Direito Internacional, não apresentando quaisquer trabalhos concernentes ao tema. Da mesma forma, um engenheiro não terá a formação adequada e a visão necessária para coordenar um curso de graduação em Arquitetura que busque a “integração harmoniosa das atividades urbanas no território, a valorização do patrimônio construído e do ambiente” (6).

Como dito antes, os partidários da tese oposta – que são muitos, notadamente os engenheiros (mas também sociólogos, geógrafos, até arquitetos) – alegam, em seu favor, a autonomia universitária que se encontra declarada no art. 207 da CF. Ela permitiria a escolha de qualquer docente como coordenador. Mas este argumento me parece falacioso porque, ao mesmo tempo, a Constituição garante que os profissionais devem atender as qualificações profissionais que a lei estabelecer (art. 5º/XIII). Assim, a autonomia didático-científica da Universidade não pode “atropelar” o conselho profissional porque a lei do CAU diz com clareza que o título profissional é atribuído pelo conselho e não por aquela (art. 5º da Lei nº 12.378/10). Trata-se da conhecida distinção entre título acadêmico de bacharel, concedido pela Universidade, e título profissional de arquiteto, concedido, com exclusividade, pelo conselho. Portanto, este argumento me parece equivocado porque estabeleceria uma estranha relação de superioridade ou hierarquia que, efetivamente, não existe entre ambas as autarquias (em se tratando de Universidade pública). “Quem dá os fins dá os meios”, diz a teoria dos poderes implícitos. Se o Estado deu ao CAU o direito de outorgar título profissional deu também, por extensão, a prerrogativa de fixar as condições de formação necessárias para que estes títulos sejam dados – ou não –, no limite evidente da razoabilidade e da proporcionalidade.

Na verdade, constitui direito subjetivo dos arquitetos, e só deles, o exercício da função de coordenador exatamente porque o objeto da Arquitetura não é o processo construtivo mas a “arte de organizar o espaço que se exprime por intermédio da construção” (7). Esta é a “diferença específica”, como diriam os escolásticos, que precisa ser sublinhada. Assim, a união dos arquitetos em torno de suas prerrogativas – derivadas não só da lei mas, antes, da peculiaridade da visão que têm sobre a edificação e a cidade – e em torno do CAU, que representa todos os arquitetos, só os fará desprenderem-se, profissionalmente, dos grilhões que ainda os amarram aos engenheiros. Em síntese: a coordenação da graduação em Arquitetura constitui função privativa de arquiteto e não pode ser exercida por nenhum outro profissional.

Por conseqüência, caso aquilo se consume – um coordenador não arquiteto, o que não constitui hipótese absurda mas possibilidade concreta, real –, o que caberá fazer? Quais as providências cabíveis diante dessa ilegitimidade e ilegalidade conjugadas? Bem, penso que estaremos diante de um ato ilícito que justifica a intervenção fiscalizadora do CAU em dois sentidos complementares: a) tomar providências junto à instituição de ensino que precisam ser cadastradas no conselho (jamais contra os alunos, os grandes prejudicados); e b) tomar providências contra o profissional de outra área porque ele estará usurpando função exclusiva de arquiteto. E esta usurpação pode acarretar sanções várias, como previsto pela lei. Portanto, entendo que até 2010, na falta de proibição expressa, os engenheiros talvez pudessem pretender coordenar graduações em Arquitetura. Mas, depois da criação do CAU e da disciplina normativa estabelecida pela lei e pelas resoluções que a desdobram, isto não é mais possível – é algo ilegal e inconveniente – e, se acontecer, demandará providências da autarquia corporativa, seja administrativamente, seja perante o Poder Judiciário.

Cabe lembrar, afinal, que ainda em 1957, o poeta Joaquim Cardozo (1897-1978) – engenheiro calculista que, numa “simbiose perfeita”, trabalhou com Niemeyer por muitos anos, inclusive na Pampulha e em Brasília – observava o seguinte aos formandos em Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco: “A profissão do arquiteto é coordenadora de outras profissões, não como simples articulação sem compromisso, mas visando o fim precípuo da beleza e da harmonia, um sentido plástico para os espaços habitáveis, sentido que realize essa aliança sempre almejada e muito poucas vezes conseguida entre espírito e matéria”. E continuava adiante: “Ao arquiteto cabe, pois, uma grande missão na vida, e eu, que tenho sido até hoje um simples auxiliar de arquiteto, sou eu quem vos diz, eu, um simples engenheiro de estruturas que dedicou à boa causa arquitetônica mais de vinte anos de trabalho e algumas horas de angústia [...]. Como engenheiro a serviço por tanto tempo dessa arte tão ilustre e verdadeira, me sinto com as credenciais bastantes para acolher-vos, em nome dos arquitetos, no seio dessa profissão nobilíssima” (8). Impossível deixar o tema das distintas atribuições mais claro e mais evidente – e dito de modo mais elegante.

notas

NA – Estas reflexões foram feitas em 2016 quando um engenheiro civil foi candidato a coordenador do curso de Arquitetura da FCT/Unesp. Ele teve expressiva votação e quase foi eleito. O Centro Acadêmico preferiu não tomar posição na disputa e, por conseguinte, entendeu legítima a pretensão do docente engenheiro, que acabou perdendo para a candidata arquiteta, atual coordenadora do curso.

1
Em São Paulo, no Paraná, na Bahia, a Justiça Federal já tem várias decisões, de 2016 e 2017, reconhecendo a competência dos arquitetos para elaboração e execução de projetos elétricos de baixa tensão (v. a sentença do processo 0020003-62.2015.4.03.6100, que foi prolatada “rebus sic stantibus”, ou seja, “enquanto não editada a resolução conjunta de que trata o § 4º do art. 3º da Lei n. 12.378/10”)

2
A propósito, o insuspeito Nestor Goulart Reis escreve, na apresentação de catálogo de exposição: “Hoje, temos projetos arquitetônicos feitos por engenheiros civis que tiveram apenas quatro meses de aula sobre Arquitetura e arquitetos que vivem à margem do controle da produção da construção civil, com um mercado de trabalho que se estreita sempre mais”. O centenário referido é o da abertura do curso de engenheiros-arquitetos da Escola Politécnica de São Paulo, em 1896. REIS, Nestor Goulart (org.). 100 anos de ensino da Arquitetura e Urbanismo em São Paulo. Catálogo de exposição. São Paulo, Museu da Casa Brasileira/ Secretaria do Estado da Cultura, 1996, p. 9.

3
SECCHI, Bernardo (2005). A cidade do século vinte. Tradução de Marisa Barda. São Paulo, Perspectiva, 2016, p. 51.

4
Por tal motivo, corretamente, o SICCAU – Sistema de Informação e Comunicação do CAU exige o número do registro do coordenador no conselho (e respectivo RRT) na “sistemática de cadastro das instituições de ensino e registro de profissionais recém-formados”.

5
Pode-se ler na rede mundial o texto que o professor Luiz Olavo Baptista publicou no jornal O Estado de São Paulo, à época (2010), e que se chama, significativamente, “Concurso ou aberração?”, onde conclui: “A banca, segundo o critério constitucional (apesar da brilhante carreira de seus membros), não estava qualificada para julgar de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou função. Logo, o concurso não existe”. BAPTISTA, Luiz Olavo. Concurso ou aberração? O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 out. 2010 <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,concurso-ou-aberracao,631812>.

6
Portugal, Decreto-lei nº 176/98, Estatuto da Ordem dos Arquitetos, art. 42.3.

7
Ver: ZAHAR, Marcel. D’une doctrine d’architecture – Auguste Perret. Paris, Vincent, Freal, 1959.

8
CARDOZO, Joaquim. Discurso aos novos arquitetos. In Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, p. 634-636.

sobre o autor

José Roberto Fernandes Castilho é doutor em Direito pela USP e professor de Direito Urbanístico na FCT/Unesp.

 

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